O
segundo mandato de Dilma sequer começou, mas acumulam-se evidências
de que o petismo no poder empreenderá, uma vez mais e de forma ainda
mais acentuada, uma guinada à direita, com a entrega do comando da
economia a Joaquim Levy e a presença, no ministério, de líderes do
agronegócio, da indústria e do sindicalismo patronal.
Levy,
convém frisar, é um economista ultraortodoxo com fixação em corte
de gastos públicos. É pós-graduado pela Universidade de Chicago, o
principal polo mundial do liberalismo “puro” fortemente
influenciado por Milton Friedman, guru de gerações de economistas
cujo principais traços são a fé cega no mercado e a dissociação
entre desempenho da economia e bem-estar da população – destarte,
os preferidos por regimes totalitários (“As teorias de Friedman
lhe deram o prêmio Nobel; ao Chile deram o general Pinochet”,
ironizou o escritor Eduardo Galeano. A ditadura chilena serviu ainda de
incubadora para o que viria a ser a doutrina neoliberal. Sobre a relação entre o legado de Friedman, o neoloiberalismo e a "nova política", assista aqui à íntegra do documentário A Doutrna do Choque, baseado no livro homônimo de Naomi Klein).
Seis
por meia dúzia
Não
bastasse tal pedigree, Levy foi aluno do ex-ministro do
Planejamento na gestão FHC, Armínio Fraga, de quem é considerado
discípulo e com quem teria contribuído amiúde na campanha de Aécio
Neves; e é alto executivo do Bradesco, o banco que vem batendo
sucessivos recordes de lucro na era petista, que o teria indicado à
Fazenda após o presidente da instituição, Luiz Carlos Trabuco,
recusar o convite ao cargo.
Para
os que ainda têm fresca na memória a campanha difamatória que o
marketing eleitoral petista promoveu contra Neca Setúbal e depois
contra Fraga, apregoando que submeteriam o país ao comando do
mercado e, literalmente, tirariam a comida dos pratos dos brasileiros
para aumentar o lucro dos bancos, a hipocrisia e o descompromisso com
a coerência inerentes à nomeação de Levy ficam evidentes.
Se
era para colocar no ministério um aluno de Armírio ainda mais
ortodoxo do que este, que se nomeasse o mestre, diz a blague.
Reação
tardia
Ante
a iminência da nomeação de Levy para a Fazenda, de Kátia Abreu
para o agronegócio e de Amando Monteiro para a Indústria e
Comércio, intelectuais e esquerdistas mobilizaram-se para um
abaixo-assinado direcionado à presidente Dilma, manifestando
preocupação ante a iminente guinada a um conservadorismo ainda mais
atávico do que o do primeiro mandato e chamando a atenção da
ex-candidata petista para seus compromissos com os setores da
esquerda determinantes para que vencesse as eleições.
Não
obstante a legitimidade e as boas intenções da iniciativa, trata-se
de um gesto ingênuo e fadado ao mero simbolismo. Mesmo porque a
esquerda, no segundo turno, por ingenuidade ou voluntarismo, foi
cooptada sem estabelecer condições, se deixando enganar pelos
truques marqueteiros de João Santana, mesmo após 12 anos de PT no
poder, período mais do que suficientes para que mesmo um
simpatizante de primeira hora e figura íntima do partido e de Lula
se desencantasse:
“Os avanços socioeconômicos coincidiram com o retrocesso político. Em 12 anos de governo, o PT despolitizou a nação. Preferiu assegurar governabilidade com alianças partidárias, muitas delas espúrias, em vez de estreitar laços com seu esteio de origem, os movimentos sociais.(…)
O PT até agora robusteceu o mercado financeiro e deu passos tímidos na reforma agrária. Agradou as empreiteiras e pouco fez pelos atingidos por barragens. Respaldou o agronegócio e aprovou um Código Florestal aplaudido por quem desmata e agride o meio ambiente”
Mantra
eleitoreiro
Não
obstante tal implacável diagnóstico, o autor do texto, Frei Betto,
está entre aqueles que, no segundo turno, não só endossaram mas
repetiram obsessivamente o discurso do nós contra eles, segundo o
qual a candidatura Dilma representava a única opção redentora para
a esquerda, enquanto Marina ou Aécio encarnavam, ora um, ora outro,
o mercado no poder e o retorno do neoliberalismo de FHC.
Apesar
do primarismo do discurso – e das fartas evidências da guinada
conservadora petista, agravada no primeiro governo Dilma e da qual
Betto demonstra ter plena consciência -, a narrativa foi suficiente
para levar amplos setores da esquerda a declarar voto em Dilma, sem
sequer demandarem algo em troca. Agora se dizem traídos. Será mesmo? Ou terão traído a si próprios?
Seja como for, perderam,
assim, uma oportunidade histórica de se consolidar como uma
alternativa consistente à esquerda do PT e de reafirmar a
persistência da dupla crítica que avultou nas Jornadas de Junho: ao
modelo de desenvolvimento arcaico do neopetismo, baseado na escalada
do consumo e em grandes obras, e ao modelo político de alianças
aideológicas em troca do aparelhamento do Estado.
Cheque
em branco
Agora,
madalenas arrependidas, com a repercussão do novo ministério nas
redes sociais e a sombria aproximação de Dilma com o
conservadorismo mais desbragado– o que pode ser pior que Kátia
Abreu? - começam a se dar conta da dimensão de seu erro e a se
aperceber que forneceram um cheque em branco a uma administração
que só se autointitula esquerda nas eleições, mas se mostra, na
prática, cada vez mais indistinguível de seus opositores tucanos.
Melhor fariam se assumissem a responsabilidade e se redimissem
publicamente por seu erro, ao invés de fingirem inocência em
abaixo-assinados cuja eficácia resume-se a ao aplacamento da
consciência dos que o assinaram.
Pois,
no mundo real, o segundo governo Dilma está prestes a começar, e
seu script, já foi traçado: em mais um paradoxo típico do petismo
no poder, tão logo consiga aprovar, no Congresso, o projeto que
permite desobedecer às metas de superávit fiscal, o governo, num
inegável retrocesso e traindo seu discurso eleitoral, nomeará a
equipe econômica chefiada por Levy, e este, já no dia seguinte à
posse, anunciará um pacote econômico anticíclico que afetará de
maneira dramática a economia em 2015.
Nada
muito diferente do que fariam Marina ou Aécio, com a diferença de
que estes não contariam com o beneplácito dos inocentes úteis que
compõem a a chamada “esquerda crítica” - leia-se chapa-branca.
Pelo contrário: seriam implacavelmente por ela vigiados e
denunciados.
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