A brutal repressão policial contra os
professores municipais do Rio de Janeiro, expulsos da Câmara
Municipal com uso excessivo da força - incluindo policiais
mascarados atacando covardemente e pelas costas cidadãos desarmados,
como se pode ver aqui e em vários vídeos do youtube - é mais uma
grave violação do Estado de Direito na capital fluminense e suscita
graves preocupações quanto ao livre exercício da democracia no
estado.
A ação se deu por ordem direta do
governador Sérgio Cabral, atendendo a pedido do prefeito Eduardo
Paes, ambos do PMDB, principal aliado do PT nos âmbitos estadual e
federal. Os professores retomaram a greve no último dia 20,
ocupando a Câmara, após terem sido ludibriados pelo Plano de
Cargos, Carreira e Remuneração da categoria apresentado pelo
prefeito Paes e que, segundo eles, não atende a 93% dos
profissionais.
A repressão ao direito constitucional à
greve, ainda por cima pacífica, já seria, em si, reprovável, por
contrariar a Constituição. Sua execução através de inaceitável
abuso policial, que humilha uma classe de profissionais
historicamente aviltada, figura-se inaceitável em uma sociedade que
se quer democrática. Demanda uma reação urgente da sociedade
civil organizada no sentido não só de esclarecer e punir os
responsáveis por tal descalabro, mas para cortar na raiz a tendência à repressão inconstitucional e ao excesso de poderio em mãos militares que
há tempos se verifica no Rio de Janeiro, agravado sobremaneira com o
advento das milícias, com as UPPs e como reação aos protestos de
junho.
Repressão periférica
Não se trata no entanto, de um fenômeno anômalo ou recente. A história da cidade do Rio de Janeiro
pode ser contada como uma sucessão de processos de reurbanização e
reorganização do espaço urbano motivados pela urgência em
empurrar os mais pobres para longe das "áreas nobres" da
cidade – ou em mantê-los confinados nos morros e subúrbios mais
recônditos - e, sob lemas como "progresso", "europeização"
e "pacificação", mascarar o apartheid.
Mascarar, no caso, significa forjar uma
narrativa positiva e progressista que a um tempo encubra e
potencialize a repressão periférica. Esta, em forma de deslocamento
ou enclausuramento forçado, assassinato seletivo ou genocídio,
repete-se de forma cíclica ao longo da "evolução" da
metrópole, de Pessoa de Barros (1889-90) a Eduardo "Milícia"
Paes.
A segurança como desculpa
Na administração Pereira Passos
(1902-1906), protótipo dessa verdadeira política de "bota-abaixo",
tratava-se tanto de um processo de "sanitização"- que
varresse dos bairros centrais a herança escravocrata - quanto de uma
operação cosmética que transmutasse a fétida cidade portuária na
"Paris dos trópicos". Não é possível entender o ânimo
popular e a virulência da "Revolta da Vacina" sem levar
em conta tal contexto - que pouco aparece nos jornais da época -,
assim como não dá para decifrar as motivações das manifestações
de junho último (e sua persistência no Rio de Janeiro) sem atentar
para a saturação da paciência popular para temas como
(i)mobilidade urbana, carestia e marquetização da política, no
bojo de um processo de intensificação de predisposições
psicológicas coletivas que, uma vez mais, a mídia mostrou-se
incapaz de captar e retratar. A novidade é que foi acompanhada, em
sua "distração", pelos blogueiros progressistas, há
tempos mais interessados no apoio chapa-branca ao governo petista do
que em examinar os humores da população com esforço de imparcialidade e desejo verdadeiro
de entender .
Essa intermitente política de repressão periférica tende a alcançar picos em períodos em que ao destaque
dado ao discurso da "ordem pública" – como na governança
de Carlos Lacerda (1960-65), cujos requintes incluíam afogamento
sistemático de mendigos – vem a somar-se a alegada primazia dos
assuntos de "segurança nacional" - como com o coronel
Etchegoyen à frente da polícia durante o Estado Novo ou com
prepostos diversos durante a última ditadura militar, cujo legado
maior em relação ao Rio talvez tenha sido, com a ativa colaboração
de seu braço midiático, a Rede Globo, a consolidação da imagem do
Rio como uma terra de ninguém ultraviolenta sitiada pelo tráfico, a
"cidade partida" de que nos fala Zuenir Ventura.
Visão pessoal
A transformação da "Cidade
Maravilhosa" em "Cidade Partida" foi um processo longo
e doloroso, que acabou por afetar tanto a imagem exterior do Rio,
provocando o temor e eventualmente o deboche dos seus vizinhos
brasileiros, quanto a autoestima do carioca. Morei no Rio entre 1996
e 2005, quando tal fenômeno atingiu seu auge. Eu adorava a cidade -
que me parecia bela, convidativa, sensual, culturalmente mais
vibrante (ainda que menos diversificada) que São Paulo – e seus
habitantes – que, em sua maioria, me receberam com uma gentileza e
um carinho que renovadas vezes me surpreenderam e me emocionam. Mas o
abatimento no ânimo carioca era visível, indisfarçável: mesmo
pessoas que jamais haviam sido assaltadas ou sofrido qualquer
violência física mostravam-se acuadas e amedrontadas.
Para além do esmero da Globo em manter a
população presa a um estado permanente de temor e tensão – muito
lucrativo politicamente -, outros dois fatores parecem ter
contribuído bastante para tal estado de espírito: a sombra do
passado glorioso da Guanabara, a mundialmente celebrada capital
federal, berço da bossa nova e da garota de Ipanema, e a certeza de
que aquela cidade, real ou alegadamente sitiada, não estava à altura
de sua beleza, de sua pujança, de seu destino, de suas
potencialidades.
A aposta na repressão
A soma de tal atmosfera com a baixa
autoestima da população propiciou o clima ideal para a adoção
sucessiva de medidas truculentas e de soluções repressivas, até
chegarmos ao estado atual, em que manifestações públicas são não
apenas rotineiramente reprimidas, mas reprimidas com uso excessivo –
e gratuito - de força policial. Primeiro veio o endurecimento da
legislação concernente ao delito de associação ao tráfico, cuja
tentativa de transformá-lo genericamente em "crime hediondo"
foi diretamente motivada pela "necessidade" de impedir
protestos de habitantes dos morros e de comunidades pobres contra a
violência policial indiscriminada – os quais eventualmente
interrompiam o trânsito, inclusive na sacrossanta Zona Sul
(Cantagalo e Pavão-Pavãozinho), revoltados pelo assassinato de
crianças que não pertenceriam ao tráfico de drogas, ao contrário
do que afirmavam as forças policiais. (O que, por sua vez, deixa
clara a institucionalização da ideia de que, se pertencessem,
deveriam ser mortos - ao invés de submetidos ao devido rito
judicial demandado pela democracia.)
E isso se deu em uma época e que a
violência, para além de sua efetividade social, tornou-se, por
excelência, a pauta de políticos populistas e de demagogos
televisivos, gerando uma visão distorcida da relação entre
criminalidade, violência e Direitos Humanos, em que prevalece, de
forma quase exclusiva, a ótica punitiva e negativista. Derivam daí
os protestos pouco inteligentes que confundem os Direitos Humanos com
o que chamam de "direitos de bandido", numa generalização
que se baseia em uma confiança irrestrita na distinção ontológica
entre "gente de bem" e bandidos, a qual não leva em conta
que tal distinção depende, quase sempre e em primeira instância,
dos critérios subjetivos de policiais mal pagos e mal treinados –
muitas vezes corruptos –, atuando em uma corporação de racismo e
classismo entranhados e para uma sociedade em que tais ismos são
também correntes, de forma notória, entre as elites políticas e
jurídicas que, respectivamente, fazem as leis e julgam os acusados.
UPP, essas esfinge
Nesse cenário, as UPPs surgiram como uma
panaceia. Pouco importa que, como demonstra a cientista política
Maria Helena Moreira Alves, elas se constituam em ocupações
militares que incorporam e significam um estado de exceção que
viola sistematicamente a ordem democrática: a sociedade estava
disposta a saber que os barracos de seus subalternos seriam arrombados
no meio da noite, ou que os filhos de suas domésticas seriam mortos
sob a desculpa de pertencerem ao tráfico, desde que recuperasse a autoestima perdida e o prazer de frequentar um boteco no alto do
Chapéu-Mangueira.
Assim, mesmo quando as denúncias já se
multiplicavam e o modelo das UPPs começava a evidenciar-se como um
grande negócio entre poder público, mídia e mercado só
possibilitado pela violação rotineira do pacto democrático, o
udenismo enraizado no Rio de Janeiro – inclusive entre os setores
de centro-esquerda, que apoiaram entusiasticamente as UPPS –
preferiu fazer-se de desentendido. Afinal, como observou um taxista,
com malícia de filósofo popular e referindo-se ao noticiário de
que até o tráfico de drogas persiste, agora com com novas caras,
"pelo menos saíram aqueles moleques maltrapilhos e entrou um
pessoal fardado. A aparência fica melhor".
A lógica da proibição
O debate recente sobre a cômica
proibição do uso de máscaras em eventos públicos relaciona-se
diretamente com essa lógica. Ela evidencia a primazia dos critérios
racistas e classistas em nossa sociedade – não apenas para as
forças policiais, que frequentemente dão mostras de se basearem em
tais critérios -, mas da própria sociedade: um dos (falsos)
argumentos mais recorrentes entre os governistas que se apressaram em
criticar as manifestações de junho foi que seria um ato de classe
média, "coxinha": - "Basta olhar as fotos",
diziam (num afirmação cujo sentido último é "basta ver a
porcentagem de negros e mulatos entre os manifestantes").
Não obstante essas constatações acerca
do quão pervasivos são o racismo e o classismo entre nós, é
perfeitamente cabível debater se é oportuno ou recomendável o uso
de máscara e o apelo à violência nas manifestações, debate que
está longe de chegar a um consenso, contrapondo quem defenda a
validade de qualquer método de luta política e os que temem que
tais usos possam semear a discórdia interna e a antipatia do
público - além dos defensores de uma série de posições
intermediárias. Mas não se pode "apontar o dedo para aqueles
que estão mascarados e esquecer que os protestos foram marcados pela
violência do Estado, da violência da policial que, esta sim, em
função pública e com boa parte de seu efetivo sem a devida e
obrigatória identificação", como apontou o cientista político Walter
Hupsel, em seu alerta sobre a criminalização dos protestos. Por fim, não pode ser aceito em uma democracia que o Estado
determine, de forma autocrática e unilateral, os rumos dessa
discussão, e o faça através de uma proibição contrária à
Constituição e que atenta contra os direitos fundamentais da
cidadania.
Luta por território
Tudo somado, é preciso ter claro que o
grau desproporcional de repressão policial aplicada contra os
manifestantes no Rio de janeiro, desde junho, não é "apenas"
a decorrência dessa militarização da vida pública, da
irresponsabilidade dos governantes ou dos resquícios ditatoriais das
forças policiais: ela vem imbuída de um sentimento de vingança pelo
fato de os manifestantes terem posto a nu, nacionalmente, a falácia
das UPPs – notadamente através do caso Amarildo, que se tornou
icônico. Portanto, para além do que revela de despreparo e de
certeza de impunidade por parte das forças policiais, evidencia o
papel preponderante que estas desempenham em tal esquema, direta ou
indiretamente, lícita ou ilicitamente, em público ou em privado.
Trata-se um ovo da serpente, de uma militarização do Estado,
transferência de poder da esfera civil para a arena militar.
Maria Helena Moreira Alves, em seu livro
e em suas entrevistas, alerta para o perigo de que o estado de exceção
das UPPs, com sua sistematização da repressão periférica – a
qual, naturalmente, a cientista política abomina – contamine o restante do tecido social, a começar da
classe média. Na noite de ontem, a máscara de sangue no rosto de
alguns professores foi a evidência de que tal contágio saiu do
período de encubação e se dissemina. Cabe aos democratas
estancá-lo.
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