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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Marina e o segundo turno

Em um post no qual faz balanço e prognósticos do “fator Marina”, Idelber Avelar propõe, para fins analíticos, uma divisão esquemática dos votos recebidos pela candidata verde: 1) o voto estritamente marinista, verde, ecológico; 2) o voto "ético"-jovem-universitário-profissional-liberal-urbano, uma parte dele (a maior, me parece) composta por desiludidos com erros ou presepadas do PT, e a outra parte (menor, me parece) composta por eleitores movidos pelo episódio Erenice; 3) o voto evangélico.

Essa divisão é o aspecto que mais me atrai no artigo, que de resto soa a mim quase como uma peça oficial da intelectualidade petista – se esta tivesse intelectuais públicos do quilate, da projeção e da capacidade de produção de Idelber Avelar -, que estrategicamente sobrevaloriza Marina por conta da necessidade de conquistar parte de seu espólio eleitoral.

De qualquer modo, na tal tríplice divisão, a “novidade” Marina advém dos dois últimos estratos, que, no último mês, tiraram a candidata verde dos quase 10% em que se manteve por 13 meses e levaram a eleição para o segundo turno, ressuscitando José Serra.


Voto estético
Dos três estratos marinistas, o voto “ético”-classe média me parece o mais refratário tanto a uma cooptação por parte de José Serra quanto, em maior grau, por Dilma Rousseff: é um voto estético, na acepção pobre do termo - um voto “fashion, descolado” como apontou Hildegard Angel no imediato pós-apuração; um voto Caetano Veloso, diria eu.

É, portanto e ainda, um voto reativo, anti-establishment político, de cidadãos e cidadãs particularmente suscetíveis ao discurso neoudenista, que tanto interessa à direita. Para os que o proclamam, Marina representa uma outsider, ainda não corrompida pela “sujeira” da política oficial. Nesse sentido, por paradoxal que pareça, a figura com a qual ela mais se aproxima, na história das eleições presidenciais brasileiras, é com Fernando Collor: só que o que antes era um playboy nordestino com “aquilo roxo” e à caça de marajás hoje é uma cabocla amazonense, nos trajes étnicos do multiculturalismo e cheirando a Natura.

Corroboram as impressões elencadas nos dois últimos parágrafos o fato de que todas as pessoas que conheço pessoalmente e que se encaixam nesse voto o proclamam da mesma maneira: salientando, a um tempo, a “independência” da candidata Marina e, com um tom de picardia que traz implícito a crítica à política convencional – leia-se PT versus PSDB -, a “elegância”, o “charme”, a unicidade da “figura fina” encarnada pela senadora acreana.

Esse estrato tende a dispersar-se ou diminuir tremendamente sua fidelidade a Marina à medida em que ficar evidente que o PV – de Zequinha Sarney, de empresários duvidosos radicados em Londres, e manietado por José Serra – é, para usar a linguagem que tanto os mobiliza, um partido tão corrompido como outro qualquer, a chafurdar na lama da política nacional.


A cartada religiosa
Já o voto religioso – que não é apenas em “evangélico”, haja vista a virulência com que os boatos anti-Dilma circularam e foram difundidos pela direita católica – obedece a outra dinâmica. Trata-se, essencialmente, o voto do medo, emprenhado pelas entranhas do conservadorismo brasileiro, se valendo, sem o mínimo pudor, da ignorância e da manipulação (se você assitiu a Terra em Transe, de Glauber Rocha, pense no personagem de Paulo Autran).

No que concerne a tal estratégia, é preciso reconhecer o drible que o serrismo deu na militância petista: enquanto esta, entrincheirada na blogosfera, aguardava uma “bala de prata” anunciada por dez entre dez “blogueiros sujos”, as igrejas e casas de culto dos subúrbios e das periferias eram literalmente tomadas por boatos - uma tática que, tanto na desfaçatez com que joga a incendiária carta da manipulação política da religião quanto na forma sorrateira de agir, sugere o modus operandi serrista, mesmo porque o PV não tem estrutura ou traquejo para empreender uma operação tão capilar.

Esses estratos religiosos são, no momento, as áreas potencialmente mais perigosas para a candidatura Dilma. Ela precisa reagir, não se deixar acuar pela histeria anti-aborto e, ao mesmo tempo em que repõe tal discussão em um âmbito institucional, não dogmático, que leve em conta posições religosas sem abrir mão do viés laico e relcionado a saúde pública, aproximar-se de forma coordenada das lideranças evangélicas e católicas, procurando ainda se dirigir, nos programas eleitorais, diretamente aos fiéis religiosos, de maneira franca e clara.

Aqui me parece necessário, uma vez mais, para evitar novas auto-lusões, salientar os malefícios do efeito-manada que o formato de militância virtual atual, açulada pelo twitter, tem provocado: ninguém, absolutamente ninguém foi capaz de detectar o enorme crescimento de Marina nos dois segmentos eleitorais que dobraram seus votos e levaram Serra – a maior ameaça pós-ditadura ao aprimoramento da democracia brasileira – ao segundo turno.


Batalha feroz
Enquanto uma Dilma surpreendida e um Serra rejuvenescido – e, como sempre, vitaminado pela mídia amiga – se digladiam, o foco se volta para Marina Silva, possível fiel da balança.

Se firmar aliança com José Serra, Marina vai valer o equivalente a uma nota de três reais no dia seguinte a sua eventual vitória: em primeiro lugar, porque Serra não cumpre acordos; em segundo, porque, cooptada pelo sistema político oficial, a candidata verde, sem o auxílio da manipulação religiosa, perde a aura de outsider.

Tal aura igualmente se desfaz se preferir se aliar a Dilma – a diferença é que a chance de que os acordos sejam cumpridos é maior.

A Marina interessa, portanto, manter-se alheia à disputa, preservando seu volúvel mas ora efetivo capital eleitoral – e, sobretudo, a aura de sua figura púbica, dividendo fundamental numa democracia tão afeita à pessoalidade e ao carisma quanto a brasileira.

O problema é que a opção por tal eqüidistância é pouco efetiva em termos partidários, já que Serra controla o PV, como, a despeito das ilusões marinistas, demonstrou de forma cabal ao levar uma eleição perdida ao segundo turno.
Agora ou a sabedoria política de Lula e a capacidade de mobilização da militância petista se manifestam ou o legado de desenvolvimento e inclusão da melhor Presidência que o país já teve pode cair no colo do neoliberalismo privatista.

6 comentários:

Tiago Gregório disse...

Caleiro,

Interpretação equilibrada e profunda, principalmente no que diz respeito à inércia da militância petista via web. O próprio Twitter mostrava a ascensão de Marina, pois as hashtags #ondaverde e #marina43 não saíram dos TT's Brasil durante o final de semana. Para alguns, isso não tem a menor importância, pois assuntos banais também vão parar nos TT's. Mas as eleições não são banais, e mesmo sendo uma manifestação de eleitores cuja maior parte não se interesse diariamente por política, para o processo não há diferença entre voto intelectual, voto de protesto e voto de analfabetos: cada um vale o mesmo.

Para deixar bem claro, não sou reaça: acompanho diariamente os "blogs sujos/progressistas" e sou esquerda, sim sim. Votei em Dilma, tenho fundamentos sólidos para isso e fiquei chateado pelo 2. turno. Mas não concordo com os ataques a quem votou em Marina, e essa se revela uma tática perniciosa, contrária ao que realmente é necessário: reconquistar os votos perdidos e de protesto. Minha ideologia é o que menos importa, pois o que está em jogo são 8 anos de conquistas e o futuro do país. Ao invés de criticar, vamos militar, esclarecer, argumentar, respeitar. Para, no dia 31, comemorar.

Unknown disse...

Tiago,

Obrigado pelo comentário. De fato, em meio à euforia desmedida que Rodrigo Vianna, eu e outros tanto criticamos, os TTs com as hashtags citadas foram negligencidos, atribuídos à influência da "velha mídia" (como se poder para isso ainda tivesse)... agora, corre-se atrás.

Silvana disse...

O que está me preocupando é: quem está cuidando dos votos do eleitor "offline"? Durante o primeiro turno, vi muito mais militância no Twitter que na rua.

Uma campanha eleitoral que por pouco não venceu no primeiro turno deve ter cuidado em, com o perdão do trocadilho irresistível permitido pela conjuntura, "não desvestir um santo para vestir outro".

Unknown disse...

Silvana,

Exato! Há vida eleitoral para além das redes sociais...

Renata disse...

Melhor análise do "fator Marina" que vi até agora.
Marina realmente preferiu não perder sua aura outsider e optou por uma comprometida "neutralidade". Como se isso existisse me política!

Unknown disse...

No caso, é a "neutralidade da direita"...

Muito obrigado, Renata.