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terça-feira, 17 de março de 2009

Arletty, A Eterna Garance

Uma das grandes divas do cinema, Arletty (Léonie Bathiat) alcança rapidamente o estrelato no teatro parisiense, obtendo algum destaque no cinema comercial francês dos anos 1930, em comédias de Sacha Guitry e Jacques Feyder. A consagração vem através dos filmes psicologicamente densos, esteticamente rebuscados e sociologicamente atentos do Realismo Poético Francês, movimento do qual se torna uma das principais estrelas, com performances marcantes em produções em sua maioria dirigidas por Marcel Carné e roteirizadas por Jacques Prévert.

Assim como Jean Gabin representa um novo padrão de masculinidade no cinema, os papéis por ela desempenhados no período elevam o padrão da representação feminina nas telas, então fortemente atado a estereótipos. Tanto como a recorrente femme fatale quanto como as prostitutas Raymonde, de Hôtel du Nord (Hotel do Norte, 1938) e Clara, de Le jour se lève (Trágico Amanhecer, 1939), Arletty dota seus personagens de profundidade psicológica e de contradições e idiossincrasias, à revelia das caracterizações que se confundem com as de sua própria persona: a bela mulher de origem humilde e humor rascante, cujos aparentes niilismo e objetividade não deixam de sugerir um espírito romântico e uma sexualidade intensa.

Sua luminosa atuação como a Garance no clássico Les enfants du paradis (O Boulevard do Crime, Marcel Carné, 1945), valorizada pela direção de fotografia de Roger Hubert (cuja química com Arletty produz um verdadeiro tratado de fotogenia), representa o ápice de sua carreira e a performance que a inscreve, definitivamente, na história do cinema.

Queda
Dona de uma biografia cuja dramaticidade rivaliza com a das personagens que encarnou na tela, sofre, aos 16 anos, o choque de ver o namorado morrer no terceiro dia da I Guerra Mundial, o que a faria jurar nunca se casar, “para não me tornar uma viúva da guerra ou, o que seria ainda pior, a mãe de um soldado”. Embora tenha tido uma vida amorosa intensíssima, cumpre, ao menos oficialmente, a promessa. Esta, no entanto, não lhe poupa dos dissabores causados pela explosiva combinação de amor e guerra: embora identificada com os setores artísticos simpáticos à Resistência Francesa, é acusada, ao final da II Guerra, de ser amante de um oficial alemão.

Na ocasião, declara: “Meu coração é francês, mas minha bunda é internacional” [Mon cœur est français, mon cul est international] – frase que, décadas depois, a tornaria objeto de culto entre as feministas euro-americanas.

O caso, porém, tem graves consequências: acusada de traição, é encarcerada no campo de concentração de Drancy e depois em uma prisão, onde permanece quatro meses. Proibida de trabalhar por quase três anos, é abrigada por amigos ligados à Resistência. Não chega sequer a tomar parte na première de Les enfants du paradis – ironicamente, um filme construído como uma crítica à França sob Vichy e que pode ser lido como uma alegoria anti-repressão e um libelo pela liberdade.

Embora retomasse a carreira, esta nunca mais seria a mesma, em parte porque o cinema francês jamais voltaria a produzir aqueles filmes plenos de atmosfera, a um tempo classudos e contundentes, que estrelara em fins dos anos 30; em parte porque o público, traumatizado pelas feridas da guerra, não mais se dispôs a prestigiar um ídolo que via como praticante da então chamada “colaboração horizontal” com o inimigo.

Suas atuações como a Inês de Hui Clos (Jacqueline Audry, 1954) ou a Blanche de L’air de Paris (Além do vidro vazio, Marcel Carné, 1954) não deixam dúvidas quanto ao seu grande talento, mas este dá mostras de não bastar. O declínio de sua carreira acentua-se com a irrupção iconoclasta da Nouvelle Vague. Deixa de atuar como atriz em 1963, após um acidente em que quase perde a visão durante ensaio da peça de Jean Cocteau, Le Monstre sacrés. Três anos depois, perde seu único filho e, em seguida, Jean-Pierre, o companheiro “de altos e baixos” com quem nunca casara. Sobrevive trabalhando como narradora.

Retorno Mas o tempo acaba por lhe fazer justiça: morre aos 94 anos, superando a maioria de seus contemporâneos e os traumas de seu tempo de estrelato. Publica duas autobiografias cujos títulos resumem sua mudança de espírito em relação ao passado (e acabam por refletir a transformação na relação do público com ela): Défense [Defesa] em 1971, e Je suis comme je suis [Sou como sou], em 1987.

Quase centenária, vive mais do que o suficiente para certificar-se de que se tornara um dos maiores ícones femininos do cinema, saudada por seus pares em documentários e depoimentos e objeto de culto internacional, despertando particular devoção entre cinéfilos, gays e feministas. A eterna Garance.

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