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domingo, 22 de novembro de 2015

A imprensa e a catástrofe ambiental da Samarco

A cobertura que os três grandes jornais do país dedicaram ao crime ambiental da Samarco, cuja devastação teve início em um distrito de Mariana e alastrou-se por centenas de quilômetros de Minas e do Espírito Santo, assassinando o Rio Doce, marca um dos pontos mais baixos da história da imprensa brasileira.

A performance dos diários, de início meramente protocolar, com informações insuficientes, em larga medida obtidas de fontes governamentais ou privadas com interesse direto na minimação do ecocídio e em sua não-caracterização como crime ambiental, só a partir do terceiro ou quarto dia passou a ser menos relapsa (mas ainda longe do aceitável).



Nome aos bois
Além disso, prolongou-se, na imprensa em geral, a insistência em denominar o caso referindo-se a Mariana, cidade histórica onde o rompimento da barragem se deu, e não a Samarco, a empresa mineradora cujo misto de negligência, incompetência e ganância o provocou, distorção de evidentes consequências ideológicas que só recentemente o Estadão abandonou.

A TV Globo protagonizou o mais explícito caso de violação da ética jornalística na cobertura do caso, ao ter um de seus cinegrafistas flagrado desligando a câmera quando um morador de Mariana passava a elencar dados sobre a culpabilidade da Samarco. Além disso, a revista Época, publicada pelo grupo Globo, trocou no último momento a capa que daria sobre o caso da Samarco por outra sobre os atentados em Paris – decisão que suscita polêmica, mas que sem dúvida revela ser falsa a alegação das principais revistas semanais de que, na semana anterior, não destacaram em capa a devastação ambiental que assolava Minas porque não teria havido tempo hábil entre sua deflagração e o tempo necessário à produção de capas.



Protagonismo das redes
Paradoxalmente, o jornal O Globo foi o menos pior dos grandes “jornalões”, capaz de ao menos levantar alguns aspectos relevantes em relação ao evento, enquanto o Estadão e, mais ainda, a Folha de S. Paulo praticaram um antijornalismo, que mal disfarçava o interesse em esconder o tamanho dos danos e a culpabilidade da empresa, temas que desde os primeiros momentos eram dimensionados e repercutidos com intensidade nas redes sociais.

Estas, aliás, tornaram-se o principal meio de informação e análise embasada sobre a catástrofe, dando de goleada na na mídia. No Facebook, sobretudo, cientistas anteciparam, com alto grau de acerto, a abrangência do desastre e seus efeitos sobre a população; advogados e procuradores desvelaram com precisão tanto a estratégia de minimação de danos dos advogados da empresa quanto o teor e o timing da ação do Ministério Público; ambientalistas predisseram o processo de “cimentação” do leito do Rio Doce e a mortandade de sua biosfera; biólogos marinhos forneceram projeções baseadas em modelos científicos acerca dos danos que a lama tóxica deverá causar ao chegar ao mar (afetando por décadas nutrientes da cadeia alimentar de 10.00km2 do Atlântico Sul e de três unidades de conservação marinha).



Tentativa de controle da informação
Também a inacreditável defesa prévia que o governador Fernando Pimentel (PT/MG) fez da mineradora Samarco e o fato de se dirigir à população do interior das instalações da empresa - onde funcionou, longe das vistas de moradores e da mídia, o Centro de Operações e Buscas responsável pelo socorro - tiveram a gravidade de sua significação analisadas com rigor, verve e com uma contundência que a imprensa ficou devendo ao leitor.

Ainda mais importante, merece ser destacado que, nas redes sociais, o drama da destruição de vidas humanas, animais e ecossistemas foi retratado direto da fonte, com expressão de subjetividade, protesto e indignação (e não com a dramaticidade direcionada e lacrimosa da cobertura à la TV Globo, em que o sofrimento das vítimas serve ao sentimentalismo piedoso, e não ao questionamento de culpados e modos de compensação).



Para além da crise
É evidente que, em meio a tal produção, difundiu-se muita boataria – e algumas bolas foras - mas, por um lado, nas redes sociais, há de se adotar critérios para selecionar perfis de especialistas e pessoas criteriosas (reconhecê-las é mais fácil do que se pensa); e, por outro, de se utilizar os meios que a própria internet oferece para checar suas informações. O saldo, no caso em questão, foi amplamente positivo.

Há de se reconhecer, porém, que a imprensa não tem – nem deve ter - a mesma velocidade ou o mesmo direito à proporção de erros das redes sociais. Por outro lado, isso não pode servir de desculpa para uma cobertura preguiçosa, omissa e não raro tendenciosa como a que, com raríssimas exceções – como a coluna de Míriam Leitão, um oásis de informação especializada –, fez do maior desastre ambiental da história do país.



Sem desculpas
Sobretudo porque, mesmo com as redações reduzidas e em plena crise do setor - e respeitado o tempo de produção do jornalismo diário - os jornais ainda têm recursos materiais, tecnológicos e humanos para produzir matérias e análises informadas e diversificadas - inclusive com o auxílio das novas tecnologias -, ainda mais sobre um evento que acontece na própria região Sudeste.

Ao falhar de forma flagrante em fornecer aos leitores um retrato condizente de um crime ambiental de grandes proporções, que afeta diretamente dois estados e centenas de milhares de pessoas, o jornalismo não deixa apenas de corresponder, uma vez mais, ao dístico de inspiração iluminista que clama para si, mas deixa a impressão – justa ou não - de que sua dependência comercial do grande capital, representado no caso pela joint venture internacional Vale/BHP Billion, fala mais alto do que o compromisso cívico que, com seu estímulo, alguns teimam em lhe atribuir.



Fatores principais
Por seu lado, embora a internet seja frequentemente acusada de ser um meio permeado pelo radicalismo e pelo acirrado maniqueísmo político, as redes sociais conseguiram – de uma maneira que a imprensa foi incapaz - estabelecer, além da culpabilidade da Samarco,  alguns aspectos importantes e contraditórios que ensejaram e tiveram papel determinante para a tragédia da Samarco. Tais como:

      1. As ligações da Vale e da Samarco com políticos de quase todos os partidos, para cujas campanhas deram volumosas contribuições, e o grau de indistinção entre público e privado que marca uma série de empreendimentos envolvendo as empresas, nos âmbitos estadual e federal;
      1. Os efeitos deletérios que a afoita privatização da Vale, em um cenário de desmonte do Estado e de ineficiência regulatória, legou ao processo, debitados na conta da presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP);
      1. O agravamento de tais deficiências em um modelo que, sem abrir mão da privatização, a combina contraditoriamente a uma política arcaica de desenvolvimento, em que as licenças ambientais não passam de empecilhos a ser “desenrolados” com a maior rapidez possível, características distintivas da administração petista que há 13 longos governa o Brasil – período mais do que suficiente para atenuar, ou mesmo reverter, o que rotula como “herança maldita” do governo anterior;
      1. A leniência na concessão de licenças ambientais e nas atividades de fiscalização e controle em âmbito estadual, irresponsabilidades divididas entre o tucano Aécio Neves (PSDB/MG) e o citado Pimentel.
A tudo isso soma-se a atuação deplorável da presidente Dilma Russeff (PT/RS) ante a tragédia, seu discurso titubeante, sua omissão no envio de ajuda material e humana, sua inacreditavelmente desrespeitosa demora de uma semana em visitar a região atingida, conduta que foi retratada e analisada nas redes sociais com a devida indignação – a qual a mídia, embora frequentemente acusada de “golpista”, preferiu atenuar ou mesmo ignorar.



Arcaísmos
O sofrível desempenho da imprensa na cobertura da tragédia de Mariana preocupa e constrange, mas não surpreende. Assim como acontece com editorias como Saúde ou Ciência, o tratamento da temática ambiental tem sido marcado, há tempos, por deficiência e omissão.

Trata-se de uma lacuna e um anacronismo cuja gravidade cresce em proporção à importância que o ambientalismo recebe – ou deveria receber – nas sociedades contemporâneas, numa dinâmica que determina se será dificultada ou facilitada a ocorrência de tragédias ambientais perfeitamente evitáveis - como a perpetrada pela Samarco.



(Imagem retirada daqui)

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