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domingo, 8 de junho de 2014

PT e a crise na esquerda

Por paradoxal que possa aparecer, após três mandatos presidenciais petistas a esquerda vive um momento de crise: estamos às vésperas de uma eleição em que os candidatos com chance competem entre si para ver quem agrada mais ao mercado.

Em tal cenário, as pautas reformistas, o pendor (auto)crítico e a capacidade de sonhar deram lugar a um pragmatismo pretensamente "aideológico", no qual temas como privatização, alianças políticas de interesse e fórmulas de controle da macroeconomia - o chamado "tripé", de gênese neoliberal – tornam-se itens comuns à pauta de todas as forças políticas em conflito.



Mudar para conservar
O pragmatismo petista que há 12 anos soava como uma maneira inteligente de levar a esquerda ao poder perpetuou-se como mais um dentre tantos "acordos por cima" de nossa história política, com suas práticas conciliatórias que jamais foram revistas em prol sequer de um reformismo moderado. Lampedusa nos trópicos.

Do cavalo de Troia não desceram sorrateiros ativistas e a esperteza foi transmutada em rendição, grafada na Carta ao Povo Brasileiro, declaração de princípios que afinal mostrou não se tratar de despiste, mas, assim como os acordos com grupos religiosos que ferem a laicidade constitucional do Estado, de compromisso inquebrantável (já a promessa de não privatizar o Pré-Sal, publicamente assumida por Dilma em 2010, esta sim, revelou-se engodo eleitoreiro).

Pior: o preço cobrado pelo pragmatismo e pelo desprezo à ideologia que se tornaram características distintivas do petismo neste século mostra-se, enfim, altíssimo, do qual a ausência ou invisibilidade de uma plataforma de esquerda no atual cenário eleitoral é apenas uma mostra.



Régua alheia
O que os militantes que postam gráficos contrapondo o péssimo governo FHC ao que consideram os maravilhosos governos Lula e Dila não entendem é que a grande tragédia do PT não está relacionada a sua eficácia ou não no plano administrativo, mas ao fato de ter sucumbido ao quadro valorativo do status quo conservador; ao medir-se a si mesmo – e permitir que outros assim o meçam - pela régua do mercado; ao se acovardar, recusando-se, durante longos 12 anos, ao debate ideológico e ao desfralde das bandeiras históricas do partido e da esquerda.

Enquanto, insuflado pelo fanatismo cego da militância, o PT se contentava com a meta medíocre de ser melhor que FHC nos quesitos econômicos, desperdiçava, com o retorno à privatização e ao fiscalismo, a oportunidade de colocar um prego no caixão do neoliberalismo na América Latina, trazendo uma alternativa original à questão, como por um fugaz momento o governo Lula pareceu fazer.

E esse retrocesso não foi imposto de fora para dentro, mas fruto de uma decisão deliberada tomada no início do governo Dilma, com vistas a ampliação da hegemonia eleitoral, com a incorporação de setores conservadores antes refratários ao PT. Vem daí a cômoda e para alguns inexplicável determinação não só de não regular a mídia, mas de mantê-la regiamente regada com as verbas da Secom.



O menos pior dos iguais?
A aproximação estratégica com o conservadorismo, somado ao comodismo da renúncia de inovar e de promover mudanças estruturais, reduz drasticamente o diferencial do petismo para com as demais forças em competição, com as diferenças reduzindo-se ao plano quantitativo.

Argumenta-se que o petismo se distinguiria por ter promovido a ascensão de setores pobres e miseráveis, via programas de seguridade social como Bolsa-Família, e, através da ampliação do acesso ao crédito num contexto de salário mínimo indexado, ter patrocinado a emergência de uma classe média com poder de compra.

Para além dos questionamentos objetivos – como os que dizem respeito aos baixos valores que determinam a passagem de uma classe social a outra - parece não restar dúvidas de que o combate a miséria e à pobreza constitui o ponto mais meritório da administração petista e uma questão nacional prioritária.

Talvez nada corrobore mais tal afirmação do que a própria postura dos adversários de Dilma na corrida presidencial em relação ao tema, com tanto Aécio quanto Eduardo Campos se comprometendo com a manutenção de tal combate – e, ainda que a sinceridade de tais intenções possa e deva ser posta em questão, a erradicação da miséria e da pobreza não pode resumir-se a trunfo eleitoral de um partido (embora a contribuição deste para a questão deva ser reconhecida inclusive nas urnas, vis-à-vis demais quesitos relevantes).



Fim de ciclo
Já quanto à política econômica, ora esgota-se o modelo petista, intrinsecamente pró-capitalista, de expandir a economia via acréscimo do consumo, para assim – e com o auxílio dos mencionados programas de renda mínima – incorporar à classe média parte da base da pirâmide. E esgota-se por três razões:

  1. O acesso ao consumo se mostra uma forma apenas parcial de promover tal redesenho social, já que as demais demandas imprescindíveis à plena cidadania permaneceriam inacessíveis ou precárias para tais estratos socioeconômicos. Da insatisfação daí gerada derivariam, segundo a maioria dos cientistas sociais, os protestos deflagrados a partir de junho;

  1. Como ocorre neste exato momento, a ascensão via consumo torna-se lenta ou estanca-se à medida que cresce o endividamento das famílias ou que, satisfeitas necessidades básicas de consumo (eletrodomésticos, carro), este passa a ser mais seletivo e ocasional, inclusive devido ao amadurecimento no modo de lidar com os encargos de novos endividamentos (juros, taxas, impossibilidade de poupar);

  1. As grave assimetrias sociais do pais sempre se expressaram de forma mais aguda na base e no topo da pirâmide, cume onde uma parcela ínfima da população detém mais da metade da riqueza do país. O modelo petista concentrou-se apenas na base, não só mantendo intactos, mas aumentando os ganhos dos ricos e milionários, sem taxar fortunas ou adotar qualquer medida de compensação pelos lucros pornográficos de bancos, corporações e teles (cujas multas pelo péssimo e caro serviço oferecido têm sido sistematicamente perdoadas pelo governo).



Bolhas e turbas
Tudo somado, o legado é que as eleições 2014, como já dito, não apresentam nenhum candidato competitivo realmente de esquerda, ou seja, que se oponha frontalmente ao capitalismo de mercado e à ideologia neoliberal de forma ora mais, ora menos explícita orienta as atuais políticas econômicas. Tal papel fora desempenhado não só pelo próprio Lula, mas eleições anteriores à sua transformação em Lulinha Paz e Amor (2002), mas, com mais propriedade, pelo saudoso Leonel Brizola, que prometia "instaurar uma auditoria na Rede Globo na primeira manhã do primeiro dia do meu mandato".

Mas isso são águas passadas. Na atual gestão petista, a autocrítica pública foi simplesmente abandonada, substituída pelo que chamo de "síndrome do coitadismo", cujos sintomas são uma tendência a atribuir à mídia ou à Justiça o ônus por todo e qualquer revés sofrido pelo partido, mesmo quando o comportamento deste contraria os compromissos eleitorais, a ética política ou mesmo as leis. Açulado pela atmosfera de turba das redes sociais, com sua recusa intrínseca ao convívio com o pensamento dissidente ou contrário, o grau de negação e de autoilusão petista atingiu nos últimos meses proporções tamanhas que talvez só a derrota nas eleições presidenciais tenha o poder de chamá-los à realidade e gerar efetivamente uma autocrítica e uma redefinição programática para além da busca do poder pelo poder.



Votos da esquerda
Agora, que as intenções de voto fugazmente conquistadas junto ao eleitorado conservador bateram asas e voaram – à mínima constituição de uma candidatura em seu próprio campo, como este blog cansou de alertar que aconteceria – busca-se desesperadamente o voto dos setores dissidentes da esquerda, vilipendiados durante todo o atual governo, para os quais agora se acena com a regularização da mídia negligenciada durante 12 anos e com políticas participativas que nem o susto com as Jornadas de junho foi capaz de efetivar.

No entanto, não há razões objetivas para que se acredite que o petismo, em sua aliança com o conservadorismo do PMDB, Maluf e companhia, vá efetivamente fazer uma coisa nem outra, nem que tudo não passe de promessa eleitoreira a ser posta de lado uma vez no poder, como Dilma fez com o compromisso de não privatizar o Pré-Sal, a prioridade à educação e a banda larga boa e barata para todos, entre tantos outras promessas da campanha de quatro anos atrás. Por que desta vez seria diferente?


(imagem retirada daqui)

Um comentário:

Jorge Nogueira disse...

http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2012/12/por-uma-luta-consequente.html