As
reações à greve dos garis cariocas têm fornecido um retrato em
cores vivas dos preconceitos de classes no Brasil, tanto por parte da
ideologia que se depreende da ação do poder oficial quanto, em
particular, da insensibilidade social que marca a visão de uma certa
autodenominada elite.
Enquanto
pilhas de lixo se acumulavam nas ruas e a mídia corporativa insistia
em divulgar a versão oficial de que se tratava de uma greve "de
grupos de garis", estes eram humilhados e agredidos por seus
patrões, nas ruas, nas redes sociais, além de espancados pela
polícia por ousarem valer-se do direito constitucional à
manifestação pública - num tipo de reação oficial que se torna
perigosamente rotineira no país.
Coesão
e humilhação
Profissionais
responsáveis por uma atividade cansativa, insalubre e exercida em
condições estafantes, os garis entraram em greve em protesto pelo
salário de fome que recebem (em torno de R$800), pleiteando um
aumento para R$1.277. A Prefeitura ofereceu humilhantes R$77 de
aumento, propagandeando, de forma malandra, que com o adicional de
salubridade seriam alcançados R$1.200.
Foi
o suficiente para que um jornalista com salário de cinco dígitos e
gosto pela provocação barata declarasse, nas redes sociais,
considerar um valor alto, no que foi apoiado por uma manada disposta
a agredir os garis, humilhando-os por sua posição social e
atividade, comparando-os a animais e tripudiando sobre seu alegado
analfabetismo (não obstante a exigência de ensino médio para o
cargo).
Para
completar o espetáculo dantesco, com o fim da greve anunciado
unilateralmente, escoltas acompanharam hoje os garis que quiseram
voltar ao trabalho – para garantir-lhes proteção contra piquetes
ou, pergunta a professora Ivana Bentes (UFRJ), para coagi-los a
trabalhar (mais)?
Dê
um rolê
A
reação à greve dos garis é o terceiro de uma série de eventos
ocorridos no país nas últimas semanas, sem aparente conexão entre
si, a provocar comoção pública e evidenciar antagonismos e ódios
classistas que põem em xeque o amálgama da nação una e pacífica,
esse mito que a realidade seguidamente desmente mas que tantos ainda
teimam em cultuar.
O
primeiro deles foi a reação histérica de setores da sociedade aos
chamados rolezinhos, a qual evidenciou que, à revelia da
Constituição de 1988, vigora no país um verdadeiro apartheid,
concretizado na recusa da alta classe média e dos mais endinheirados
em sequer conviver, no mesmo espaço de lazer, com cidadãos
pertencentes aos estratos sociais menos afortunados economicamente.
Ordenamento
classista
A
recusa deriva de um ordenamento social classista, impregnado de
racismo, o mesmo que determina a distinção entre elevador social e
de serviço ou que a família jante na copa e a criadagem coma as
sobras na cozinha. Segundo essa lógica, patrões e serviçais
diferem na origem e na essência – ontologicamente, portanto -,
devendo, em decorrência, ser submetidos a critérios axiológicos
distintos. Autoritarismo e subalternidade são os elementos
definidores de tal relação, inclusive e para além de seus limites
trabalhistas, os quais quanto mais opacos e indistintos mais agravam
– ao mesmo tempo que menos evidenciam - a assimetria inerente a tal
relação.
O
rolezinho borrou tais limites. E, por isso mesmo, gerou uma histérica reação
por parte de certos setores médios que emulam o ideário valorativo
da elite capitalista (mesmo que esta, por sua vez, os submeta e
explore). Com os porretes do Estado uma vez mais a serviço de
interesses privados, e a mesma novilíngua que concebe manifestantes
como vândalos transformando rolezinhos em arrastões, seus
protagonistas foram expulsos dos templos do consumo – e com eles os
demais jovens de aparência pobre e pele escura, agora assumidamente
persona non grata nos shopping centers paulistas.
Pelourinho
reloaded
O
segundo evento a provocar comoção e mal-estar, mesmo quando ainda
não se sabia tratar do início de uma série, foi o registro de um
adolescente, nu e com o corpo repleto de hematomas, atado a um poste
através de uma trava de bicicleta presa a seu pescoço. Ele furtara
algo para comer, despertando a fúria de homens de passado certamente
ilibado e índole pacífica, cuja ação redentora aligeirou os
vagarosos trâmites de nossa Justiça. Ah, a cordialidade dos
brasileiros!
Entretanto,
o mal-estar causado pela imagem não foi de todo atribuído à sua
própria simbologia social presente, mas, como vários analistas
assinalaram, ao fato de remeter à iconografia da escravidão: mais
especificamente, à terrível alusão a um negro em um tronco. Outros
observadores enxergaram na brutal desumanidade física e psicológica
imposta ao rapaz um reflexo do tratamento dispensado pelos nazistas a
suas vitimas.
Aqui
e agora
Sem
diminuir a efetividade de tais paralelismos, parece-me essencial
assinalar que, se por um lado ela intensifica o mal-estar ao associar
a imagem a um regime de racismo institucionalizado do qual o Brasil
foi, vergonhosamente, o ultimo país do mundo a se livrar; por outro,
ao qualificá-la como elemento de permanência do passado, seja o
oitocentismo escravocrata ou os conturbados anos 30 na Europa, ela
circunscreve a violência retratada ao âmbito do anacronismo,
o que não deixa de, numa estratégia psicológica escapista, ser uma
forma de projetá-la para fora do violentíssimo contexto presente em
que foi produzida e, assim, ainda que involuntariamente, matizá-la.
Pois
ainda que o paralelo com a escravidão e o nazismo possa se mostrar
procedente, o sentido profundo da tragédia do rapaz preso ao poste é que ela não pertence, a rigor, nem ao nosso passado escravocrata
nem ao holocausto nazista – ainda que carregue os genes de um e
talvez reverbere o outro -, mas à mais atual e presente realidade
contemporânea.
Uma
análise condizente do fenômeno não pode se furtar a examinar esse
dado essencial: com o agravante de ter sido praticado reiteradas
vezes desde então, o ato ignominioso de espancar e atar pequenos
infratores a postes ocorre em nosso tempo, aqui e agora, como uma
explosão de raiva coletiva de cidadãos do terceiro milênio, quase
sete décadas após a Declaração de Universal de Direitos Humanos e
em um país governado por forças de origem trabalhista que ainda se
dizem de centro-esquerda. Gostemos ou não, esses são os fatos.
Cala-a-boca
já morreu
Há
de se atentar para o paradoxo de que tamanha violência simbólica –
ou nem tanto - contra os que ocupam as franjas do sistema econômico
se dê após mais de uma década que as estatísticas recomendariam
caracterizar como de inclusão social massiva, inclusão esta que
teria beneficiado justamente os que agora querem reivindicar e são
brutalmente calados. Na outra ponta, seria omissão deixar de
assinalar que tal furor repressivo se dá em um momento no qual o
país está prestes a votar uma legislação draconiana contra toda e
qualquer forma de manifestação pública, no que seria um retrocesso
imensurável para nossa ainda incipiente democracia.
A
reação à greve dos garis, o mal-estar ante os rolezinhos e a
prática de linchar, despir e dependurar pequenos infratores são,
cada um, atos plenos de simbologia, altamente reveladores das
relações sociais no Brasil neste momento. Juntos e ocorridos em
sequência, trazem à tona ódios classistas que camadas de
patrimonialismo e repressão periférica trataram, por décadas, de
manter suprimidos, enquanto moldavam em sangue a máscara de aberto
sorriso da cordialidade brasileira, essa esfinge.
(Foto de autoria de Djalma Oliveira retirada daqui)
2 comentários:
Mestre Maurício, análise corretíssima da nossa realidade social e política.
Abraços!
Obrigado pelo comentário, Itárcio, abs.
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