No
momento mesmo em que se completam cinco décadas do golpe militar, e
após mais de 11 anos de petismo no poder, o Brasil vivencia, com uma
passividade preocupante, uma combinação de ameaças e de violações
consumadas aos preceitos constitucionais por parte do Estado, tanto
no que diz respeito aos direitos individuais quanto aos coletivos,
com particular incidência sobre os jovens.
O
terror como desculpa
Três
eventos da mais alta gravidade ilustram de forma clara tal processo:
o primeiro - e potencialmente mais danoso, devido a seu caráter
nacional - é a decretação iminente de uma legislação de exceção
visando condicionar, delimitar ou mesmo proibir manifestações e
protestos públicos.
Valendo-se
da desculpa multiuso do combate ao terrorismo e da manutenção da
ordem pública durante a Copa do Mundo, o conjunto de leis vem
preocupando
sindicatos, movimentos sociais e demais setores organizados da
sociedade, não só por seu poder de instrumentalização pelo mais
rasteiro jogo eleitoral, mas devido a seu caráter intrinsecamente
totalitário. Pois, francamente contrário ao direito de livre
manifestação e de protesto assegurado pela Constituição,
permitiria às forças de segurança tanto a violação a
priori da comunicação
privada de possíveis "agitadores" – ao estilo Minority
Report - quanto o incremento
do tempo de detenção de "vândalos", potenciais ou
efetivos, além do aumento despropositado da pena para ato ditos de
terrorismo, como o ataque a fachadas de bancos, lanchonetes
multinacionais e demais símbolos do capitalismo.
Bombas
no campus
O
segundo evento marcado por uma truculência em tudo destoante da
democracia consumou-se de forma súbita em Florianópolis, na última
quarta-feira: a invasão
do campus da UFSC pelas polícias federal e militar (sem que nem uma
nem outra tenha sido convocada, como determina a lei), com seus
agentes, cônscios da impunidade, exibindo extrema brutalidade no
trato de estudantes, professores e técnicos universitários.
O
show de truculência incluiu gás espirrado no rosto de um professor que argumentava civilizadamente, bombas jogadas irresponsavelmente
contra estudantes e crianças e até vidros de carro quebrados num
ato, este sim, de puro vandalismo por parte das forças que
supostamente deveriam assegurar a ordem – tudo para, ao final,
autuar três jovens por porte de uma pequena quantidade de maconha.
O
episódio, violador da necessária pax dos campi universitários,
fornece mais uma dentre tantas provas do despreparo e do gosto pela
truculência de nossas forças de segurança, que quase trinta anos
após o fim da ditadura ainda não assimilaram minimamente
pressupostos básicos da ação policial numa democracia, como a
presunção da inocência, o respeito aos Direitos Humanos e o
tratamento civilizado a inocentes e suspeitos, resguardado o uso da
violência para situações de resistência e enfrentamento.
Criminalização
da pobreza
A
política de ocupação e repressão periférica que atende pelo
singelo nome de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) responde pelo
terceiro dos episódios de violência recente a suscitar grave
preocupação. Na invasão que ora o Bope, com auxílio do Exército,
da Marinha e da Aeronáutica, protagoniza no complexo da Maré – um
conjunto de 16 favelas onde moram cerca de 130.000 pessoas - chama a
atenção a utilização de mandados de busca coletivos e genéricos
que, ao ignorarem a necessidade de se especificar individualmente a
alegada conduta criminosa, acabam por tratar como suspeitos todos os
moradores residentes em tais áreas, agravando a confusão entre
pobreza e criminalidade e promovendo a violação coletiva de
direitos individuais pela Constituição assegurados.
Trata-se,
portanto, de uma prática que viola o Estado de Direito e remete a
processos de discriminação em massa com forte laivo racista,
corriqueiros na repressão israelense à Palestina e nos Balcãs dos
anos 90 e cujo maior e mais horripilante exemplo vem da guetificação
pré-Holocausto dos judeus pelo nazismo (a alusão é apenas
histórica; nos situamos, evidentemente, em outra conjuntura - não
desprovida, porém, em menor escala, de suas próprias e graves
potencialidades).
Que
tal ação militar conte com o aval explícito de uma presidente –
e, no caso, Comandante em Chefe das Forças Armadas - egressa das
fileiras da esquerda e democraticamente eleita, é um dado que
evidencia o grau de naturalização e assimilação da violência
institucional pelo atual governo, constatação que se torna ainda
mais grave se levarmos em conta que as motivações eleitorais
motivantes de tal ocupação de território são públicas e
notórias.
Denúncia
na OEA
A
condição precípua da concessão do monopólio do uso da violência ao Estado é que ela seja usada rigorosamente de acordo com o que
determina a legislação, como último recurso e com seu emprego
limitado a mínimo necessário. Ou seja, exatamente o contrário do
que o país se acostumou a ver, na repressão periférica, na reação
oficial aos protestos, nos eventos sui generis por este texto
elencados.
A
tudo isso soma-se uma política de desenvolvimento tão arcaica que o
seu corolário tem sido um genocídio indígena em pleno terceiro
milênio. O Estado brasileiro acaba de ser denunciado
na OEA por ainda usar uma lei da ditadura militar no trato com as
populações indígenas – e os comentaristas governistas que
corretamente condenam o passado ditatorial e as ameaças golpistas
parecem não se dar conta da contradição e do autoritarismo
inerentes à política desenvolvimentista ora em curso.
Estado
de Exceção
Tornou-se
lugar comum do discurso da direita mais hidrófoba a tentativa de
classificar o governo de Dilma Rousseff como uma ditadura. Trata-se,
a rigor, de uma acusação tão grave quanto falsa: a despeito da
recusa à (auto)crítica e ao diálogo e da truculência no trato com
setores da sociedade, estamos em uma democracia – pouco avançada,
viciada, fraturada por linhas de classe, raça e gênero, mas
democracia. A despeito de tal constatação, os eventos acima
elencados não nos permitem ignorar o andamento de um processo de
agressão a princípios básicos dessa mesma democracia, que
potencialmente levam à relativização desta. Trata-se de uma
evidência da mais alta gravidade, que delimita ao âmbito econômico
e põe em xeque conquistas recentes das classes menos abastadas e só
beneficia o grande capital e as forças do conservadorismo.
Preocupantes
por si, tais violações – que claramente apontam para uma
relativização da democracia no Brasil, e não para o avanço desta
-, se tornam ainda mais nocivas, por um lado, por praticamente não
provocar reações, deflagrando-se sob um silêncio cúmplice ou
ignorante. Mereceria um exame à parte, quanto à formação dessa
aprovação surda, o papel da mídia "nos mecanismos de
legitimação simbólica do exercício do poder penal e do controle
social", como alude Vera Malaguti Batista no prefácio do livro
Punir os Pobres,
de Loïc Wacquant. Uma hipótese central a se considerar seria que o
papel político da mídia revelar-se-ia muito mais complexo do que os
adeptos do simplismo binário "PIG contra PT" querem fazer
crer – como fica particularmente claro no que concerne à cobertura
ufanista, no pior estilo "support our troops", que a Rede
Globo faz da invasão da Maré.
Por
outro lado, o alto - e sistemático - grau de violação dos direitos
sociais pelo Estado há de causar preocupação aos cidadãos e
cidadãs que realmente prezam pela democracia, ainda mais ante a
constatação de que tais retrocessos têm lugar em (e frequentemente
são patrocinadas por) um governo dito progressista, que muitos, por
fé ou hábito, anda situam na centro-esquerda, a despeito de seus
atos de truculência e do retrocesso institucional por ele
produzido. Minar a democracia é uma forma de golpeá-la a médio
prazo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário