O
gigante adormecido acordou. Subitamente e sem aviso, a tão criticada
passividade do povo brasileiro foi deixada de lado e as ruas foram
invadidas por jovens que vão literalmente à luta por melhores
condições de transporte e de vida. Mas alguns dos que permanecem
sentados, mesmo que à esquerda, insistem, por desconhecimento,
mesquinharia ou interesses inconfessáveis, em fingir que a luta dos
manifestantes é por "apenas" R$0,20.
Por
estes dias, há manifestações reais ocorrendo nas ruas e outras,
editadas, sendo retratadas nos telejornais, sem semelhança entre
umas e outras. O caráter elitista e antipovo da mídia brasileira,
seu temor de o que quer que seja popular – ainda mais na seara
política – assombra cada cobertura, que repete um discurso
monocórdio de criminalização dos protestos.
Reações
temerosas
Mas
não é só a mídia corporativa - e os setores conservadores - que
se esforça ao máximo para desqualificá-los, seja tipificando os
manifestantes como uma burguesia desocupada, seja tomando-os como
vândalos a quem cabe a responsabilidade exclusiva pela violência:
setores governistas ora empenham-se avidamente em semelhante intento,
temerosos, a um tempo, das consequências do protesto para a gestão
Haddad, da perda do monopólio de mobilização popular na política
brasileira e do estreitamento do amplo espaço que acreditam ainda
ocupar na esquerda brasileira.
Para
tanto, além da já costumeira desqualificação agressiva dos que
ousam criticar o governo, apelam a teorias conspiratórias variadas,
mas que têm em comum o fato de, como convém aos mitômanos,
interpretarem tudo como um complô contra o PT. Seja tentando jogar
no colo dos partidos à esquerda a responsabilidade pelos protestos
populares; seja através da negação inicial de que os protestos
incluíssem metrô e trem (desculpa negada já na convocação que o
Movimento Passe Livre fez para os protestos e desmentida de vez na
declaração pública de Alckmin de que era impossível diminuir as
tarifas dos meios de transporte sob a gestão do estado); seja
fingindo não perceber que Haddad e Alckmin agiram em uníssono.
O
papel de Haddad
Ocorre
que até blogueiros (outrora?) por eles prestigiados dirimem tais
ilusões. Para Luiz Carlos Azenha, autor do melhor texto sobre os
protestos,
"A classe média paulistana (...) experimentou na própria pele o comportamento autoritário, brutal e descontrolado da Polícia Militar de Geraldo Alckmin, com a conivência do PT, de Fernando Haddad e do ministro da Justiça, que ofereceu o reforço da Força Nacional."
Ao
comentar tal texto, Tácito Costa, editor do ótimo site Substantivo
Plural, resumiu com propriedade a reação conjunta dos mandatários:
"Discursos afinadíssimos os de Haddad e Alckmin (desde o início), defendendo a repressão ao movimento hoje no Bom Dia Brasil. Tão iguais em tudo que pareciam do mesmo partido. No final da matéria, entrou o ministro da Justiça oferecendo ajuda aos dois. Não, não era ajuda pra buscar uma saída negociada e política, mas para reprimir mesmo."
Ou
seja, a cadeia de comando da PM é liderada pelo governador, porém,
na maior repressão a protestos públicos desde a ditadura militar,
Haddad também tem as mãos respingadas de sangue do povo.
Reação
pífia
Mas,
ainda que a título de hipótese, se conceda a Haddad aquilo que os
próprios petistas negaram ao prefeito anterior, Kassab – em cujo
mandato a repressão da PM a protestos populares foi por eles
rotineiramente creditada ao alcaide -, é forçoso reconhecer que a
reação de Haddad tem sido, para usar um termo ameno, tímida. Se
ele não compactua com o modo como a repressão foi conduzida e está
caindo em uma suposta armadilha armada por Alckmin, como setores
governistas apregoam, então deveria condenar energicamente a ação
da PM, reconhecer a legitimidade da demanda e dos protestos e
suspender temporariamente o aumento.
Porém,
não. Ao chegar de Paris, além de, como Alckmin, confirmar que não
há meios financeiros para evitar o aumento, Haddad observou
candidamente que "No último protesto violência foi dos
manifestantes, hoje foi da PM", como se fosse um comentarista de
futebol, um "craque Neto" da vida comentando Birigui x
Catanduvense. Já em entrevista a O Globo, afirmou que
"aparentemente, a PM não seguiu protocolos". O
comportamento de Haddad lembra o de FHC quando se referia ao país
eternamente em crise como um analista isento que não tivesse nada a
ver com a coisa.
A
tal respeito questiona Leandro Fortes, na insuspeita Carta Capital:
"Onde está o PT? Onde está o prefeito Fernando Haddad, este que já avisou, de Paris, pelo Twitter, que não irá “tolerar vandalismo”? Onde estão os vereadores, deputados e senadores do partido que nasceu nas monumentais greves do ABC paulista, em plena ditadura militar, que os chamava, ora vejam, de baderneiros? Nada. Ninguém de braços dados para enfrentar a tropa de choque. Todos quietinhos, com seus militantes sempre tão subordinados, para saber o que vai sair no Jornal Nacional e na Veja de domingo. Até lá, melhor deixar as barbas de molho. Para os que ainda têm barba, claro."
Antagônicos
semelhantes
Não
deixa de ser (tristemente) irônico constatar que tanto o governismo
quanto a mídia corporativa (vulgo "PIG") desaprovem as
manifestações, e que os termos usados por blogueiros identificados
com o PT – como Paulo Henrique Amorim – em seu esforço para
desqualificar os protestos tenham sido, inicialmente, os mesmíssimos
utilizados por ninguém menos do que Arnaldo Jabor, figura caricata
da direita midiática, ambos questionando suposta ausência de
trabalhadores e alegando tratar-se de um movimento da classe média
burguesa. Depois, quando se tocaram da bola fora, esses mesmos
blogueiros voltaram atrás e passaram a posar de apoiadores das
passeatas.
Tudo
somado, a reação de setores petistas aos protestos é mais um fator
a reforçar a impressão de que, por mais justa que a maioria das
críticas ao comportamento da mídia seja, o hábito de transferir
culpas para o "PIG" tem feito com que governistas tenham se
acostumado à mania de criar, a cada impasse, subterfúgios e teorias
conspiratórias visando colocar o PT na posição de vítima.
Provas
do retrocesso
Mas
o PT, no poder há mais de uma década, está longe de ser uma
vítima, e se os protestos se deram à revelia do partido e (em
parte) contra algumas de suas administrações municipais, é em
decorrência direta do descompasso entre a guinada conservadora do
partido e os anseios políticos de parte da juventude e da esquerda,
que não parecem dispostas a compactuar com o retrocesso que tem
lugar, na legenda e na administração do país, notadamente, a
partir da eleição de Dilma Rousseff.
Começou,
na verdade, ainda na temporada eleitoral, com o pacto com os setores
religiosos, através do qual a candidata se comprometeu a abster-se
de questões como direito ao aborto e ao casamento gay. E já a
partir do primeiro mês de governo Dilma, a guinada à direita não
parou mais: rigor fiscal pior que nos tempos tucanos, com adoção da
meta de zerar o déficit nominal pressionando o orçamento e
agravando os problemas de caixa que as metas de superávit primário
já impunham; tentativa de composição com os piores setores da
mídia corporativa, com a manutenção de vultosos recursos da Secom
e o abandono do projeto de regularizar as comunicações; total falta
de diálogo com sindicatos e demais entidades da sociedade civil
organizada; tratamento unilateral, com recusa à negociação, corte
de ponto e eventual violência policial contra grevistas, notadamente
os do magistério superior, cuja greve foi prorrogada
desnecessariamente por quatro longos meses; concessão de descontos
prolongados de IPI para carros e eletrodomésticos sem exigir
contrapartida nenhuma, seja em relação a preços ou manutenção de
empregos.
Modelo
híbrido
Tudo
isso submetido a um modelo econômico baseado no desenvolvimentismo a
qualquer custo e na concessão de crédito - leia-se endividamento -
como forma de incentivar o consumo e ampliar o mercado interno,
paradoxalmente combinados a um arrocho fiscal de inspiração
neoliberal que vem impondo cortes anuais no orçamento os quais
atrofiam o desenvolvimento de áreas sociais como Educação, Saúde
e Cultura - que muito haviam progredido na Era Lula.
Pior:
Dilma não teve escrúpulos em recorrer às privatizações, que
condenara durante toda a campanha eleitoral: primeiro timidamente,
com dois aeroportos; depois, de forma sequencial – e com o
desplante de alegar necessidade de "fazer caixa" para
investir -, com mais aeroportos, portos, megaobras, direitos de
exploração do petróleo – e vem aí o bilionário leilão do
Pré-Sal, quando o entreguismo das riquezas do país deve atingir o
ápice. É o futuro do Brasil sendo comprometido: não há como um
governo que privatiza regularmente se dizer de esquerda.
Corolário
dessa retomada de um ideário de Brasil-Grande 40 após o "milagre
econômico", o deslocamento forçado e o genocídio de
indígenas, na pior política indigenista das últimas décadas.
Resultados
ruins
Toda
essa ginástica para obter um resultado que, se, como os governistas
gostam de lembrar, é melhor do que o de economias europeias em
crise, está muito aquém do conseguido por vários de nossos
vizinhos latino-americanos, pelos demais países do BRIC e pelos
tigres asiáticos, cono analisaremos com detalhe em um próximo
texto. Só um breve exemplo, aleatório mas contundente: o PIB de
2012 foi de 6,9% no Peru; de 5,5% no Chile; de 3,9% no México; de
2,5% na África do Sul; de 2% na Coreia. No Brasil, ficou em míseros
0,9%. A economia brasileira não está tão bem e há indícios
preocupantes. Isso não é alarmismo, é constatação (leia aqui o
artigo "A economia repete erros", da economista Laura
Macedo, da FGV, publicado em Carta Capital). Mas ao invés de
debaterem os fatos e os números consolidados, os governistas
acostumaram-se à solução mais fácil: acusar o PIG e o
"terrorismo" midiático.
A
rigor, até 0 Bolsa-Família, de fundamental importância para o
combate à pobreza, retrocedeu, posto que o em si questionável valor
mínimo de R$70/mês - estipulado no momento de implementação do
programa, há uma década, como minimo para uma pessoa não ser
considerada miserável -, se reajustado de acordo com a inflação do
período faria com que cerca de 22,3 milhões de pessoas -
aproximadamente 44% do total de beneficiados - voltassem a se situar
abaixo da linha de miséria.
Hegemonia
a qualquer preço
Já
antes disso tudo, o saudável embate das convenções partidárias,
tradicional no PT, deu lugar ao dedazo, antes método tucano de
escolhas de candidato, agora a cargo do capo Lula, a quem uma
militância cada vez mais fanatizada e menos autocrítica passou a
saudar pelo talento para eleger "postes" – primeiro
Dilma, depois Haddad -, fingindo não ver os danos à democracia –
não só interna - e ao estímulo à participação popular nas
decisões do partido. Para completar, enquanto, no plano federal, as
alianças tornam-se tão elásticas a ponto de incluir a ruralista
Katia Abreu, acusada de exploração de mão de obra escrava, e o
vice de – vejam bem - Alckmin, Afif Domingos, na seara municipal
Lula e Haddad vão à mansão do criminoso internacionalmente
procurado Paulo Maluf – comprada sabe-se lá com que dinheiro –
selar acordo eleitoral. A realpolitik se sobrepondo a qualquer limite
ético.
Só
a ingenuidade mais tacanha ou desprezo mais acerbado pelo eleitor
poderiam fazer supor que não haveria consequências para tais atos
de estelionato eleitoral e de lesa-esquerda. O tempo passou na janela
e só o governismo petista não viu.
A
força do novo
Seja
como for, o fato incontornável evidenciado pelos protestos é que o
monopólio da capacidade de organizar movimentações populares e o
ímpeto de mudanças não mais pertencem ao PT, que se transformou no
partido da ordem e do status quo, tornando-se cada vez mais, com seu
retorno vergonhoso às privatizações que comprometem em décadas o
futuro do país, seu conformismo e seus tímidos e parciais protestos
ante o banho de sangue promovido pela PM paulista, pouco distinguível
do PSDB de triste memória, o qual tanto critica.
A
força do novo e do transformador, hoje, não tem partido; exala de
uma juventude corajosa e persistente, que resgata não só a cidade
como arena para o exercício da política – seu berço originário
na Grécia Antiga -, mas a prática autenticamente esquerdista de
dilatar os limites do possível e buscar o impossível como forma de
transformar a sociedade.
Como
homenagem do blog a esses jovens cidadãos e cidadãs que ousaram
resgatar a utopia, um videoclipe que tem tudo a ver não só com o
atual momento político do país, mas com os ecos, no presente, do
período que retrata:
Um comentário:
Bom, como sempre.
Quem só conhece o comportamento bovino dirigido por um pastor não consegue explicar nada que seja "horizontal".
E a única reação é, claro, querer se aproveitar.
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