No
futuro, quando os historiadores forem examinar o período que hoje
vivemos no Brasil, irão se deparar com uma questão das mais
contraditórias: a relação do governo Dilma Rousseff com a mídia.
A
administração Lula, diretamente afetada pela condição de primeiro
governo de centro-esquerda do país desde a deposição de João
Goulart, em 1964, não teve disposição ou não foi capaz de
implementar uma Lei de Meios que democratizasse as comunicações e,
assim, coibisse a transformação de parte da mídia em usina de
escândalos, factoides e desqualificações. A inação talvez se
explique, parcialmente – embora não se justifique -, pela própria
virulência de tal transformação, que manteve durante boa parte do
mandato o governo nas cordas, bombardeado por uma sucessão de
denúncias, reais ou fabricadas, num processo de permanente chantagem
que atinge seu ápice – mas de modo algum seu fim - durante o
"mensalão".
Porém
se, por conveniência ou medo, o ex-presidente Lula manteve intacta a
arcaica estrutura comunicacional do país, limitando-se a
redirecionar parte das verbas publicitárias federais de modo a
também irrigar rádios e imprensa regionais - e, em bases ínfimas,
órgãos da internet -, não se furtou a legar à sua sucessora,
através do trabalho incansável de Franklin Martins à frente da
Secom, um projeto fundamentado de regulamentação das comunicações
e um plano viável para expansão da banda larga a curto e médio
prazos.
Candidata
encarregada de dar prosseguimento e aprofundar o legado de Lula, a
expectativa, há exatos três anos, era que Dilma, se vitoriosa, tão
logo assumisse, encaminhasse tais projetos e priorizasse a questão
comunicacional através da promulgação de uma Lei dos Meios que
regulamentasse, em bases republicanas, a atividade midiática,
democratizando de fato a área comunicacional no país.
Requisitos
da democracia
Trata-se
de uma bandeira histórica da esquerda brasileira e de condição
sine quae non para o exercício pleno da cidadania, tal como
fundamentado por uma linhagem de pensadores vigorosos – de Perseu
Abramo a Venício A. de Lima –, os quais demonstraram de forma
comprovada, com dados e exemplos comparativos, o jugo oligárquico, o
caráter antidemocrata e o atraso estrutural que caracterizam a mídia
corporativa no Brasil. Que tais características tenham, na última
década, potencializado o ódio de classes e transformado, não
raramente, a mídia em um raivoso porta-voz da oposição acrescenta
ainda mais urgência à questão das comunicações no país.
Como
antídoto a esta realidade incompatível com uma democracia em
consolidação, têm sido recomendados, como elementos essenciais
internacionalmente consagrados, a proibição da propriedade cruzada
dos meios de comunicação – ou seja, que uma mesma empresa de
comunicação tenha imprensa, rádio e TV em uma mesma região -, a
diversificação de opções e a democratização do acesso a meios e
conteúdos. Ainda dentro de tal espírito, os novos tempos digitais
tornam imprescindível a inclusão da expansão da banda larga a
preços acessíveis e condições técnicas condizentes, de modo a
incorporar parte do ainda enorme contingente de excluídos digitais.
Flerte
com a mídia
Malgrado
as altas expectativas suscitadas por uma administração que recebeu
o país em muito melhores condições do que FHC o legara a Lula, o
governo Dilma, porém, logo deu mostras de que não pretendia
contemplar tal agenda. Um primeiro movimento de recuo tem lugar já
ao final da campanha eleitoral, com a seguinte declaração, daí em
diante recorrente, em versões variadas, mas conservando a mesma
ideia-base: "Prefiro o barulho da imprensa livre do que o
silêncio das ditaduras". A meu ver, o jornalista Paulo Nogueira
foi quem melhor dissecou os sentidos inerentes a tal acacianismo.
Espécie
de Carta ao Povo Brasileiro para a questão comunicacional, tais
palavras foram a senha, para a plutocracia midiática, de que o
governo não apoiaria uma Lei dos Meios e de que não haveria
retaliação contra os abusos cometidos durante o período eleitoral
– os quais incluem, entre inúmeros outros exemplos, uma ficha
policial falsa da candidata petista na capa de edição dominical da
Folha de S. Paulo e os esforços do Jornal Nacional e de seus experts
de encomenda para transformar em chumbo uma bolinha de papel atirada
à fronte do oposicionista José Serra.
Daí
por diante a história é conhecida: primeiro a nova presidente
flertou com a mídia corporativa, posando para capa da Veja,
cozinhando ao lado de Ana Maria Braga, chegando a voar de Brasília a
São Paulo para confraternizar com o alto tucanato num rega-bofe
promovido pela Folha de S. Paulo, jornal de propriedade de uma
empresa privada de comunicação.
Usina
de escândalos
Deu
em nada, ou seja, a mídia continuou a praticar o mesmo jogo de
derruba-presidente da era Lula, com capas estapafúrdias, um
exercício cotidiano da negatividade e do ódio incompatível com o
bom jornalismo, denúncias semanais que permaneciam nas manchetes até
que os acusados fossem demitidos pelo governo – e, como o comprovam
o caso do ex-ministro Orlando Silva e da ex-secretária Erenice
Guerra, quando, meses mais tarde, a Justiça os decretasse inocentes,
sequer uma matéria viria a ser publicada, quanto mais um pedido de
desculpa ou um destaque minimamente proporcional à denúncia.
Clara
fica não apenas a leviandade das acusações – e o mau jornalismo
que isso denota -, mas a constatação de que o interesse da mídia
nunca foi a moralização da coisa pública, mas tão-somente a
escandalização com objetivos eleitoreiros ou golpistas.
Pelo
contrário, com a coincidência cronometrada – inaceitável em um
país verdadeiramente democrático – do julgamento do mensalão com
as eleições de 2012, os grupos de comunicação, em clave de
espetáculo, deram vazão a um verdadeiro linchamento midiático, no
melhor estilo esfola-e-mata, incluindo uma narratividade dramática
composta de bandidos, mocinhos e de um herói solitário e vingativo,
como convém à fabulação do totalitarismo.
Frutos
do "mensalão"
O
resultado não poderia ser outro: um acirramento de ânimos de parte
a parte, uns celebrando a única vitória do conservadorismo na
última década (ainda que obtida "no tapetão" e não nas
urnas); outros – e aqui se incluem muitos dos que até então
vinham defendendo, por estrategismo ou por temor, a parcimônia do
governo para com a mídia – vociferando contra o que concebem como
uma aliança golpista entre mídia e Justiça, destinada a, num
futuro próximo, melar os resultados das urnas se este continuar a
desapontá-las.
O
nosso arguto historiador do futuro, beneficiando-se da perspectiva
distanciada que o tempo dá e sem a obrigação de entrar no mérito
da questão judicial, há de perceber que a insistência com que a
conduta da mídia no "mensalão" foi invocada como um dos
principais pretextos para regulá-la acabou, na verdade, por abrir
flancos que beneficiaram os que à regularização se opõem. Não
que a conduta da mídia durante o processo não tenha sido, em larga
medida, questionável. Ela o foi, bem como, em ainda maior grau, o
foram várias das decisões dos juízes, notadamente – mas não
exclusivamente – a inversão do ônus da prova, o uso por demais
inovador da teoria do domínio dos fatos e as condenações sem
provas mas "permitidas pela literatura jurídica".
Ocorre,
porém, que facilitou tremendamente a tarefa da mídia de se fazer de
vítima e de confundir propositadamente o clamor republicano por um
jornalismo que respeite ao menos uma deontologia básica e
efetivamente sirva ao público, com os queixumes de uma parcela do
eleitorado com sede de vingança pela derrota jurídica e política
sofrida em um julgamento que, para a maioria leiga da população,
transcorreu em normalidade. E, neste ponto convém frisar, tal
impressão errônea se deu não só pela atuação tendenciosa da
mídia, mas pelo misto de incompetência comunicacional, omissão e
recusa deliberada das forças políticas ora no poder de denunciarem
os interesses em jogo e as práticas para tal utilizadas no
julgamento.
Agendas
próprias
Nosso
arguto historiador certamente também se dará conta de que o uso da
pregnante sigla PIG (Partido da Imprensa Golpista) pode até ter sido
uma maneira escrachada e efetiva de tipificar a mídia corporativa,
em um cenário de enfrentamento aberto. Que o recurso à sigla não
deixa de traduzir um desejo latente que a conduta de grande parte da
mídia no período permitiu entrever. Mas que tal uso traz também em
seu bojo um maniqueísmo que o exame detalhado dos fatos desmente,
pois quando a agenda conservadora da mídia e a agenda dos governos
federais petistas coincide, o alegado golpismo frequentemente dá
lugar ao silêncio cúmplice ou à ratificação ponderada.
Não
faltarão exemplos para que nosso historiador ilustre tal hipóteses.
Três deles:
1) A mudez quase total da mídia durante a repressão do governo Dilma à greve dos professores federais, em 2012, que se alastrou por quatro meses e incluiu recusa ferrenha à negociação, articulação de um sindicato pelego para simular acordo e protestantes reprimidos a cassetetes na frente do MEC, em Brasília. Ante esse feito que nem FHC nem a ditadura militar ousaram, a mídia não emitiu um pio de protesto. Se a intenção fosse mesmo dar um golpe no governo seria um prato cheio para desconstruir negativamente a imagem de Dilma;2) O entusiasmo dos colunistas econômicos quando o governo Dilma retomou as antes tão criticadas privatizações, então apelidadas de concessões e que, de início alegadamente limitada a três aeroportos, logo se expandiu para ferrovias, rodovias e mais um punhado de aeroportos. Se quisesse mesmo golpear Dilma, que fácil seria para a mídia colocar-lhe a pecha de mentirosa e incoerente, contrapondo imagens da candidata criticando ferozmente a privatização e da presidente a saudar-lhe;3) O silêncio cúmplice da mídia para com as medidas de desoneração da folha de pagamentos, sem exigir dos setores beneficiados nenhuma contrapartida – como a manutenção de empregos e de preços – e, como apontou o insuspeito Luis Nassif, sem que o Ministério da Fazenda aponte como cobrirá o rombo na Previdência que tais medidas certamente causarão. Ora, como o episódio evidencia, não há golpismo que resista à desoneração da folha, clamor de décadas do patronato brasileiro, curiosamente atendido por um governo que se diz de centro-esquerda.
Benefícios
eleitorais
No
futuro, nosso historiador talvez venha a sugerir que se a relação
da mídia com o governo Dilma não foi tão marcada por um
maniqueísmo golpista, como uma parcela pequena mas barulhenta da
arena política quer fazer crer (pois a maioria do povo brasileiro
estava à margem desse debate e não tinha ideia sequer do que
signifique PIG), talvez seja necessário levar em conta que, malgrado
a notória má vontade da mídia para com o petismo, a própria
presidente se beneficiava, de um modo não evidente mas efetivo,
desta relação.
Tal
benefício talvez constituísse a principal explicação para os
altos índices de aprovação de que a mandatária vinha gozando nos
primeiros dois anos e meio de seu mandato, em que se verifica uma
incorporação de setores conservadores da classe média – como, de
forma notável, os que professam o neopentecostalismo -, comumente
refratários ao petismo.
Ajuda
a explicar também porque um ministro como Paulo Bernardo – que
antes confraternizava alegremente nas redes sociais, prometendo para
logo a democratização da banda larga, e hoje quer doar R$3bi para
as teles privatizadas para que estas cumpram o que é obrigação
contratual – goza neste momento não apenas de blindagem na
imprensa, mas do acesso a vultosos apoios financeiros eleitorais, dos
quais os candidatos governistas certamente também irão se
beneficiar.
Ante
esse cenário, a atual presidente não teria motivações eleitorais
para rever os critérios de distribuição de verbas publicitárias
federais, relativizando o cômputo da audiência como fator
determinante e implementando uma estratégia que visasse, em alguma
medida, a promover a inovação e a diversificação do campo
comunicacional no Brasil. Suas motivações teriam necessariamente de
ser de outra ordem, cívica, republicana – o que, entre outras
coisas, contrariaria o pragmatismo eleitoral petista adotado na
última década.
Questões
em aberto
Entretanto,
é apenas o nosso querido historiador, no futuro, quem saberá o
desenlace desse e dos demais dilemas subjacentes à relação de
Dilma Rousseff com a mídia corporativa – e quem poderá responder
questões ora prementes, tais como:
- Em que medida – se alguma - a manutenção de uma atitude passiva por parte da presidente traz efetivos benefícios eleitorais?
- O que garante que esses segmentos conservadores que ora apoiam Dilma não a deixarão na mão, sob forte estímulo midiático, tão logo disponham de um candidato minimamente viável advindo de seu próprio espectro político?
- Qual o limite de paciência de parcelas do eleitorado de esquerda que, tendo votado em Dilma, encontram-se exasperadas com o conservadorismo de sua gestão?
- Faz mesmo sentido, para a centro-esquerda, vencer uma eleição em que as alianças e os compromissos assumidos impõem, na prática, uma agenda conservadora?
- Até que ponto vale a pena sacrificar tudo – inclusive o direito republicano dos cidadãos brasileiros de viverem em uma sociedade com o setor comunicacional democratizado – em troca da realização de um projeto de poder?
(Imagem retirada daqui)
2 comentários:
Parabéns pelo Blog!
Ótima análise do momento atual em que, infelizmente, poucos têm tido a sensibilidade de perceber, além dos maniqueísmnos viciantes, os detalhes que para um observador do futuro ficarão patentes.
Obrigado, abs.
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