A
chamada "Lei Seca", em vigor no Brasil desde 2008, faz
parte de um esforço legítimo para reduzir a probabilidade de
acidentes de trânsito, principalmente aqueles com vítimas fatais ou
permanentemente lesionadas. A existência de uma série de pesquisas
que os correlacionam ao estupor alcoólico justificaria, de fato, a
fiscalização e punição de motoristas que dirijam embriagados, bem
como a tipificação penal para quem, em estado de embriaguez,
provocar morte ou invalidez no trânsito.
Já
o recém-efetivado endurecimento de tal legislação, além de
insuficientemente debatido com a sociedade, mostra-se altamente
questionável, indo na contramão de normas internacionalmente
consagradas ao não estabelecer um limite tolerável de consumo. Em
primeiro lugar, porque não há pesquisas conclusivas que estabeleçam
baixo consumo de álcool a aumento substancial de acidentes
automobilísticos; em segundo, porque, como debateremos a seguir,
traz em seu bojo uma série de efeitos nocivos à sociabilidade, à
economia, e mesmo à própria saúde pública a qual deveria
alegadamente beneficiar.
De
olho na arrecadação
De
acordo com a nova legislação, um casal não pode mais sair para
jantar e, como se faz em boa parte do mundo civilizado, fazer-se
acompanhar à refeição de uma -, apenas uma - taça de vinho ou
champanhe, hábito secular, elegante, que faz bem ao paladar - e,
pesquisas recentes o demonstram, ao coração. É preciso muito
obscurantismo ou fanatismo para achar que tal quantidade ínfima de
álcool, no transcorrer de um jantar, transformaria o casal em um
assassino potencial no trânsito.
Com
tal endurecimento legal, o Brasil se torna um dos países mais
repressores do Ocidente no que concerne a bebidas alcoólicas, já
que em vários países da Europa e na maioria dos estados
norte-americanos há uma dosagem tolerável de consumo – o
equivalente a entre uma e duas e meia latinhas de cerveja. Não deixa
de ser altamente significativo, no entanto, que a alegada preocupação
com o álcool não se estenda à restrição de campanhas
publicitárias ou ao estabelecimento de contrapartidas para a
indústria de bebidas, como a construção de uma rede para prevenção
e tratamento do alcoolismo – concentra-se unicamente numa
modalidade de repressão que pode vir a gerar vultosas receitas para
o Estado. Com isso, a utilização prioritária da polícia para fins
arrecadatórios, sobretudo aos finais de semana, é um risco que
pode vir a afetar ainda mais a segurança pública.
Falta
de diálogo e repressão
Outra
questão a se levar em conta é que não houve, por parte dos
governos, nenhuma contrapartida à nova legislação: os ônibus
urbanos e o metrô não tiveram seus horários estendidos para
transportar os boêmios de boa paz, que querem tomar sua cervejinha e
voltar para casa em segurança; tampouco foram criados esquemas
eficientes de transporte alternativo. Resta o táxi, que tem um preço
proibitivo em cidades como São Paulo e Brasília e, de qualquer
maneira, é economicamente inacessível à maioria da população nas
demais cidades do país.
Eis
um exemplo cabal da necessidade de aperfeiçoamento da democracia no
Brasil. Antes da decretação de uma lei como essa, de alcance
nacional, que mexe com hábitos sociais estabelecidos, deveria ter
sido estabelecido um amplo diálogo com a sociedade, que levasse em
conta os impactos da nova legislação e buscasse meios de amenizar
seus efeitos colaterais. Mas nada disso ocorre: simplesmente
decreta-se a lei, e o povo que trate de se virar para cumpri-la. As
elites têm recursos para fazê-lo, mas e quanto ao resto da
população?
Desse
modo, além de seu moralismo tacanho, a tal Lei Seca com tolerância
zero resulta em mais um dispositivo legal elitista, mais um
instrumento de controle social que estimula o confinamento das massas
de jovens pobres e remediados nas violentas periferias e nos
subúrbios áridos de opções culturais, que é o onde a elite os
quer trancados.
Cura
que envenena
Outra
questão que não vem sendo debatida em relação ao endurecimento da
lei são seus contra efeitos em termos de saúde pública. Não há
evidência alguma que sugira que as pessoas deixarão de beber por
conta da Lei Seca. Pelo contrário: legislações semelhantes, nos
EUA, tiveram como efeito o aumento exponencial do consumo doméstico
– e em frequência e quantidades consideravelmente maiores do que
os anteriormente verificáveis nos espaços públicos.
Ninguém
parece estar levando em conta os custos, individual e social, que a
combinação de consumo doméstico de álcool e sedentarismo, açulada
pela Lei Seca e por uma era em que a internet e as novas tecnologias
tendem a fazer as pessoas passarem mais tempo em casa, fatalmente
acabará por gerar. Pois não só quadros de obesidade, diabetes e
hipertensão encontram-se diretamente associados à tal combinação,
mas o agravamento do isolamento social e a virtualização das
relações sociais – os quais a nova lei estimula - tendem a gerar
ou intensificar a gama de problemas psicológicos associados à
"geração Rivotril".
Debate
interditado
O
debate sobre a nova Lei Seca tem sido sistematicamente interditado
por vozes que, a pretexto de defenderem a segurança de seus entes
queridos – uma plataforma com que eu, você e a grande maioria da
sociedade certamente se identifica -, tem uma agenda conservadora
oculta, eventualmente de matriz religiosa, a cumprir. A própria
mídia tem se omitido, como demonstra Sylvia Debossan Moretzsohn em
artigo
publicado no Observatório da Imprensa. Nesse sentido, o
endurecimento da legislação da Lei Seca deveria servir de alerta
aos cidadãos que se preocupam com o avanço das liberdades
individuais no país; Pois o não-debate que precedeu a nova
legislação, sua instauração inconteste e o histerismo
intransigente de muitos dos que a defendem representam mais um avanço
do campo conservador contra a preservação dos direitos
individuais. Hoje, o pomo da discórdia é uma latinha de cerveja;
amanhã será o direito ao aborto ou à adoção de crianças por
casais gays.
Se,
ao invés da postura fundamentalista que se recusa sequer a debater a
nova Lei Seca, tivéssemos um interesse genuíno pela questão, seria
preciso atentar para a possibilidade de, sob o bem-intencionado
pretexto de evitar óbitos e lesões no trânsito causados por
motoristas embriagados, estarmos fomentando, a longo prazo, mortes,
doenças crônicas e sofrimento psicológico causados por excesso de
repressão social.
A
repressão ao alcoolismo potencialmente assassino difere-se da
proibição do consumo de uma dose de bebida de baixa graduação
etílica de modo análogo ao que o fanatismo distingue-se do bom
senso. Com o agravante de que o primeiro, no caso em questão, pode
resultar contraproducente para as próprias causas que defende.
(Imagem retirada daqui)
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