Os
limites entre, de um lado, a composição de alianças necessárias à
governabilidade e à expansão da hegemonia política da aliança
governista e, de outro, seus contraefeitos programáticos,
ideológicos e éticos têm sido uma questão recorrente desde a
ascensão do PT ao poder.
Apesar de
toda a indignação que algumas dessas alianças provocam, soa a
autoilusão e falta de realismo político a presunção de que o
Partido dos Trabalhadores conseguiria efetivamente governar o Brasil
sem a aliança com o PMDB - ou seja, sem dividir o poder com Sarney,
Renan Calheiros e demais personagens que, em pleno século XXI,
evocam, justa ou injustamente, a mística do coronelismo, do
patrimonialismo e da corrupção. O sistema político brasileiro –
que um cientista político chamou, com mordacidade, de
“parlamentarismo presidencial” - praticamente impõe a formação
de amplas coalizões governamentais. Do contrário, o isolamento
palaciano e a impossibilidade de consumar um programa de governo
tornam-se ameaças reais – Jânio Quadros e Fernando Collor que o
digam.
Por outro
lado, seria negligência desprezar o quanto tais alianças acabam por
abrir flancos que tornam o PT vulnerável a críticas que exploram
implicações éticas. O próprio escândalo do “mensalão”
deriva de tal dinâmica, já que seu dínamo indutor vem da
instisfação do PTB de Roberto Jefferson para com o modo como a Casa
Civil de José Dirceu vinha partilhando as benesses do poder.
O fator
mídia
A mídia
nativa, por sua vez, comprometida com a agenda do conservadorismo e
visceralmente antipetista, explora ao máximo tais flancos,
valendo-se das armas do denuncismo neodenista e de um duplo sistema
de valores, o qual, por um lado, supervaloriza e trata como fato
consumado os mínimos indícios de irregularidades dos governos
petistas e, por outro, negligencia a cobertura até de graves e
comprovados casos ocorridos na seara demotucana – como o modo como
a privataria tucana e a invasão de Pinheirinho (não) foram tratadas
nos jornais e na TV ilustra de forma irrefutável.
O fato de
a política petista de alianças receber dos órgãos de comunicação
campanha condenatória a priori,
numa prática incompatível com a deontologia do jornalismo, com a
verdade dos fatos e com uma democracia avançada, não significa, no
entanto, que toda e qualquer aliança seja válida e esteja isenta de
questionamentos éticos – e a prova disso é o mal estar que
algumas coligações recentes, cuja elasticidade extrapola consideravelmente a faixa do espectro político à qual o partido historicamente se filia, têm causado entre simpatizantes e eventuais eleitores do PT, muitos dos
quais vacinados contra o moralismo casuísta da mídia.
Realpolitik
e hegemonia
Para
melhor contextualizar a questão, convém recordar, ainda que de
forma breve, o processo de formação da coligação que levou Lula à
Presidência: superando resistências internas e externas, a aliança
capitaneada pelo PT, que teve como principal parceiro o PMDB, incluiu
partidos conservadores como o PP, o PL e o PMN (além do PTB e dos
esquerdistas PCB e PC do B). Foi amalgamada sob
o comando de José Dirceu, com a colaboração decisiva de José
Alencar para o estabelecimento de diálogo com alguns setores do
empresariado, refratários ao petismo. Por ter sido anunciada antes
da eleição, foi dado ao
eleitor saber a que forças políticas estaria dando o seu voto.
A partir daí, porém, se assiste, no bojo do início claudicante da
presidência Lula, da crise política advinda com as denúncias do
“mensalão” e das tentativas ininterruptas da imprensa e da
oposição de manterem, via denuncismo, o governo nas cordas, a um
esforço renitente de ampliação da base aliada, o qual volta e meia
provoca surpresa ou indignação, como na aliança com o
ex-presidente Fernando Collor, que, além dos ataques baixíssimos a
Lula na campanha presidencial de 1989, um dia após tomar posse como
senador eleito pelo PRTB trocou este partido pelo PTB, a convite de
ninguém menos que Roberto Jefferson.
Nessa altura, ao passo em que setores da militância tornam-e
adeptos, eventualmente entusiasmados, de um pragmatismo infeso a
poderações éticas ou ideológicas, um sentimento antes difuso de
que há limites para a realpolitik - presente em maior ou
menor grau desde o início do governo - e o questionamento acerca da
relação custo-benefício inerente à ampliação da hegemonia
petista – e dos limites desta - ganham corpo mesmo entre setores
pró-PT. O choque entre essas duas visões, latente no decorrer da
última década, se tornaria explícito nas eleições municipais
paulistanas deste ano.
Eleição
de Haddad
Durante tal campanha eleitoral, a aliança com o PP de Maluf provocou
quase um cataclismo nas hostes petistas, e justamente por, com
direito a foto e beija-mão no palacete do político, ter soado menos
como uma aliança partidária visando tempo televisivo e mais como um
pacto para exploração do decadente mas ainda efetivo prestígio de
Maluf entre segmentos do eleitorado. Se o apoio do PP e de Maluf foi
determinante para eleger Haddad não se sabe, mas que talhou uma
ferida ética a evidenciar a falta de escrúpulos no atual modo
petista de fazer política, afagando um criminoso internacional
procurado pela Interpol, não há dúvidas.
Para completar, mal se elegeu e Haddad viu-se numa saia justa herdada
de tal aliança, com seu silêncio ante as inquirições acerca da
condenação imposta pela corte de Jersey ao político brasileiro
mais suspeito de corrupção na história recente do país, a qual o obriga a devolver U$22 milhões aos cofres da Prefeitura de São
Paulo. A militância petista tentou culpar a imprensa, mas desta vez
não procede, pois é, sim, interesse do cidadão saber o que a
Prefeitura fará para se certificar de receber o ressarcimento
determinado pela Justiça.
Tucanos e peessedistas
Neste momento, a questão das alianças uma vez mais se recrudesce:
anteontem, o governo Dilma anunciou a nomeação da tucana Cláudia
Costin para a Secretaria de Ensino Básico do MEC, para desgosto de
pedagogos sérios,
temerosos da gestão de uma administradora que já deu mostras
suficientes de ter uma visão privatista de educação. Causa
estupefação que um partido como o PT, com acesso a quadros de alto
nível na universidade brasileira, prefira colocar uma área
essencial da Educação sob responsabilidade de uma típica gestora
aos moldes peessedebistas.
Mas não para aí: acaba de ser costurado um acordo com o PSD de
Kassab para que apoie a gestão de Fernando Haddad – em troca,
entre outras benesses, da manutenção de uma grossa fatia de poder
na Câmara Municipal, é claro.
Deve
ser difícil para o cidadão comum compreender como o mesmo partido
que passou meses , desqualificando Kassab, chamando-o de serrista,
higienista, “fascista” e outros istas, se alinha com o futuro
ex-prefeito já no mês seguinte às eleições municipais. Trata-se
do tipo de procedimento que, à revelia de ser politicamente
proveitoso para o PT ou não, tende a soar extremamente questionável,
desabonador para os padrões éticos da sigla, mesmo no julgamento de
muitos eleitores ou simpatizantes.
Além
disso, é desnecessário apontar que Kassab – que tem elos
históricos com José Serra - já deu mostras mais do que suficientes
de não ser confiável como aliado, além de amorfo do ponto de vista
político-ideológico (tornou-se um clássico do oportunismo sua
declaração
de que “O PSD não é de direita, esquerda ou centro”). Soa no
mínimo displiscente que um partido que acaba de vivenciar o
imbroglio do
“mensalão” insita em se aliar com raposas políticas, como tais,
pouco leais e comprovadamente volúveis.
Assim, Insisto em questionar:
1) Se o PT quer se apresentar, na capital paulista, como uma alternativa ao demotucanato, como fazê-lo se aliando justamente a uma figura política que ven sendo, por muito tempo e até um mês atrás, um dos símbolos da hegemonia demotucana em São Paulo e de muito do que o PT alega combater?
2) Qual o limite, para a centro-esquerda, de relativização dos valores éticos e ideológicos, e a partir de que ponto, ao adotar esse relativismo, ela mimetiza valores conservadores, os relativiza enquanto tais, e com o conservadorismo se confunde?
O risco da indistinção
Esta última questão afigura-se fundamental, e tem levado à
reflexão setores que historicamente apoiaram o PT, no
funcionalismo público, humilhado na campanha salarial deste ano; na
classe média urbana progressista, que se tornou vítima da histeria
totalitária ora vigente contra tal classe social; e entre ideólogos
e intelectuais, hoje tão desprezados pelo partido e por sua
militância, cujo culto messiânico a Lula inclui a exaltação da
intuição em detrimento da reflexão – uma inversão de valores
que, paradoxalmente, o próprio Lula repetidas vezes desautoriza, com
a centralidade que atribui à educação.
É palpável - e fenômenos como a movimentação causada pela candidatura de Marcelo Freixo no Rio o demonstram - que há, atualmente, entre parcelas dos apoiadores e
aliados históricos do PT, um cansaço para com o excesso de
pragmatismo em detrimento da coesão político-ideológica,
vicissitude que está longe de se limitar às questões relativas a
coligações – abrangendo temas como retorno à privatização,
ênfase na gestão econômica, não-priorização de Educação e
Saúde e trato truculento com o servidor público -, mas para a qual as alianças
com tudo e com todos, à revelia da coerência e da ética,
contribuem consideravelmente.
A partir do momento que o PT se alia com o adversário demo-peessedista que até ontem combatia e que nomeia uma tucana para cuidar do ensino básico, torna-se cada vez mais iminente o risco de o partido, malgrado os inegáveis avanços sociais que vem patrocinando, nublar os princípios e conteúdos programáticos que o distinguiriam dos partidos que a ele se opõem.
A partir do momento que o PT se alia com o adversário demo-peessedista que até ontem combatia e que nomeia uma tucana para cuidar do ensino básico, torna-se cada vez mais iminente o risco de o partido, malgrado os inegáveis avanços sociais que vem patrocinando, nublar os princípios e conteúdos programáticos que o distinguiriam dos partidos que a ele se opõem.
(Imagem retirada daqui)
Um comentário:
Obrigado, Maurício, pela informação. Mas o fato de ela não ter aceitado não muda uma vírgula do que consta em seu texto. É até pior, conforme comentou o Idelber Avelar: ainda levou um NÃO na fuça, hehehe.
Não obstante, já subscrevi o abaixo-assinado contra a nomeação da Costin, a partir de link do Viomundo.
Abraços,
Aquiles
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