O quadro
político-ideológico brasileiro passa por um momento particularmente
contraditório, em decorrência, sobretudo, de dois fenômenos
correlatos:
- A crise dos partidos de direita apeados do poder federal, representada pelo esfalecimento do DEM e pelas consequências do prolongamento artificial do serrismo;
- A guinada conservadora do governo Dilma Rousseff, seja no campo econômico, em que as premissas neoliberais residuais, representadas pela obsessão pelo superavit primário, assomam à condição de políticas de Estado com as privatizações temporárias de longo prazo (“concessões”, na novilíngua petista); seja na seara administrativa, através da negligência para com áreas sociais fundamentais como Educação e Saúde e na truculência inaudita, incompatível com parâmetros democráticos, para lidar com greves no setor público.
Luta por
hegemonia
O grande
paradoxo que marca tal processo é que, no momento mesmo em que o
enfraquecimento da direita proporcionou potencial de ampliação da
hegemonia da chamada centro-esquerda, a administração Dilma,
parcialmente liberta dos ódios pessoais e classistas que Lula
despertava e visando assegurar o aumento da aprovação a seu
governo, passou a incorporar pautas conservadoras - e, desde o início
do mandato, a buscar uma aproximação com a mídia corporativa -
como forma de promover sua identificação com as parcelas eleitorais
órfãs do conservadorismo.
Tal
dinâmica, por sua vez, gera agora um círculo vicioso, pelo qual a
manutenção dos altos índices de aprovação da ex-militante de
esquerda e candidata da aliança petista passa a se manter atrelada à
sua modelagem como liderança neoconservadora. Nesse quadro,
ideologia e coerência programática cedem de vez lugar ao
pragmatismo eleitoral.
Guerra
nada santa
Esse
desenho começara a delinear-se já na campanha eleitoral, quando a
batalha religiosa estimulada por Serra levou a então candidata a
firmar um pacto com lideranças pentecostais e setores católicos
conservadores, comprometendo-se a, se eleita, não utilizar o Estado
de forma pró-ativa no que concerne a aborto e à expansão dos
direitos dos homossexuais. Não obstante haver, entre os cientistas
políticos, quem assegure que, ao neutralizar a fuga em massa do voto
religioso, tal acordo teria sido imprescindível para a vitória nas
urnas, seus efeitos estão no cerne do atual desprestígio de Dilma
entre parcelas culturalmente qualificadas do eleitorado que valorizam
questões ligadas à chamada biopolítica.
Ainda
assim, a vitória de Dilma nas eleições, após uma batalha do tipo
bem contra o mau contra Serra, trouxe alento aos setores
politicamente progressistas do país. Afinal, ela encarnava a
continuidade do governo Lula, cuja superioridade inconteste ante o do
antecessor FHC evidenciava-se pela transformação vivenciada pelo
Brasil, no relativamente curto prazo de oito anos, de um país
periférico e subalterno aos EUA, com índices pornográficos de
miséria, alto desemprego e uma economia em frangalhos a uma potência
emergente no cenário internacional, promotor de uma acelerada
redução da miséria e da pobreza, baixo desemprego e um desempenho
econômico na contramão da crise mundial.
Heranças
em debate
Como a
própria presidente, num raro repente, fez questão de deixar claro
na dura mas justa resposta que deu anteontem a FHC, ela recebeu uma
herança bendita do governo Lula. A questão que se coloca, porém, é
o que Dilma Rousseff fará de tal legado, já que, mesmo sem receber
a “herança maldita” que FHC legou ao seu antecessor e mentor,
ela, ao invés de aprofundar as conquistas deste, trabalhar para a
criação de alternativas ao neoliberalismo e trazer a níveis
aceitáveis a Saúde, a Educação, a segurança pública e o
respeito aos Direitos Humanos no país, parece empenhada em
retroceder ao economicismo mais tacanho, à privatização, ao
conservadorismo nas questões comportamentais e à repressão
truculenta aos movimentos grevistas.
Neste exato instante, tramam-se mudanças na CLT e, devido exclusivamente à recusa de Dilma em negociar, a greve dos professores federais se alastra por inacreditáveis 112 dias, mesmo com os docentes aceitando um aumento menor e cobrando apenas a adoção de um Plano de Carreira. A inflexibilidade da presidente agrada em cheio aos setores conservadores, mas o fato é que universidades paradas por um terço do ano, além dos transtornos a alunos, servidores e professores, custam uma fortuna aos cofres públicos – e sem dar nenhum retorno. Não pode ser considerada uma boa gestora uma presidente que, por picuinhas, permite tamanho descalabro.
Neste exato instante, tramam-se mudanças na CLT e, devido exclusivamente à recusa de Dilma em negociar, a greve dos professores federais se alastra por inacreditáveis 112 dias, mesmo com os docentes aceitando um aumento menor e cobrando apenas a adoção de um Plano de Carreira. A inflexibilidade da presidente agrada em cheio aos setores conservadores, mas o fato é que universidades paradas por um terço do ano, além dos transtornos a alunos, servidores e professores, custam uma fortuna aos cofres públicos – e sem dar nenhum retorno. Não pode ser considerada uma boa gestora uma presidente que, por picuinhas, permite tamanho descalabro.
Tudo
somado, é danosa para o governo Dilma e
para o país a ausência de uma oposição à direita digna do nome –
já que a atual encontra-se duplamente massacrada, pela ausência de
resposta programática ao sucesso dos governos petistas junto à
população e pelo fracasso do serrismo, o qual, em conluio com parte
da mídia corporativa, trocou a adoção de propostas por táticas
baixas e ataques desqualificadores. Mesmo se se livrar de Serra,
levará um bom tempo para a oposição conservadora se recompor.
Vácuo à
esquerda
Por outro
lado, a desarticulação da oposição à esquerda do governo
mostra-se talvez ainda mais deletéria, pois não permite que o país
disponha, na arena pública, de forças capazes de contrabalançar as
inclinações conservadoras as quais o governo Dilma se vê, em nome
da ampliação de sua hegemonia, atraído.
Sem esse
contrapeso e de olho no voto das classes médias, a aliança petista
caminha para um conservadorismo atávico, em que os programas de
renda mínima e as ações afirmativas vias cotas – duas criações
do capitalismo liberal – seguem, isolados, como meio de promoção
de políticas inclusivas – efetivas enquanto vigentes, mas que não
transformam estruturalmente a qualidade e a abrangência dos serviços
sociais do Estado nem alteram a brutal assimetria entre rendimento
advindo do capital (leia-se mercado financeiro) e rendimento advindo
do trabalho, já que as remessas bilionárias de reservas ao exterior
e os lucros dos bancos continuam intocados pelo modelo de capitalismo
o qual o governo se recusa a contrariar.
Tais
processos têm tornado evidente a um número cada vez maior de
pessoas a guinada conservadora do governo Dilma, seu desprezo pelo
social e pelo público e o caráter predatório do desenvolvimentismo
a todo custo que promove, baseado no endividamento limítrofe das
famílias de baixa e média renda. Dívida, na novilíngua petista, é
crédito. Trata-se de um modelo que claramente privilegia o
desenvolvimento econômico como condição precípua para um eventual
desenvolvimento social, o que evidencia o quão frágeis são suas
ligações com um programa político de centro-esquerda.
Bloco dos
fanáticos
Tudo isso
pouco importa para a vasta gama de apoiadores incondicionais do PT,
que ou fingem não ver que o partido abandonou muitas de suas
bandeiras e práticas – inclusive o saudoso hábito de escolher
seus candidatos através de eleições internas – ou também
mandaram às favas os escrúpulos e estão interessados apenas no
prolongamento da hegemonia do partido no poder, em tantas instâncias
quanto possível, à revelia de como ele o exerça, privatizando ou
não, privilegiando o mercado financeiro ou humilhando o servidor
público, não importa. Interessa ao bloco chapa-branca é se autocongratular
histericamente pelo que se entenda por cada mínimo acerto da
camarada presidenta, mesmo quando beneficia os ruralistas de
extrema-direita. Stalin perde.
Para esse
projeto de manutenção da hegemonia – conservador por definição
– vale tudo: a crítica justa à mídia se transforma na
generalização do termo “PIG” como um bode expiatório para
todas as horas, mesmo que hoje sejam rotineiramente usados contra os
críticos do petismo os burburinhos e as mesmas táticas
desqualificadoras que caracterizam o esgoto jornalístico.
Contradições
evidentes
O
articulista Francisco Bosco, em coluna
memorável sobre o significado da candidatura Freixo enquanto reflexo
da insatisfação com o petismo, assinala que “O acontecimento
político mais importante para a história recente do Brasil foi a
eleição de Lula para presidente, em 2002 (…) Mas é preciso
lembrar o que custou de resignação ao país esse projeto. Sob
alguns aspectos, o lulo-petismo tem sido a continuação da
modernização conservadora do Brasil. Já sabemos as virtudes e os
limites desse projeto”.
Como se
vê, as contradições do atual projeto político petista ficam cada
vez mais evidentes e uma hora não será mais possível adorar a dois
deuses antagônicos ao mesmo tempo. A guinada à direita ora
comandada por Dilma cobrará o seu preço, o tratamento humilhante a
professores - uma das classes mais aviltadas de trabalhadores no
país -, também. Talvez não seja nestas eleições, nem na próxima,
mas isso ocorrerá um dia.
Faz-se urgente, neste momento e de agora em diante, o fortalecimento e a união das forças de esquerda como forma de combater o neoconservadorismo petista, que se presta a fazer voluntariamente o jogo da direita, interessado apenas no poder pelo poder.
Faz-se urgente, neste momento e de agora em diante, o fortalecimento e a união das forças de esquerda como forma de combater o neoconservadorismo petista, que se presta a fazer voluntariamente o jogo da direita, interessado apenas no poder pelo poder.
(Ilustração de origem desconhecida. Se a informarem, será publicada)
4 comentários:
É sempre um prazer ler alguma coisa que escape da mesmice de mídia amestrada versus petistas babões.
Compartilho sua visão e acho que suas postagens estão cada vez melhores.
Abraço.
Muito Obrigado!
Um abraço,
Maurício.
OK. concordo com algumas questões, inclusive estou pasma com o 1/3 da verba publicitária do Gov.Federal para a Globo. Agora, que me dizes do 'golpe' que vem vindo -articulado (e bem) por vários poderes além do pig, contra o Lula?
Sônia
Sônia,
Não vejo a mínima possibilidade de golpe e acho um tremendo exagero se falar em golpismo, pois não há a mínima sustentação popular nem o apoio de setores essenciais como militares, empresariado e financistas - estes dois últimos, aliás, satisfeitíssimos com os lucros astronômicos da última década.
O que vejo é que, por um lado, os governos Lula e Dilma têm sido extremamente lenientes com a mídia, não só se recusando a promulgar a necessária Lei dos Meios mas enchendo as burras dos cofres de tais corporações.
Por outro lado, o PT foi de uma ingenuidade proibitiva ao confiar que o STF faria um julgamento eminentemente técnico e inocentaria os réus do "Mensalão". E a ingenuidade, em política, costuma cobrar um preço caro.
Um abraço,
Maurício.
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