Quem, como este assaz viajante blogueiro que vos fala, foi obrigado a (ou optou deliberadamente por) inteirar-se através do canal a cabo Globo News dos confrontos entre policiais e traficantes nos morros cariocas - que culminaram com o abate de um helicóptero -, defrontou-se, uma vez mais, com um jornalismo quase oficioso, majoritariamente baseado em uma única fonte – os órgãos de “segurança pública” do Rio de Janeiro – e que subestima a inteligência do telespectador.
Claro está que as informações concernentes à “guerra ao tráfico” no Rio sofrem de um problema estrutural, que não se restringe ao jornalismo global e seria de difícil solução em tempos normais, mais amenos, tornando-se quase incontornável sob os ânimos acirrados do presente: a premissa básica jornalística de que se deve ouvir – e publicar também a versão do – outro lado é sistematicamente ignorada ante a constatação de que este é composto de bandidos. Há como resolver tal dilema?
Longe se vai o tempo em que o repórter policial se destacava justamente por trafegar, com igual desenvoltura, pelas delegacias e pelo submundo do crime, utilizando-se da informação neles amealhada como moeda de troca com um e outro universo, revelando ao seu público detalhes e antecipando estratégias de confronto entre as forças do crime e da lei.
Tal mítico personagem, iconizado, na própria Rede Globo, pelo repórter Waldomiro Pena, vivido com garra por Hugo Carvana (e cantado em verso e prosa pelo então chamado Jorge Ben) no seriado dos anos 80 Plantão de Polícia, pertence definitivamente ao passado. Hoje em dia, na improvável hipótese de o jornalismo da Globo querer empregar tais estratégias investigativas, correria o risco de ser enquadrado na figura legal da “associação para o tráfico de drogas” – excrescência jurídica que serve para reprimir qualquer manifestação das classes periféricas e poderia muito bem, se fosse o caso, servir também para calar a imprensa. Felizmente, não há risco de que tal truculência ocorra...
Mas os problemas da cobertura concernente à segurança pública carioca vão muito além da negligência da premissa de “ouvir o outro lado”, evidenciando algumas deficiências inatas a esta: os amplos contingentes populacionais que, não pertencendo à “bandidagem”, se veem em meio ao fogo cruzado entre polícia e traficantes são mais uma prova de que às vezes não se limitam a dois os lados a serem ouvidos.
E nesse quesito a cobertura oferecida pela Globo News revela mais uma vez sua tendenciosa fragilidade: não que os moradores do morro não se fizessem presentes, nas imagens, correndo desesperados em meio ao tiroteio; o que não lhes é concedido é voz – a voz analítica que sai de uma ou mais vozes, ou emana do choque polifônico de opiniões. Ninguém que estivesse no morro ou se apresentasse como morador de lá foi ouvido nas edições do jornalístico “Em Cima da Hora” apresentadas entre 7 e 9 horas da manhã e na edição do meio-dia do domingo (18/10) para algo mais do que afirmar o medo das balas perdidas. Para o jornalismo global, é como se ele fosse um não-cidadão, sem direito ou capacidade analítica para conjecturar sobre o que o aflige.
Ao contrário da espinhosa questão de ouvir ou não o outro lado quando este é um criminoso, estamos aqui diante de um problema bem mais simples, de fácil solução se a Globo se prestasse a produzir um jornalismo um pouco mais democrático e – para utilizar termos que a emissora tanto gosta de empregar - que promova a cidadania. Mesmo se, numa atitude entre zelosa e o preconceituosa, seus repórteres fossem instruídos a não ouvir qualquer morador do morro (pois este poderia ter ligação com o tráfico), eles continuariam tendo à disposição uma série de organizações civis e de ONGs que atuam nos morros cariocas, algumas delas capazes de viabilizar canais de comunicação entre a emissora e moradores ou mesmo de produzir análises bem mais complexas e diversificadas do confronto do que a simplificação grosseira oferecida pela Globo News.
Um terceiro aspecto problemático da cobertura do episódio vem da escolha do indefectível expert chamado para comentá-lo. No domingo, a honra coube ao sociólogo Gláucio Soares, que, enquanto tratava o telespectador como uma criança, chamando a atenção para aspectos que, segundo ele, este não se daria conta, dizia acreditar que uma “revanche corporativista” da polícia (que já teria produzido duas mortes no próprio domingo) deveria ser entendida como “compreensível”.
O mínimo a esperar de um intelectual (ainda que “à sombra do poder”, para utilizar a classificação proposta por Carlos Nelson Coutinho), notadamente em questões de segurança pública, é que ele invoque os pressupostos da razão – aí incluídos os Direitos Humanos -, do tecnicismo e do equilíbrio, sobretudo em uma situação de extrema tensão e revolta; quando ele é leniente com a vendetta coletiva de forças públicas armadas não apenas esvai-se de sua função mas, no caso, incita a barbárie à qual deveria se opor.
É preciso uma dose enorme de ingenuidade para deixar de notar que a escolha dos experts que se sentam à bancada da Globo News obedece a um filtro ideológico rigoroso, acabando por funcionar como uma ferramenta editorial das mais eficientes. Isso não justifica, no entanto, no que se refere à violência carioca, que o principal canal a cabo de jornalismo do país negligencie sistematicamente o conhecimento sobre segurança pública e criminologia produzido por pelo menos cinco institutos de alto nível no estado do Rio, em nome da manutenção de uma visão fundamentalista da questão, visão esta que, como instrumento de manipulação da opinião pública, acaba servindo a seus interesses políticos no estado e na cidade.
Sem fontes outras que esse jornalismo monocórdio, ao espectador da Globo News é continuadamente impingida a versão da polícia – nem sempre relativizada pelo álibi “segundo a Secretaria de Segurança”: à medida que a cobertura avança ao longo do dia, algumas matérias incorporam informações de tais fontes sem nomeá-las.
De minha parte, adoraria poder confiar nas versões da polícia fluminense e do simpático e articulado secretário José Mariano Beltrame. Mas, convenhamos, um aparato de repressão que teve, em cargos e períodos diversos, comandantes como Newton “bandido bom é bandido morto” Cerqueira, como o atual membro da tropa de choque serrista Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), e como Álvaro Lins, que deixou o cargo de chefe da Polícia Civil para usufruir dos serviços de hospedagem de Bangu 8, precisa reconstituir sua imagem e mostrar serviços – e por esta expressão não quero dizer extermínio indiscriminado, mas punição a criminosos dentro dos marcos da lei e proteção a inocentes, sejam estes pobres ou não – para ganhar respeitabilidade e confiança.
Porém, é a uma força com tal currículo – e quase que exclusivamente a ela – que a Globo News recorre para “informar” seus espectadores. Isso não se chama jornalismo. Lamento pelos que se deixam acreditar.
4 comentários:
pois é, e a gente fica sem saber muito bem o que aconteceu, pq assisto a esses noticiosos com enorme desconfiança, já os conheço de outros tempos...outro dia até o Caco Barcellos, acho que o mais próximo que a BOBo hoje tem de um repórter investigativo, quase fez um bom programa sobre Heliópolis, mas derrapou no final quando deixou no ar que o tumulto foi convocado pelos traficantes da região. Achou UM morador par deixar essa informação em suspenso, não como afirmação categórica ou provas, mas assim de leve e em suspenso, bem no finalzinho. Até lá o programa estava mostrando muito bem a vida de quem mora dentro do bairro. Me deixou a impressão de que mandaram editar assim, sabe? Vai saber se é uma esperança minha ou, como sempre, foram as forças ocultas que editaram o programa para ir ao ar assim?
bjs
Iaiá,
O Caco tá bem acima do nível predominante na Globo, mas o peso da direção se faz sentir. Esse caso de Heliopolis é classico: precisavam corroborar a versão fantasiosa do JN, então ela era reperxcutida em todos os jornalísticos da emissora...
É impossível acreditar num jornalismo que tem como fonte principal a polícia fluminense, que, como o caso Afro-Reggae tristemente demonstra, tem muito a avançar como instituição.
tive que passar o link desse post pra uma amiga que estuda Comunicação e ao mesmo tempo é admiradora do William Bonner, pretendo salvá-la desse grande paradoxo.
Gustavo,
Trata-se de um irreconciliável paradoxo, de fato (mas mais frequente do que imagina a vã filosofia...).
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