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terça-feira, 19 de julho de 2016

"Escola sem Partido" traz graves ameaças à Educação

Vem causando apreensão em diversos setores da sociedade a possibilidade de aprovação do PL 867/2015 - "Programa Escola sem Partido" -, o qual, a pretexto de coibir uma vagamente definida doutrinação ideológica nas escolas traz embutidas graves ameaças à liberdade de expressão, à atuação profissional de professores e à formação educacional das novas gerações.

De autoria do controverso senador Magno Malta (PR/ES), envolvido em nada menos que quatro grandes escândalos de corrupção ao longo de sua carreira política - inclusive um atual -, o projeto, patrocinado por alguns dos setores mais retrógrados da sociedade, seria a consolidação, no âmbito federal, de legislações semelhantes que, a despeito de serem consideradas inconstitucionais pela ampla maioria da comunidade jurídica, já tramitam nos âmbitos estaduais (tendo uma delas sido transformada em lei em Alagoas).



Currículos manipulados
Trata-se, na prática, de um projeto que visa cercear justamente aquilo que alega defender - "a liberdade de consciência", "o pluralismo de ideias", a"liberdade de ensinar", numa tentativa de fazer com que a ação de professores abdique de qualquer viés crítico e se limite estritamente à reprodução acrítica de conteúdos curriculares - os quais são por ora desconhecidos, e só virão a ser definidos em anexo de lei. Tal correlação entre engessamento do ensino a um cânone curricular e atribuição da definição curricular aos legisladores permitiria um alto grau de manipulação ideológica dos conteúdos educacionais.

Em decorrência, um dos aspectos mais controversos do projeto é sua tendência a coibir o contraditório e o contra-hegemônico, naturalizando e legitimando discursos que validam as relações sociais de poder e as assimetrias a elas inerentes - como, para ficar em dois exemplos óbvios, se a legitimação teórica do capitalismo e dos códigos morais vigentes não fossem, elas próprias, operações de teor ideológico e não significassem também doutrinação e "tomada de partido".



Vícios de origem
A dinâmica acima descrita evidencia, ainda, o tendenciosismo ideológico que impregna o próprio projeto, cujos defensores, em sua ampla maioria, não hesitam em elencar como justificativa principal a "proibição da doutrinação esquerdista", um vício de origem que, ao mirar apenas em um pólo do arco político-ideológico - nada dizendo sobre a doutrinação passível de ser feita pelas forças situadas na outra ponta de tal espectro (e alhures) -, explicita os objetivos marcadamente ideológicos e partidários de um projeto travestido de luta contra o doutrinamento ideológico.

Tal vício de origem não só conspurca o Escola sem Partido, como escamoteia - ao mesmo tempo em que isenta - formas hoje recorrentes de doutrinação no campo educacional brasileiro, notadamente aquelas de caráter religiosos (registre-se que o senador Magno Malta é pastor evangélico). Antes restritas a escolas associadas a entidades confessionais, estas hoje se espalharam, de forma generalizada, pela arena educacional, tanto pela crescente confusão e indistinção entre educação e doutrinamento religioso em templos, organizações não governamentais e centros tradicionais de ensino, quanto através de professores que confundem deliberadamente o púlpito com a sala de aula - um fenômeno do qual nem as melhores universidades do país estão isentas.



Falso combate à doutrinação
Como o exemplo acima evidencia, é real a possibilidade de ocorrência de doutrinação indevida no meio educacional. Parece-nos justo supor que tal problema se estenda também à seara política, à esquerda, à direita, ao centro, em relação a questões de gênero sexual, contra ou a favor do aborto, da legalização da maconha, da admissibilidade do aquecimento da Terra, etc. Admitamos, a título de raciocínio, que, se professores bem-intencionados são maioria, seria negligência ignorar que também há nas salas de aula um número não desprezível de militantes mais interessados em propagar suas causas do que em educar. Isso admitido, duas questões se colocam:

1) Na era da comunicação digital e das redes sociais - em que até estudantes secundaristas se emponderaram e são protagonistas de suas lutas -, será realmente preciso recorrer a uma legislação draconiana, imposta de cima pra baixo, que tem tudo para instaurar um clima de vigilantismo e cerceamento da liberdade de expressão para impedir tais excessos, ou haveria formas mais democráticas, autogestadas e coletivas de fazê-lo?

2) O projeto Escola sem Partido tem efetivamente condições de estabelecer, em bases claras e inequívocas, parâmetros legais que coíbam a doutrinação nas escolas, sem afrontar o princípio constitucional da liberdade de expressão, incorrer em censura, beneficiar este ou aquele estrato político-ideológico, cercear a atuação pedagógica e didática dos professores ou prejudicar a formação intelectual e crítica dos estudantes?



Critérios subjetivos
A julgar pelo grau de indefinição e de subjetividade interpretativa inerente a tal legislação, o qual compromete não só a identificação das transgressões, mas, assim, a justeza das punições, a resposta à segunda questão é negativa. Pois o PL 867/2015 , ora em discussão na Comissão de Educação da Câmara. determina, por exemplo, em seu artigo terceiro:

São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes."

Ora, como determinar, de forma objetiva, o que é doutrinação e o que é problematização e estímulo ao criticismo? Como auferir as convicções religiosas e morais de cada indivíduo em uma classe com dezenas de estudantes, de forma a não ofendê-las? Quem terá capacidade e critério para julgar, de forma isenta, tais eventuais transgressões?



Supressão do senso crítico
São perguntas meramente retóricas, posto que não há resposta possível a elas, ao menos se não se quer incorrer em arbitrariedades subjetivas que contrariam, de forma frontal, a impessoalidade e a objetividade jurídicas requeridas pelo Estado Democrático de Direito, especificamente o princípio constitucional da liberdade de expressão e o artigo 206 da Constituição, que assegura o direito à liberdade de aprendizagem e difusão do conhecimento.

Não é preciso um grande esforço intelectual para se aperceber que, assim, o projeto não só reprime, mas almeja suprimir o pensamento crítico e contestatório, impregnando as relações educacionais de uma mentalidade passiva e conformista. Para piorar, as denúncias contra eventuais transgressões da lei seriam recebidas por via anônima, o que permitiria toda sorte de manipulações e retaliações por parte de estudantes contrariados ou mal-intencionados.



Sutilezas educacionais
Como bem sabem os professores e profissionais da educação, o ensino não se restringe à exposição de conteúdos. É preciso não só problematizá-los e debatê-los los sob prismas variados, mas, muitas vezes, fazer uso de técnicas de provocação e contraposição crítica de posições, de modo não só a oferecer aos estudantes uma visão complexa e multifacetada do tema em questão, mas a incentivá-los a participar do debate, e sem receio de emitirem as próprias opiniões, por mais estapafúrdias ou radicais que estas se lhes pareçam.

Pois, nas palavras do professor e historiador Luiz Antonio Simas, em ótimo texto em seu blog:

"Não existe escola democrática sem a ideia de negociação permanente. A escola sem conflitos é uma instituição defunta. Neste sentido, a interação nas escolas se estabelece, entre conflitos e consensos, entre pessoas com visões de mundo e culturas diferentes que se posicionam."

Ameaça e reação
Portanto, para que exerça suas funções com plenitude, é imprescindível que se conceda ao professor uma ampla liberdade de ação - inclusive para assumir posições e atitudes polêmicas e provocativas. A relação professor-alunos é complexa e, mesmo se desenvolvida em altos padrões de profissionalismo, repleta de sutilezas comunicacionais, interativas, psicológicas e mesmo afetivas. Querer engessá-la em um código de conduta moralista é não só inaceitável do ponto de vista das liberdades tanto individuais quanto coletivas (neste caso, porque os alunos serão os mais afetados), mas sob o prisma educacional strictu sensu. Pois, além de tornar o ensino mais maçante do ponto de vista didático, retirar-lhe-ia sua essência dialética, atrofiando o estímulo ao desenvolvimento do senso crítico dos alunos e alunas e transformando-o em mero reprodução insossa de conteúdos.

Tudo somado, o "Escola sem Partido", constitui uma gravíssima ameaça à Educação no Brasil,. Trata-e de uma iniciativa que se dá no bojo do recrudescimento feroz, no país, de um conservadorismo preconceituoso, dogmático e não apenas inculto, mas avesso à cultura e à Educação. Como tal, é marcada por um macartismo extemporâneo, retrógrado e francamente em desacordo com o avanço dos direitos na democracia brasileira, a qual retrocederá ainda mais - e de forma indelével - se essa excrescência legislativa vier a ser aprovada.


Serviço: o PL 163/2016 ("Programa Escola sem Partido") encontra-se aberto para consulta pública no site do Senado, podendo os cidadãos pronunciarem-se contra ou a favor. Por enquanto, o placar, revertendo a tendência inicial, aponta uma ligeira vantagem dos que são contra o projeto.

Post atualizado em 20/07/2016.

(Imagem retirada daqui)

2 comentários:

Monix disse...

Obrigada pelos esclarecimentos! O assunto é muito grave e tem tido pouca repercussão. Abs,

Unknown disse...

Obrigado, Monix. Infelizmente, a sociedade não está a par da gravidade do projeto e dos riscos que ele traz. Abs.