Se
alguém ainda tinha dúvidas de que o Brasil e um país machista, as
reações nas redes sociais e no Parlamento ante a escolha do tema
"Violência contra a mulher" para a redação do Enem 2015
as dirimiram.
Tão
logo a escolha do tema se tornou pública, figuras tragicômicas do
conservadorismo brasileiro, como Bolsonaro e Feliciano acusaram o
exame de “doutrinação” e de “marxismo do PT”, voltando
suas baterias, ainda, a uma questão baseada no clássico feminista O
Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Para além da contradição
irônica de um militar e um pastor reclamarem de catequização
ideológica, trata-se de uma tripla bobagem.
Confusão
deliberada
Primeiro,
porque a violência contra a mulher é um tema que não se enquadra
na divisão político-ideológica convencional entre direita e
esquerda, pertencendo ao âmbito dos Direitos Humanos - que, como
tais, ao menos na letra da lei, transcendem partidarismos.
Segundo,
porque o PT nunca foi marxista, o que dizer após sua conversão a um
modelo capitalista de desenvolvimento baseado no consumismo.
Terceiro,
porque uma das mais recorrentes críticas a Marx é justamente de
negligência para com as questões de gênero.
Analfabetismo
político
Mas
tal reação teve um aspecto pedagógico: a repercussão de tais
criticas nas redes sociais, barulhenta e volumosa, forneceu uma
amostra do quanto se encontra disseminado, sobretudo entre jovens, um
conservadorismo preconceituoso e ignorante (embora se acredite
ilustrado), neles instilado por velhas figuras paternais travestidas
de intelectuais e ideologos.
Presos
a uma visão política binária e excludente, com baixíssima
formação cultural e política, são aliciados para um autoritarismo
que “opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que
se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo
de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve
ser eliminado”, como descreve a filósofa Márcia Tiburi em artigo
na revista Cult.
Para ela, esse neoconservadorismo, que se quer uma elite intelectual
e se crê aideológico enquanto critica o que entende por ideologia
(esquerdista) alheia, caracteriza-se por “autoafirmação de
ignorância, assinatura de estupidez”.
Fahrenheit
451
O
jornalista Mário Magalhães foi didático a tal respeito, ao
apontar, em seu blog,
que “O problema maior são as veleidades de censor, a proposta,
escancarada ou envergonhada, de eliminar da história Simone de
Beauvoir, seu pensamento e suas ações”.
Seja
como for, em termos políticos é temeroso pensar o que esses jovens
eleitores virão a fazer, nos próximos anos, com os seus votos.
Orgulho
sem razão
O
petismo, por sua vez, no estado extremo de carência em que se
encontra, aproveitou o acerto na escolha do tema da redação como
evidência, a um tempo, de seu esquerdismo e de que administra bem a
Educação. Trata-se de uma dupla falácia, pois área educacional é
a que mais sofre com o ajuste fiscal de inspiração neoliberal, com
cortes na casa das dezenas de bilhões de reais.
Pior:
no que diz respeito ao próprio tema da violência doméstica, embora
o partido tenha o grande mérito de ter participado da elaboração e
ajudado a aprovar no Congresso a “Lei Maria da Penha”, sancionada
pelo presidente Lula, o governo Dilma, ao vetar a lei que determinava
a igualdade de salários entre homens e mulheres, colaborou de
maneira decisiva para perpetuar a assimetria econômica entre os
sexos - que, por sua vez, está no cerne das relações de
dependência financeira que dificultam tanto a denúncia da violência
quanto
a obtenção de autonomia por parte de mulheres agredidas, muitas das
quais acabam presas a uma relação abusiva.
.
Feminicidio
e violência
Nunca
é demais apontar que a violência contra a mulher é uma questão
social urgente. Segundo dados oficiais,
quase 50 mil brasileiras foram assassinadas entre 2001 e 2011, a
maioria entre 15 e 24 anos. Foram feitas mais de 50.000 denúncias em
2014, sendo que 77% das mulheres que relatam viver em situação de
violência são agredidas ao menos uma vez por semana, 48% delas em
sua própria casa. Sendo que se teme que esses números sejam apenas
a face visível de uma violência que muitas vezes sequer é
registrada.
Portanto,
carimbar tal tema de propaganda esquerdista revela um misto de
ignorância e má-fé, pois faz todo o sentido (cívico, educacional,
preventivo) instigar jovens vestibulandos a sobre ele refletirem. A
escolha dos examinadores foi mais do que acertada.
Jogo
de aparências
Mas,
levando em consideração o todo da prova, isso não anula algumas
das críticas que são feitas ao Enem (não obstante o avanço que
este representa em relação ao vestibular convencional). Dentre elas
destacam-se o desprezo pelas diferentes realidades educacionais
regionais, a não-explicitação dos propósitos e da competência de
área de cada questão, e um modelo de prova que, se inova na escolha
das questões, tratando temas sociais atuais, não deixa de repetir
uma fórmula esquemática de exame que favorece as escolas cujo
planejamento de aulas se dá com vistas ao exame (à maneira dos
antigos cursinhos), prejudicando aquelas que cobrem o currículo sem
direcioná-lo para tal.
Tais
vícios têm tido como distorção mais palpável a hegemonia
nacional, nos cursos mais disputados, de estudantes advindos das
escolas de elite do Sudeste, os quais, além da ampla supremacia em
sua própria região, têm ocupado muitas das vagas no restante do
país, notadamente no Nordeste. Para um exame que foi anunciado como
um substituto democratizante e socialmente includente ao velho modelo
de seleção, trata-se de um problema gravíssimo.
Sem
cura
Ainda mais grave é o fato de que, publicizado como uma falsa panaceia includente, o Enem, na verdade, nada altera em termos da qualidade do ensino
oferecido. Como resume com propriedade Alcides Villaça:
“Em
vez de uma educação pública de bom nível, elaborar a cada ano uma
cada vez melhor prova de avaliação do ensino deficitário. Um
estranho termômetro, planejado para dissimular a febre”.
Mais
de uma década de paliativos
Nesse
sentido, o Enem repete o que se tornou um padrão nos 13 anos de
petismo no poder: a opção por medidas de baixo ou nenhum custo,
vendidas como panaceias, no lugar de ações planejadas e
estruturadas de melhoria da Saúde e da Educação - como,
respectivamente, o Mais Médicos, em vez de uma reestruturação da
saúde pública no país; e a adoção de (bem-vindas) cotas, mas
desacompanhadas de uma reforma educacional que estimulasse, em
parceria com os estados, um salto qualitativo na área.
Destarte,
aliviam-se alguns problemas e corrigem-se algumas distorções, mas
sem mexer na estrutura que os causa.
A
questão do contraditório
Tampouco
se pode negar que, apesar da louvável escolha do tema, a correção
da redação trará armadilhas potenciais. Pois, por um lado, parecem
consideráveis as chances de que vestibulandos machistas e que foram
previamente orientados a fazer ponderações e atentar ao
contraditório em suas redações venham com argumentações do tipo
"a mulher tem de se preservar", que indiretamente a culpam
pela violência sofrida, chancelando-a.
Se,
como tem sido nos últimos anos, a correção da redação der
prioridade a estrutura, correção gramatical e construção de
sentido, em detrimento da coesão ideológica, aumentam as chances de
que redações tais como as descritas no parágrafo anterior venham a
obter notas altas – quiçá máximas.
Escândalos
Por
outro lado, se a correção se ativer com o devido rigor aos
preceitos éticos e só der notas altas a redações que condenem sem
subterfúgios a violência contra a mulher, isso pode vir a ser
interpretado como um endosso à crítica (que não veio só do
conservadorismo) de que, apesar de sua inegável importância, o
tema, tal como proposto, não comporta o contraditório e impõe, na
prática, uma – e apenas uma - posição ideológica ao
vestibulando.
De
um modo ou de outro, a tendência é que a questão da escolha do
tema volte a produzir escândalos na mídia tão logo a correção e
as notas das redações sejam divulgadas.
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