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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Boyhood, grande cinema

Boyhood é um filme solar. Ao retratar 12 anos na história de uma família, com filmagens com o mesmo elenco fixo principal, reunido a cada três anos, trocando a rigidez matemática dos roteiros milimetricamente construídos por uma sensação difusa de naturalismo e maleabilidade, o filme de Richard Linklater traz um sopro de novidade em um momento de profunda crise do cinemão hollywoodiano, sobrepujado pelo fenômeno das séries televisivas.

O foco privilegiado na trajetória do garoto Mason (Ellar Coltrane) – que começa o filme com cinco anos e o termina prestes a completar 18, ingressando na universidade – faz de Boyhood uma trama sobre amadurecimento, ritos de passagem, dissolução da infância na adolescência - e desta na juventude. Mas a riqueza da narrativa e a força dos personagens secundários dão relevo a outras temáticas, como relações familiares, a maternidade, sexualidade e afeto, a relação entre natureza e construcionismo social, ética pessoal versus ética coletiva, o questionamento do “sonho americano”.


Processos de identificação
A captação física dos efeitos da passagem do tempo, embora represente um desafio para a construção da profundidade psicológica dos personagens, tende, paradoxalmente, a intensificar por mimese a identificação do espectador com eles – sobretudo quando são apresentados ainda crianças, como é o caso. Facilita também o afloramento de estados emocionaism no espectador, ao invocar, através da interrelação dos personagens, emoções inerentes à passagem do tempo, como saudade, melancolia, vertigem, (receio de) perda ou de solidão – processo que, em dois ou três pontos-chave de Boyhood, culmina em epifanias.

Mas seria exagero atribuir o impacto do filme ao acompanhamento do envelhecimento do elenco ao longo de 12 anos, ou mesmo considerar isso seu mérito por excelência. Na verdade, sem um pré-roteiro bem amarrado – sujeito a revisões pontuais periódicas ditadas pela própria evçução da dinâmica da equipe - e sem um elenco afiado, as possibilidades de malogro se multiplicariam com a adoção de tal esquema.


Road movie atípico
Com uma gramática narrativa que varia entre tomadas exteriores (que por vezes funcionam como alusão ou metáfora de aspectos da vida sócio-política nos EUA no périodo, eventualmente reforçados pela trama) e tomadas interiores em que a direção de arte, determinante, chega a ter função narrativa, tipificando as mudanças de endereço e de condição social da família, Boyhood não deixa de ser, à sua maneira, um road movie. (Filiação que o nome da produtora de Linklater, Detour, corrobora ao aludir ao título de um cultuado film noir, dirigido em 1945 por Edgar G. Ulmer, e filiado a esse que é considerado o subgênero cinematográfico em que melhor confluem a tematização da identidade pessoal e da identidade nacional.)

Pois, parafraseando o diagnóstico feito por Walter Salles em um texto sobre road movies, de que “os mais interessantes são justamente aqueles em que a crise de identidade do protagonista da história reflete a crise de identidade de uma cultura, de um país”, não parece despropositado sugerir que o processo de amadurecimento, de superação da infância rumo à juventude, vivenciado pelo protagonista de Boyhood – e por cada membro de sua família – ecoa a trajetória dos Estados Unidos em busca da superação do cenário de terra arrasada da Era Bush em prol de um novo país, simbolizado pela candidatura Obama (passagem à qual, aliás, mais de um personagem alude).




Elenco em destaque


Tudo isso, somado, conflui para fazer de Boyhood um filme marcado por um humanismo profundo. E que, embora, como já dito, não se furte a eventualmente tocar emocionalmente o espectador, o faz sem a pieguice adocicada ou o moralismo recorrente em que o cinema norte-americano costuma incorrer quando tematiza relações familiares.

Num elenco em que Patricia Arquette brilha, valendo-se de muita técnica para simular naturalismo (mas sem conseguir atingir o pathos dramático desejável em duas das cenas mais intensas) e a perfomance do jovem ator principal é convincente, mas, com exceção de um ou outro momento - destsacadamente a sequência em que lembra ao pai a promessa de dar-lhe um carro - sem chegar a ser brilhante, é sobretudo através de personagens secundários que o referido humanismo aflora com mais vigor. Notadamente no que diz respeito à irmã do protagonista, vivida por Lorelei Linklater (filha do diretor, nascida no México), e desde criança tipificada como irõnica e contestadora, e ao ex-marido malandro e a princípio loser interpretado por Ethan Hawke, cujo amadurecimento ao longo da narrativa é um dos achados do filme (e valeu ao ator sua quarta indicação ao Oscar, três delas por performances em um filme dirigido por Linklater).



Imprevisibilidade
Graças a essa combinação feliz de fatores, e sem explosões, efeitos especiais de última geração ou um roteiro com rocambolescas idas e vindas no tempo – praga tarantinesca que infecta as produções hollywoodianas das duas últimas décadas - Boyhood logra algo raro no cinema hollywoodiano atual: mantém-se surpreendente do início ao final.

Tem-se, a maior parte do tempo, a impressão de que tudo pode acontecer na narrativa e mesmo os cinéfilos mais escolados em predizerem o rumo da trama através da lógica do roteiro, pelo que os padrões da mise en scène do diretor antecipam, ou mesmo pela escalação do elenco, tendem a ser surpreendidos pela fluência imprevisível da narrativa, que prende o tempo todo a atenção dos espectadores com uma história cuja beleza deriva, paradoxalmente, de ser plausível e comum.






P.S. É certo que o avanço tecnológico melhorou muito a qualidade das sessões caseiras de filmes, mas Booyhood é daqueles filmes cujas potencialidades se multiplicam e se revelam plenamente se vistas em um cinema de tela grande e som potente.


(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali, de lá e dacolá

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