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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Contradições do modelo petista

Das tantas contradições do "modelo" político-econômico adotado pelo petismo em seus 11 anos de governo, talvez a mais danosa e menos notada diga respeito ao modo como, em um partido que se autointitula de esquerda, a crítica ao capitalismo deu lugar a uma aderência total e acrítica ao consumismo e ao desenvolvimentismo predatório como propulsores da economia.

Nascido do encontro do sindicalismo de resultados com setores da intelectualidade insatisfeitos com o reformismo gradual que caracterizou a oposição à ditadura, o PT, a bem da verdade, sempre manteve uma relação ambígua com o capitalismo, o qual nunca criticou de forma absoluta e sistemática, como os comunistas haviam feito antes e, com menor embasamento teórico, alguns dos partidos à sua esquerda fariam depois.

Não obstante tais nuances, a agremiação liderada por Lula foi, em suas duas primeiras décadas de existência, crítica contumaz do agronegócio, do grande capital, do lucro pornográfico dos bancos. Prometia, a cada campanha, promover a reforma agrária e fazer a auditoria da dívida externa brasileira, enquanto, em sintonia com o pensamento político de ponta, denunciava o risco-país, o superávit primário e demais índices financeiros como construções narrativas da mídia e do mercado de forma a maximizarem seus lucros.



Poder e mercado
Tais promessas, sabemos hoje, revelaram-se meras balelas, deixadas de lado à medida que foram sobrepujadas pelo fascínio com as esferas decisórias, com o acesso – ainda que em posição subalterna – aos círculos do grande capital, com o poder pelo poder, no contexto de um modelo econômico paradoxal, que mescla elementos neoliberais e o desenvolvimentismo à la Brasil Grande, ou seja, estatal e autoritário.

A Carta ao Povo Brasileiro, publicada ao final da campanha presidencial de 2001 – aquela que, sob as bênçãos do marketing político, transformou o operário de discurso desafiador e barba desgrenhada no engravatado Lulinha Paz e Amor -, acenou à sociedade e ao poder econômico o respeito aos contratos e à autonomia do setor bancário. É comumente referida como o "ponto de virada" na relação do petismo com os mercados, embora, como bem demonstrou o jornalista econômico José Paulo Kupfer, não haja nada no documento que faça prever a submissão quase total do governo aos ditames do financismo - as tais narrativas ficcionais midiáticas, segundo o velho PT - como posteriormente seria a regra.

Por que submissão "quase" total? Por haver dois ou três quesitos que, embora não o contrariem frontalmente, relativizam, segundo alguns, o grau de aderência ao mercado pelo petismo no poder.



Altos superávits
O primeiro item, muito em voga na mídia desde que aludido por Marina Silva & seus "Chicago Boys", é o rigor fiscal que teria sido abandonado pela administração Dilma em prol de um inchaço da máquina estatal. Trata-se, como o próprio governo tratou rapidamente de justificar ao mercado e ao porta-voz deste, a mídia (que as verbas publicitárias da Secom sustentam), de uma situação episódica, não da regra, e gerada parcialmente em decorrência de o aperto fiscal ter sido excessivo no início do mandato. (Se sincera fosse, Dilma incluiria no rol das justificativas a proximidade das eleições.)

Apesar de toda a gritaria da mídia, o fato é que o rigor fiscal - assegurado, como nos governos tucanos, por um alto superávit primário - foi a regra nos 11 anos em que o PT está no poder, sendo que a ânsia em bajular os mercados levou Dilma, em 2011, a impor a meta de zerar o déficit nominal, uma medida que nem FHC ousou e que, como até os analistas econômicos governistas reconhecem, foi a principal responsável pelo "pibinho" do ano seguinte. A única exceção para essa série de superávits é o ano fiscal de 2010, em que Lula abriu as burras para eleger Dilma. Mesmo o episódico "descontrole" fiscal verificado este ano já está sanado, segundo projeções do próprio Tesouro. Isso graças às privatizações à mancheia que a presidente Dilma ora promove, inclusive na área petrolífera, em relação a qual em campanha prometera explicitamente não privatizar e, quebrando outra promessa, aumentando o valor máximo do pedágio em algumas das rodovias federais que irão a leilão (qualquer semelhança com o PSDB não é mera coincidência).



Mercado e neoliberalismo
Sobre o segundo item que contrariaria a submissão do governo ao mercado financeiro nem convém se estender muito: trata-se da independência do Banco Central e da política de juros brasileiros, obscenos se comparados aos do resto do mundo. Lula, inicialmente em decorrência de um acordo com o governo norte-americano – que viabilizara um empréstimo-ponte com o FMI sem o qual ele teria recebido de FHC um país falido -, não interferiu nessa questão, embora estivesse livre para fazê-lo no segundo mandato. Dilma, após uma hesitação inicial, interveio no BC e tentou implementar uma política de juros baixos; porém, com o destemor ante a mídia que é distintivo do petismo, tão logo os cães do mercado começaram a ganir ela abdicou da batata quente e fingiu que não era com ela. Resultado: os juros praticados no Brasil voltaram a estar entre os três mais altos do mundo, de forma a garantir a manutenção dos altos lucros dos bancos, que batem recordes sucessivos nos governos petistas.

O terceiro item que situaria as administrações federais do PT fora da "ordem" neoliberal é aquele que tem sido apresentado como seu cartão de visitas, principal instrumento das internacionalmente reconhecidas políticas de combate à miséria e à pobreza, que "humanizam" o petismo e, para alguns, justificam, por si, a permanência do partido no poder: o Bolsa-Família. Aqui se dá, de fato, um distanciamento das políticas ditadas pelo Consenso de Washington, mas ele é sobretudo de ordem de grandeza, posto que o recurso a instrumentos compensatórios de seguridade econômica é, por excelência, uma política social neoliberal (virtualmente, a única). Ocorre que um governo assumidamente conservador as aplicaria, de acordo com a cartilha do neoliberalismo, de maneira focalista, ou seja, ao invés dos 35 milhões de brasileiros que recebem o benefício, este só contemplaria de 5 a, no máximo, 15 milhões de indivíduos.



Modelo híbrido
Como vimos até agora, não só há, nos quesitos propriamente financeiros, sincronia entre o PT no poder e os ditames do mercado, como não se sustenta, a rigor, um discurso que dissocie as políticas econômicas petistas do neoliberalismo, senão, no caso único do Bolsa-Família, pelo volume de alcance do instrumento compensatório. O diferencial do modelo tem sido preservar – e priorizar – o mercadismo como parâmetro orientador das políticas oficiais sem promover o enxugamento radical do Estado e a limitação de seu raio de ação. Mas quem regula essa balança e determina o ritmo e a extensão dos investimentos estatais – ou seja, o destino do dinheiro dito público, que deveria servir ao bem comum - é o mercado financeiro, entidade cujo humor o petismo no poder não ousa contrariar.

Assim, naturalmente, o pagamento de juros das dívidas pública e externa – que o velho PT prometia auditar e que andou mentindo já ter liquidado – tem sempre prioridade ante demandas menores de um povo teimoso, que insiste em adoecer, querer se alfabetizar e ultimamente, atrevido, deu para exigir até uma tal de mobilidade urbana. E a forma encontrada para saciar o apetite da onça sem que os pintinhos morram de fome tem sido privatizar parte do Estado, diminuindo no curto prazo o investimento estatal como modo de economizar e manter as contas ao gosto do mercado, mas comprometendo parte de seu faturamento – e de seu poder – futuro, com resultados potencialmente danosos à população, a exemplo do que ocorre hoje com áreas privatizadas, como telefonia. De tabela, abre mão da coerência programática e ideológica, ao adotar a solução privatista que tanto criticara nos governos do PSDB que o antecederam, prejudicando a esquerda como um todo.




Prioridades em questão
Em resumo: vende-se o país para atender às demandas do mercado e calar a boca da mídia, já que o governo não tem coragem, vontade política ou interesse de, respectivamente, enfrentar um e promover a democratização do outro.

Não é preciso muita reflexão para constatar que tal modelo não só está na origem do aprimoramento extremamente lento de áreas como Saúde, Segurança, e Transportes durante os 11 anos de petismo, com a manutenção de serviços precários à população em geral, como, na prática, forja uma relação governo-sociedade caracterizada pela forte e injusta estratificação, por meio da qual os pobres recebem, proporcional e merecidamente, uma maior fatia do bolo, de forma a ascenderem (mas não a ponto de terem acesso a serviços de qualidade, posto que o governo desvia, na origem, parte considerável do dinheiro público para o mercado).

O outro lado da moeda é que, assim, o Estado patrocina a multiplicação do rendimento dos mais ricos, seja pelas consequências do aumento do poder de consumo da classe média que ascendeu da pobreza, de parcerias das classes abastadas com o governo ou em decorrência de sociedade na privatização de serviços públicos. O Brasil é atualmente o país que mais produz milionários no mundo, cerca de 500 por mês - isso em um país que até hoje, após 11 anos de petismo, não foi capaz sequer de taxar as fortunas de forma condizente. Desnecessário dizer que tal elite não só têm acesso a serviços da melhor qualidade, inclusive em áreas vitais como Educação e Saúde, como muitas vezes são seus proprietários e vivem do lucro proporcionado por disponibilizarem comercialmente serviços que um governo de esquerda teria obrigação de prestar de forma gratuita.



Bode expiatório
Fica evidente que, nesse modelo, não há lugar para a classe média: não é parceira do governo nas privatizações, nem lucra com elas – pelo contrário: já é, e será ainda mais, a principal ciente dos serviços pagos. Arca com a mais alta carga de impostos entre os três estratos citados – descontados diretamente dos salários ou referentes a bens duráveis que compra a prazo e muitas vezes com dificuldade -, mas não recebe quase nada em troca. Ainda por cima, ciente das graves deficiências da rede pública, gasta fortunas para garantir acesso a planos privados de saúde e para educar os filhos – e isso, na torta visão vigente, a vilaniza ao invés de credenciá-la a receber mais atenção por parte do Estado. Embora incomparavelmente menos capitalizada do que as classes altas, não goza das isenções milionárias que se tornaram a regra para estas– e muitas vezes sem contrapartida na forma de garantia de emprego ou manutenção de preços, como no caso do IPI dos carros e da linha branca de eletrodomésticos ou da conta de luz reduzida para a indústria, maior consumidor de energia do país.

Não é por outra razão que ela vem recebendo ataques sucessivos tanto de ideólogos petistas na academia – que fazem uma tremenda ginástica conceitual para, em dissonância com a realidade do emprego na era do capitalismo pós-industrial, e mais de cem anos após Marx cunhar o conceito, diferenciá-la da "classe trabalhadora" – como de seus batalhões de blogueiros, jornalistas chapa-branca e humoristas, na web. Destes, pode-se até dar risada com as tiradas mais espirituosas, mas o humor não esconde a incongruência de uma administração dita progressista priorizar uma minoria que está na cobertura do edifício social em detrimento de uma classe exponencialmente mais volumosa e que se situa em vários dos andares intermediários.



Classismo petista
Pois não é preciso ser nenhum expert em ciência política para constatar que um governo que se diz de esquerda deveria redistribuir a riqueza de cima para baixo, priorizando evidentemente os pobres, mas com mais sacrifício incidindo sobre os ricos, não sobre a classe média – e jamais promovendo a transferência de renda desta em prol das classes abastadas.

Voltamos, assim, ao início do artigo e à ausência de críticas ao capitalismo por parte do "novo petismo" no poder. Ele não as teria, de fato, como fazer, posto que não tem moral para tal, pois elegeu um modelo econômico que não tem consistência ideológica ou programática, em larga medida submetido aos ditames do mercado e que, em termos de beneficiários, prima por uma dupla clientela – aos pobres e aos ricos – que só se justifica em uma das pontas, enquanto na outra deixa evidente o caráter classista, elitista e essencialmente conservador do projeto de poder ao qual o Brasil encontra-se submetido – e que muitos desavisados ainda acreditam ser de esquerda.

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