O leilão
do campo Libras, marcado para o próximo dia 21, traz em seu bojo um
profundo significado histórico, como capitulação e entrega
da principal riqueza do país a multinacionais, após a longa luta
pelo "Petróleo é nosso", e de violação da ética
eleitoral – já que a candidata Dilma foi eleita priorizando um
discurso antiprivatização, tendo dito explicitamente ser "um
crime privatizar o Pré-Sal" (ouça aqui).
A
escolha, como sede do evento, de um hotel privado de nome inglês, em
plena Barra da Tijuca – a "Miami brasileira" -, no lugar de um prédio
público, e a convocação do Exército e da Força Nacional para
garantir a segurança do leilão falam por si como índices da
defesa dos interesses nacionais e do apreço pela democracia popular.
Nem mesmo a opinião contrária ao leilão da imensa maioria dos
especialistas no assunto e a greve dos petroleiros - os
trabalhadores especializados que mais entendem de petróleo no país
– têm o condão de demover o governo Dilma de realizar esse crime
de lesa-pátria.
Após a
"concessão" de aeroportos, portos e estradas e logo
após o anúncio de um aumento de 29% no preço máximo de duas
rodovias federais que serão leiloadas em novembro – qualquer
semelhança com o PSDB não é mera coincidência -, o leilão
do Pré-Sal representa a perda de qualquer escrúpulo de natureza
ideológica ou programática por parte do governo federal para a
adoção da privatização como política setorial de Estado.
Reacende, assim, o debate público sobre um tema com profundas
ressonâncias na vida socioeconômica brasileira das últimas
décadas.
Privatarias
a granel
Abordadas
inicialmente por Aloysio Biondi – um jornalista
econômico com tal grau de independência e expertise que foi capaz
de identificar, no calor da hora, de forma documentada e em detalhes,
o descalabro que foi a privatização da era FHC –, tais
consequências, examinadas amiúde em textos em sua maioria
acadêmicos e desconhecidos mesmo de leitores interessados no tema,
voltaram com mais força ao debate público graças, sobretudo, ao
livro A
Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Jr. (Geração Editorial,
2011), que tem promovido uma ainda tímida mas efetiva revisão das
consequências da privatização dos anos 90.
Trata-se
de um empreendimento essencial para que possamos não apenas melhor
entender nosso passado – bem como temas essenciais como a relação
entre capital, mídia e a propagação de concepções valorativas
sobre os âmbitos público e privado -, mas evitar repetir graves
erros. Porém, como estes potencialmente não se restringem aos
resultados da privatização promovida pelo governo peessedebista –
sendo, na verdade, inerentes à concepção ideológica de Estado que
gerou o boom das privatizações, da qual decorrem -, é
necessário expandir a análise para além do retrato de seus
temerosos resultados, contextualizando-a em termos históricos,
econômicos e culturais. Não há como fazê-lo em poucas linhas.
Peço, portanto, paciência ao leitor.
New
World Order
O modelo
de privatização do Estado tal como mundialmente difundido a partir
da primeira metade dos anos 90 deriva diretamente do chamado Consenso
de Washington – uma cesta de dez medidas originalmente concebidas,
por economistas do setor financeiro, como receituário a ser adotado
- ou imposto - aos países latino-americanos como forma de, através
de ajustes macroeconômicos, padronizar suas economias e,
alegadamente, permitir sua “inserção” na (ou, em muitos casos,
absorção pela) “nova ordem econômica mundial” liderada pelos
EUA e caracterizada pelo capitalismo tecnofinanceiro.
Nesse
processo, encerra-se não somente a repartição binária do poder
mundial pré-Queda do Muro de Berlim, mas, definitivamente, a era do
sistema econômico mundial acordado em Bretton Woods (ou seja, em que
a cotação das moedas nacionais em relação ao dólar, e desta em
relação ao preço do ouro, pretensamente funcionaria como uma
âncora entre a economia real e a financeira). O capitalismo, então,
pela primeira vez em sua história, se reifica em um modelo sem
lastro monetário, com predomínio do financeiro sobre a economia
real e no qual têm papel preponderante as tecnologias de informação
e a telecomunicação digital em tempo real. É este o sistema
econômico mundial sob o qual temos vivido nos últimos 20 e poucos
anos.
Naturalmente,
sem os contrapesos que a competição entre capitalismo e socialismo
impunha, tal sistema implica, em termos sociais, na redução - ou, a
depender de fatores geopolíticos, mesmo no fim – do Estado de
Bem-Estar Social que assegurara, ao longo do século XX, as maiores
conquistas trabalhistas e sociais da história da humanidade. Tal
abandono se dá em prol de uma “nova ordem” em que o Estado daria
lugar ao protagonismo do setor financeiro e de megas corporações
forjadas a partir de sucessivas fusões empresariais, num modelo
altamente nocivo à economia real e ao mundo social do trabalho.
Decorrência óbvia dessa dinâmica, o consumo como gerador de
cidadania e a criminalização da pobreza completam o quadro
dantesco.
Das dez
medidas propostas pelo Consenso de Washington – disciplina fiscal,
corte de gastos públicos, reforma tributária, juros e dólar
regulados pelo mercado, abolição de barreiras ao comércio exterior
e ao investimento estrangeiro em economias nacionais,
desregulamentação do mercado de trabalho, respeito aos direitos
autorais, e privatização do Estado -, esta última foi não somente
a mais visível e impactante das políticas adotadas, como o próprio
termo que a designa passou a ser utilizado como uma referência
sumária às políticas de orientação neoliberal.
O
papel da mídia
A
privatização foi “vendida” à população de boa parte do mundo
como uma panaceia: por um lado, enxugaria os gastos estatais; por
outro, abasteceria os cofres públicos com a receita das vendas das
empresas e dos serviços gerenciados pelo Estado. Um autêntico Ovo
de Colombo! Ao menos foi assim que a mídia corporativa, em bloco, de
forma incessante e sem permitir a menor dissonância (a internet não
havia ainda se popularizado) a propagou.
Nessa
nova conformação, passam a existir razões tanto estruturais quanto
de confluência de interesses econômicos que explicam porque a mídia
corporativa torna-se não só uma defensora precípua do
neoliberalismo, mas parte constitutiva – e, portanto, interessada -
desse capitalismo infotelefinanceiro que tem na cartilha neoliberal
sua base ideológica: legitimá-lo e retroalimentá-lo significa, na
prática, aumentar continuamente a importância e agregar valor
material à própria mídia (tanto de seu produto-informação quanto
de sua estrutura).
Antonio Rubim, no artigo "A contemporaneidade como Idade Mídia" sugere que essa nova dinâmica capitalista implica na revisão do papel dos aparelhos de reprodução midiática na clássica divisão marxista entre estrutura e superestrutura - já que, incrustada, como parte constituinte, no próprio aparelho reprodutor do sistema econômico, a mídia não pertenceria mais exclusivamente ao segundo termo da equação.
Talvez
isso soe um tanto abstrato, mas o importante a reter é que o papel
da mídia em corroborar o receituário neoliberal e em fornecer-lhe
autenticidade ideológica está hoje não só bem documentado, mas
analisado - eventualmente com brilhantismo - por dezenas de autores.
Ao internauta não familiarizado com o tema e indisposto ao tempo
demandado pelos livros basta, talvez, a leitura do artigo “O
Globalismo como neobarbárie”, do professor brasileiro Muniz
Sodré (um dos ótimos textos críticos sobre globalização
oferecidos pela coletânea Por
Uma Outra Comunicação (Record, 2003), organizada por Dênis de
Moraes).
No curto
texto, Sodré, a partir da constatação de que “todo fenômeno
social de largo alcance gera (…) uma prática discursiva pela qual
se montam e se difundem as significações necessárias à aceitação
generalizada do fenômeno”, traça uma verdadeira genealogia e uma
análise do modus operandi dos agentes midiáticos
encarregados de fornecer uma retorica de legitimação ao
neoliberalismo. Adotando o mercado como paradigma, essa “elite
logotécnica”, atuando no ãmbito das formações ideológicas,
adota uma lógica discursiva segundo a qual “a economia de mercado
é traduzida como resultado de uma natureza eterna e imutável do
homem”, fornecendo “uma base não-meritória para justificar a
desigualdade” e colocando as demandas sociais em segundo plano ante
a sacrossanta auto-regulação do mercado.
Deriva
precisamente desse “cadinho de cultura” o protagonismo midiático
de jornalistas (e protojornalistas) econômicos que ainda hoje
continuam em evidência nas corporações midiáticas e cuja linha de
atuação consiste em negar-se a reconhecer qualquer avanço na
economia que não derive do receituário neoliberal. Esses analistas
simbólicos – muitos dos quais atuam "simultaneamente" na
imprensa, na TV, no rádio e na internet – são alguns dos
principais responsáveis, por um lado, pela fixação e
naturalização, no senso comum, do modelito neoliberal, privatista e
anti-Estado como o único válido; e, por outro, pelo terrorismo
midiático contra a adoção de qualquer medida que divirja de tal
paradigma.
Ventríloquos
do grande capital, do mercado e da plutocracia midiática, formam, há
décadas, a linha de frente da oposição aos avanços sociais e à
verdadeira democratização do país. Gozam, ainda, de acesso a um
contingente enorme do público, mas, após a popularização da
internet e o fenômeno da blogosfera política e das redes socais,
são volta e meia contraditos e desmascarados publicamente. Reinaram,
porém, nos anos 90, tendo sido fundamentais para articular e
propagar a ideologia que sustentou, ante o público, a urgência e
inescapabilidade das privatizações dos anos FHC.
Novilíngua
tucana
A
novilíngua da privatização tucana era direta, técnica e
alvissareira: prometia trocar o inchado, letárgico e ineficaz Estado
brasileiro pela eficiência implacável das gestões metódicas;
relegar o ideologismo fanático e descriterioso pelo tecnicismo
científico e (acredite quem quiser) a-ideológico; substituir os
barnabés caipiras, pançudos e insolentes, sanguessugas das tetas do
Estado, por funcionários asseados, adestrados e risonhamente
submetidos aos rigores da hierarquia, da disciplina e do relógio de
ponto.
Falar é
fácil, mas a realidade foi bem outra. O destino dado às receitas
obtidas pela privatização do Estado brasileiro na era FHC permanece
– ou ao menos permanecia, até a publicação de A Privataria
Tucana – um mistério. De qualquer modo e ao contrário do que
fora apregoado, ele nunca serviu para a liquidação ou mesmo
amortização de nossa dívida externa – muito pelo contrário: o
Brasil que FHC entregou a Lula devia R$20,8 bilhões e a razão
da dívida pública sobre o PIB era de 60,6%. Em resumo: a
privatização, no Brasil, foi um grande engodo.
Em
decorrência, é óbvio que, após as privatizações dos anos 90,
tampouco o Estado, desprovido de suas gorduras, tornou-se mais
eficiente - e não só porque não há eficiência que resista à
falta de giz para escrever na lousa ou ao breu resultante de lâmpadas
que não se acendem (porque a conta de energia elétrica não foi
paga) – mas pelo fato de que a aposentadoria massiva de recursos
humanos, promovida pelo hoje canonizado Bresser Pereira, fez o índice
de médicos por paciente e de professores por aluno cair a níveis
muito abaixo dos que são internacionalmente aceitáveis.
O resto é
história. Contada em pouquíssimos livros, ocultada pela imprensa,
mas de plena lembrança nos corações, mentes e bolsos dos
brasileiros, da classe média para baixo, que vivenciaram o negro
quarto de século que separa a adoção do Consenso de Washington e
sua substituição por um modelo que, embora conservando parte
considerável das orientações neoliberais - como na atuação do
Banco Central, na priorização do setor financeiro, na manutenção
dos contratos terceirizados de obras e serviços, nos superávits
primários ou no modelo de incentivo estatal à cultura -, passou, a
um tempo, a promover a ascensão socioeconômica dos estratos menos
favorecidos e a apostar na expansão tanto do Estado quanto do
mercado interno como propulsores da economia – três premissas que
contrariam frontalmente os dogmas neoliberais.
No
entanto – e após não apenas manter mas aprofundar os citados
resquícios de neoliberalismo que caracterizaram o governo Lula – a
administração Dilma, ao retomar a política de privatização do
Estado, reinsere na agenda, no momento de maior crise internacional
do modelo neoliberal, o principal item do Consenso de Washington,
perdendo uma oportunidade histórica de marcar uma posição
progressista, de minar ainda mais o modelo hegemônico e de oferecer
alternativas próprias e não conservadoras ao domínio
político-ideológico.
Novilíngua
petista
Ao
contrário do vocabulário neoliberal tucano, a ora corrente
novilíngua da administração federal petista em relação às
privatizações é dissimulada e sussurrante. A insistência em
termos como “concessão” e “controle do Estado” - cuja
efetividade não supera o jogo de palavras - procura mitigar a
contradição de estar promovendo uma política administrativa a
qual, a exemplo da maioria de seus eleitores, o petismo sempre
rejeitou e, como já mencionado, cujas acusações de uso pelos
adversários peessedebistas serviram de arma eleitoral nos últimos
pleitos presidenciais.
Mas, se
na forma as privatizações tucana e petista diferem, na essência
implicam em uma premissa em comum: a crença na incapacidade do
Estado (e, em decorrência, em seus servidores) de realizar, com a
excelência e a presteza necessária, as obras demandadas pelo país.
Outo ponto em comum, de igual gravidade, é a urgência em trocar o
patrimônio nacional – no caso, nossa maior riqueza mineral – por
uma injeção de capital que atenda as necessidades de ocasião e
equilibre as contas do governo, satisfazendo às imposições
fiscais do mercado financeiro – leia-se alto superávit primário.
Agravam ainda mais as preocupações o fato de tal barganha se dar às
vésperas das eleições, e sob o comando de um partido cuja cúpula,
tentando evitar ser condenada pelo "mensalão", admitiu com
naturalidade a prática de caixa 2.
Ao
alienar tal patrimônio público - e de forma desnecessária, afobada
e contrária aos interesses do povo brasileiro - o governo Dilma
Rousseff valida e corrobora a visão do Estado brasileiro como um
ente incompetente, incapaz de operar com destreza e expertise,
colocando-o, simbólica mas efetivamente, em uma posição
hierarquicamente inferior em relação à iniciativa privada. É
no mínimo contraditório que tal política seja promovida por um
governo que afirma estar ora a realizar uma revolução na –
atenção para a significativa apropriação de um slogan marqueteiro
tucano - “gestão do Estado”, a qual alegadamente otimizaria a
atuação do funcionalismo público e o funcionamento da máquina
estatal.
Retornando,
em uma perspectiva crítica, às ideias de Sodré, parece necessário
reconhecer que, se o apoio militante da mídia aos pressupostos
neoliberais mesmo durante os governos Lula e Dilma foi, de fato, um
obstáculo de difícil transposição à articulação e à difusão
de uma prática discursiva que desse conta do modelo mezzo
neoliberal, mezzo pós-keynesiano em vigência em
tais administrações petistas – e que colaborasse para aprimorá-lo
-, a insistência destas em não confrontarem o establishment
neoliberal em seu quesito essencial acaba por evidenciar
o esvaziamento ideológico da política que tal recusa promove.
O
resultado, do ponto de vista do espectro político, é o esvaziamento
do campo político da esquerda, em relação ao qual programas de
renda mínima e política de cotas – que nada custa ao Estado -
fazem as vezes de políticas sociais a um tempo reestruturantes e
duradouras, que também afetasse o topo da pirâmide econômica,
taxando os mais ricos e diminuindo as pornográficas taxas de lucro
de banqueiros e grupos de telecomunicação.
Este é,
em si, um dos aspectos mais retrógrados e, a médio prazo,
potencialmente mais danosos à evolução do debate público no
Brasil, pois ao invés de avançar em direção contrária e para
além do conteúdo programático neoliberal, os setores ditos
progressistas e de centro-esquerda ora no poder preferem mimetizar o
conservadorismo, endossá-lo e com ele se confundir, correndo o risco
de, ao tornar-se ideologicamente indistinguível aos olhos dos
eleitores, abrir caminho para a oposição conservadora. Exemplo
prático: no caso de uma vitória de uma força conservadora nas
próximas eleições, esta se veria desobrigada de explicar uma
eventual política de privatização, graças ao retorno disseminado
de tal prática no governo Dilma.
Retrocesso
conservador
Assim
além de fortalecer tremendamente a posição da mídia corporativa –
a qual, em relação ao leilão de Libras, endossa com prazer a opção
pela privatização, provando, uma vez mais, que sua generalização
como "PIG" não procede – a atual administração
fornece subsídios que revalidam a opinião daqueles que acham que há
mínimas diferenças entre os métodos e estratégias tucanos e
petistas e que a disputa entre PT e PSDB não passa de uma luta pelo
poder, sem um verdadeiro embate de conteúdos programáticos,
ideologias e propostas. Ela fortalece também a posição dos muitos
que consideram que falta à aliança petista coragem e/ou vontade
política para assumir uma posição político-ideológica,
difundi-la e defendê-la, como forma de promover o avanço da
cidadania e das lutas político-sociais.
Além
disso, ao desmentir, na prátiva, o discurso com o qual fora eleita,
agindo de forma contrária do que apregoara e traindo a muitos eleitores que nela confiaram, Dilma fragiliza ainda mais
os parâmetros éticos da política brasileira e intensifica a
tendência, ora corrente em praticamente todo o mundo, ao desencanto com a
política oficial. A necessidade de que os políticos brasileiros cumpram os compromissos em campanha, ao menos em linhas gerais, transcende a luta partidária: é do interesse da cidadania e do aperfeiçoamento da democracia brasileira. Por respeito ao eleitor, um governante que faz exatamente o contrário do que apregoou na campanha eleitoral, sem nenhuma calamidade que o force a isso, deveria sofrer algima forma de grave sanção, como forma de desestimular tal estelionato eleitoral.
Por fim,
com o retorno à privatização de portos, aeroportos e estradas –
além do petróleo, que o povo brasileiro tanto utou para que fosse
nosso – o governo Dilma reforça e acelera a impressão - acentuada após os protestos de junho - de que
é necessário superar o falso binarismo "petismo versus
peessedebismo" e buscar uma terceira opção que resgate e
assuma, de forma clara e como tais, não só uma práxis de esquerda,
mas de primazia ao interesse nacional sobre em relação à agenda do mercado
financeiro - com um mínimo que seja de disposição de confrontar o
mercado, a mídia, o latifúndio e as grandes fortunas.
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