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domingo, 15 de maio de 2011

Quando era dureza ser de esquerda...

Houve um tempo em que era duro ser de esquerda.

Éramos barbados, sofridos e, pior, quase nunca ganhávamos eleições. Vira e mexe, confundiam-nos com os hippies e até com mendigos (vi uma vez tentarem dar uma esmola ao Plínio Marcos, que, com uma barba enorme e de havaianas, vendia seus livros na rua; ele reagiu furioso).

Como, por muitas décadas, ser de esquerda significava ser socialista ou comunista (portanto ateu e comedor de criancinhas) era quase uma heresia anunciar-se como tal em público. Senhoras se benziam, cavalheiros mudavam de calçada. Pra não dar bandeira, o negócio era embrulhar o Livro Vermelho do Mao com a capa do Eram os Deuses Astronautas e ir tocando a vida.

Por falar em tocar a vida, era um tempo em que as pessoas de esquerda, em sua maioria, eram (ou se consideravam) intelectuais, e, portanto, iam ao bar, não à praia – e jamais às academias de ginástica. Frequentá-las seria desmoralização total:

- “Autocrítica, companheiro, olha essa preocupação burguesa com a beleza física”.

Quem estipulou essa de que intelectual bebe, ao invés de ir à praia, foi o Jaguar, cartunista, bebedor contumaz, e editor d’O Pasquim, o jornal que os esquerdistas liam em êxtase, convencidos de que eram tão inteligentes quanto o pessoal que lá escrevia.

Era um tempo em que os meio intelectual, meio de esquerda frequentavam aqueles bares meio ruins que o Antônio Prata imortalizou numa crônica serelepe. Na época não existiam esses botecos chiques nem esses festivais de comida de boteco, que prometem tira-gostos divinos mas exigem que todos eles tenham como ingredientes determinada marca de maionese e um desses salgadinhos de pacote que imitam nachos – o que acaba transformando a ida ao boteco num insólito confronto com uma espécie de nouvelle cuisine perisqueira, com o Sushi de Mignon Marinado concorrendo com as Trouxinhas de carne seca com camembert e pimenta-de-dedo. Salvai-nos, São Moacyr Luz!

Mas, se os botecos pioraram, em compensação ser de esquerda ficou bem mais fácil. Pra começar, exceção feita à minoria de prefeituras e estados governados pelo PSDB, em nossos protestos não precisamos mais enfrentar cavalaria, porrada e gás lacrimogêneo.

Basta nos refestelaremos confortavelmente numa poltrona made in China, abrir o laptop e, um mouse na mão e uma ideia na cabeça, navegar pela aguerrida blogosfera, assinar as campanhas da Avast e esgrimir argumentos e links nas redes sociais.

Antigamente, quando éramos oposição, aí era bem mais difícil. Tínhamos muitos e mais poderosos inimigos: o capitalismo, os EUA, o FMI, a ditadura militar, o Nelson Rodrigues, a UDN, o Roberto Campos, o Paulo Francis e Amaral Neto, o repórter.

Hoje, nossos inimigos são, basicamente, dois: o PIG e o José Serra (alguns, mais radicais, incluem FHC e o PSDB, como se eles ainda apitassem alguma coisa...). Assim, para exercermos a tal da práxis política, não precisamos mais dominar o jargão marxista nem ter lido todo o catálogo da Civilização Brasileira. Temos as respostas (para qualquer pergunta ou acusação) na ponta da língua:

A ministra da Cultura está jogando no lixo os avanços na produção e circulação de cultura?
- Culpa do PIG!

A inflação está pela hora da morte?
- Invenção do Serra!

O corte nas verbas da educação começa a comprometer o nível do ensino superior e os avanços do governo Lula na área?
- Invenção do PIG!

Com essa argumentação sofisticada, honesta, salpicada de elogios eventuais a nossos novos aliados – Delfim Netto, Bresser Pereira, Kátia Abreu, Kassab – ser de esquerda continuará a ser, por um bom tempo, sopa no mel, enquanto Aldo Rebelo adula os ruralistas e Palocci, o mercado financeiro.

Afinal, num tempo em que até a dita esquerda no poder vira e mexe adota medidas neoliberais, ficou mesmo muito fácil ser de esquerda. Tão fácil que a gente até desconfia.

6 comentários:

Eduardo Goldenberg disse...

São Moacyr Luz? Você pediu ajuda ao santo errado...

Cé S. disse...

Esta "argumentação sofisticada" da esquerda de hoje também me impressiona, Maurício. Baita postagem!

Anônimo disse...

Entendo seu texto como um alerta, mais ou menos nestes termos:

"Não é só à direita que o repertório de argumentos para o debate político vai definhando..."

Para mim, isto é uma ameaça ao diálogo, e sem diálogo não haverá democracia que aguente, quanto mais que prospere.

Gostei mesmo. Parabéns!

Anônimo disse...

Arrebentou,hoje em dia é moda,o presidente da FIESP é socialista.

Leo

Puebla disse...

São parcos os horizontes. Em Sampa de nossa janela vemos outra janela e mais outra e mais outra. Me sinto enclausurado. As ruas estão para servir os automóveis, pedestre que se cuide, pode cair um beiral na sua cabeça das construções que infestam desordenadamente a cidade. Não há crianças nas ruas, apenas crianças de rua, livrarias e cinemas fecham dando lugar a shoppings restritivos e impessoais. A ascenção do G. Kassab é de uma temeridade assombrosa. É, hoje a feijoada não vai descer legal.
Esquerda, ora a esqurda...
Abraços.
Puebla

Tardelli Louvem disse...

Texto bruto! Poucos PTistas reconhecem o que você reconheceu.