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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Governo Dilma: derrotas consecutivas evidenciam necessidade de mudanças

Ao final de fevereiro, surpreendido, a um tempo, pela guinada neoliberal na seara econômica e pela súbita obsessão em cooptar a classe média conservadora que recém a rejeitara nas urnas, publiquei aqui dois textos – que acabaram tendo uma repercussão muitíssimo maior do que eu poderia imaginar - manifestando minha decepção com o governo Dilma e comunicando o meu desligamento da chamada blogosfera progressista, com o anúncio de que a participação militante seria substituída por uma abordagem jornalística.

De lá para cá, diminuí os posts do blog, como disse que faria, e, nas últimas semanas, um pouco por fastio e desencanto, outro tanto porque estive extremamente ocupado, trabalhando, poupei meus poucos mas estimados leitores de qualquer opinião sobre o atual governo.

Os acontecimentos recentes, no entanto, exigem que o silêncio seja interrompido.


Quadro precocemente deteriorado
Passados cinco meses, permanece o economicismo de cunho neoliberal que prejudica a setores essenciais – leia-se, destacadamente, educação - em prol das demandas do mercado financeiro. E, em decorrência, avultam questões como a suspensão dos concursos federais, o anúncio de privatizações em áreas estratégicas, o retrocesso no MinC e as sucessivas confusões do MEC.

Convém sublinhar que, quase na metade do primeiro ano de mandato, não é mais possível, nem honesto, atribuir tais percalços a um governo diletante, como alguns insistem em fazer.

Se, como vinhámos alertando, tais fatores já eram mais do suficientes para levar ao questionamento dos rumos que um governo alegadamente centro-esquerda estava tomando, dois graves episódios recentes tornaram tal necessidade inadiável: a fragorosa derrota do governo na votação do Código Florestal seguida, já no dia seguinte, do cancelamento, por Dilma Rousseff, da distribuição do kit da campanha anti-homofobia prestes a ser posta em prática pelo MEC.

Ambos episódios evidenciam o que é, a meu ver, um problema nodal da atual adminsitração: a ausência de uma coordenação política a efetivamente fazer o meio-campo entre o Executivo e as casas legislativas. No caso específico da aprovação de itens inaceitáveis do Código Florestal, os quais claramente beneficiam os ruralistas em detrimento do bem social e que Dilma promete vetar, esse foi um fator precípuo, tanto em uma maior interlocução com o relator Aldo Rebelo quanto – cujo comportamento pré-votação demandaria que fosse marcado de perto – quanto, sobretudo, uma ação coordenada com os demais líderes da base governista.


Chantagem não
O caso do kit anti-homofobia – que reacionários como Bolsonaro apelidaram de “kit-gay” –, embora passível de ser revertido a médio prazo, parece-me ainda mais grave, por evidenciar não apenas a violação do princípio de que o Estado brasileiro é laico, mas por claramente constituir uma tentativa bem-sucedida de chantagear o governo, ameaçando atirar o novamente suspeito Palocci aos leões caso um conjunto de vídeos didáticos, bem-feitos (confira aqui), dedicado a combater a homofobia e evitar o bullying fosse distribuído à rede escolar.

Não é intenção deste artigo especular se Palocci tem ou não culpa no cartório ou qual seria a medida ideal a ser tomada pelo governo para tirar do centro da sala o bode que lá a mídia depositou.


Três questões
Mas duas questões se mostram inevitáveis: uma é que, a despeito de Dilma frequentar festas na Folha e fazer omeletes com Ana Maria Braga, a mída continua mais que disposta a colocar bodes na sala presidencial - e a presidenta precisa, urgente, traçar uma estratégia para lidar com tal disposição midiática e/ou com tais bodes.

As outras se dão na forma de pergunta, retórica mas para ser pensada: quantos hectares de mata virgem vale Palocci? Quantos ataques de homofobia e quantas almas sensíveis atormentadas pelo fantasma do bullying justificam a permanência de um tecnocrata que, ao final, não fez falta aos melhores momentos do governo Lula?

Refém de uma realpolitik muito elástica
Por fim, para encerrar esta breve reflexão, é preciso observar que causa ainda mais perplexidade a constatação de que a dupla derrota governista se dá em um momento no qual a direita brasileira sofre uma de suas maiores crises históricas, com o desfalecimento do DEM e o acirramento das disputas internas no PSDB, pondo em risco a unidade do principal partido de oposição, já enfraquecido por três derrotas eleitorais consecutivas nas eleições presidenciais.

Assim, com o recuo abrupto de Dilma no caso do kit anti-homofobia, e dado os resultados infrutíferos das articulações governistas que precederam as votações do Código Florestal, a impressão que fica, como aponta a blogueira Amanditas, é que o governo se encontra refém de suas próprias alianças, num ajuste de interesses tão díspares que as demandas de centro-esquerda tendem, na prática, a sumir do horizonte

Na bela Carta Aberta aos Petistas que Milton Temer fez hoje publicar, orbita justamente em torno da descaracterização de um programa de centro-esquerda em prol do mercadismo o seu alerta de que, como visto recentemente na Espanha, a direita reacionária brasileira não precisará de outro golpe militar para voltar ao poder.

Trata-se de algo a meditar e a levar os setores da esquerda que insistem em um conformismo chapa-branca, acatando as decisões governamentais como se sagrads fossem, a tomar uma posição mais ativa, pressionando o governo de Dilma para que ele cumpra o que prometeu.

domingo, 15 de maio de 2011

Quando era dureza ser de esquerda...

Houve um tempo em que era duro ser de esquerda.

Éramos barbados, sofridos e, pior, quase nunca ganhávamos eleições. Vira e mexe, confundiam-nos com os hippies e até com mendigos (vi uma vez tentarem dar uma esmola ao Plínio Marcos, que, com uma barba enorme e de havaianas, vendia seus livros na rua; ele reagiu furioso).

Como, por muitas décadas, ser de esquerda significava ser socialista ou comunista (portanto ateu e comedor de criancinhas) era quase uma heresia anunciar-se como tal em público. Senhoras se benziam, cavalheiros mudavam de calçada. Pra não dar bandeira, o negócio era embrulhar o Livro Vermelho do Mao com a capa do Eram os Deuses Astronautas e ir tocando a vida.

Por falar em tocar a vida, era um tempo em que as pessoas de esquerda, em sua maioria, eram (ou se consideravam) intelectuais, e, portanto, iam ao bar, não à praia – e jamais às academias de ginástica. Frequentá-las seria desmoralização total:

- “Autocrítica, companheiro, olha essa preocupação burguesa com a beleza física”.

Quem estipulou essa de que intelectual bebe, ao invés de ir à praia, foi o Jaguar, cartunista, bebedor contumaz, e editor d’O Pasquim, o jornal que os esquerdistas liam em êxtase, convencidos de que eram tão inteligentes quanto o pessoal que lá escrevia.

Era um tempo em que os meio intelectual, meio de esquerda frequentavam aqueles bares meio ruins que o Antônio Prata imortalizou numa crônica serelepe. Na época não existiam esses botecos chiques nem esses festivais de comida de boteco, que prometem tira-gostos divinos mas exigem que todos eles tenham como ingredientes determinada marca de maionese e um desses salgadinhos de pacote que imitam nachos – o que acaba transformando a ida ao boteco num insólito confronto com uma espécie de nouvelle cuisine perisqueira, com o Sushi de Mignon Marinado concorrendo com as Trouxinhas de carne seca com camembert e pimenta-de-dedo. Salvai-nos, São Moacyr Luz!

Mas, se os botecos pioraram, em compensação ser de esquerda ficou bem mais fácil. Pra começar, exceção feita à minoria de prefeituras e estados governados pelo PSDB, em nossos protestos não precisamos mais enfrentar cavalaria, porrada e gás lacrimogêneo.

Basta nos refestelaremos confortavelmente numa poltrona made in China, abrir o laptop e, um mouse na mão e uma ideia na cabeça, navegar pela aguerrida blogosfera, assinar as campanhas da Avast e esgrimir argumentos e links nas redes sociais.

Antigamente, quando éramos oposição, aí era bem mais difícil. Tínhamos muitos e mais poderosos inimigos: o capitalismo, os EUA, o FMI, a ditadura militar, o Nelson Rodrigues, a UDN, o Roberto Campos, o Paulo Francis e Amaral Neto, o repórter.

Hoje, nossos inimigos são, basicamente, dois: o PIG e o José Serra (alguns, mais radicais, incluem FHC e o PSDB, como se eles ainda apitassem alguma coisa...). Assim, para exercermos a tal da práxis política, não precisamos mais dominar o jargão marxista nem ter lido todo o catálogo da Civilização Brasileira. Temos as respostas (para qualquer pergunta ou acusação) na ponta da língua:

A ministra da Cultura está jogando no lixo os avanços na produção e circulação de cultura?
- Culpa do PIG!

A inflação está pela hora da morte?
- Invenção do Serra!

O corte nas verbas da educação começa a comprometer o nível do ensino superior e os avanços do governo Lula na área?
- Invenção do PIG!

Com essa argumentação sofisticada, honesta, salpicada de elogios eventuais a nossos novos aliados – Delfim Netto, Bresser Pereira, Kátia Abreu, Kassab – ser de esquerda continuará a ser, por um bom tempo, sopa no mel, enquanto Aldo Rebelo adula os ruralistas e Palocci, o mercado financeiro.

Afinal, num tempo em que até a dita esquerda no poder vira e mexe adota medidas neoliberais, ficou mesmo muito fácil ser de esquerda. Tão fácil que a gente até desconfia.

sábado, 7 de maio de 2011

STF e homoafetividade: rumo a um país verdadeiramente democrático

Ao reconhecer por unanimidade a união civil homoafetiva, o STF honrou a Constituição, resistiu bravamente às pressões de setores conservadores e recuperou-se, ao menos momentaneamente, do maior desgaste de sua história, vivenciado durante o governo Lula, sob a liderança tacanha de Gilmar Mendes.

Trata-se de uma decisão histórica, que traz um sopro de renovação à atmosfera algo pesada que vem marcando o início do governo Dilma, eivado pelo retorno ao economicismo neoliberal primário. O resultado do julgamento do STF coloca o Brasil em pé de igualdade com nações em que os indivíduos não são discriminados por sua sexualidade, mitigando a distorção secular que cobrava de gays e lésbicas o cumprimento de todos os deveres cívicos, negando-lhes, no entanto, a contrapartida em direitos que os demais cidadãos e cidadãs usufruem.

A decisão, embora ansiosamente esperada, de certa forma surpreende. Havia o temor (justificado) de que a ascensão de novos e volumosos estratos neopentecostais – aliados, no caso, a setores conservadores do catolicismo – pudesse vir a tornar a esfera pública brasileira impermeável a avanços comportamentais, seja no campo da sexualidade ou, por exemplo, em relação à questão das drogas. A reação moralista e em bloco ao tema do aborto, vista na última eleição, reforçava tais temores.

Mas a alta corte não se deixou influenciar, cumprindo de forma digna sua missão. E não apenas ao estabelecer jurisprudência, mas fornecendo diretrizes legais que servirão de balizas para o tratamento do tema em termos sociais e educacionais.

Setores conservadores reagiram de forma ruidosa, como seria de se esperar, com os Bolsonaros da vida, à falta de argumentação racional, cuspindo fogo pelas ventas. Por outro lado, na internet e nas redes sociais, o clima foi de euforia e de congratulação. Um número enorme de pessoas, casadas, solteiras, das mais diversas inclinações sexuais, comemorou a decisão como uma grande conquista da cidadania.

Em meio à celebração, no entanto, o desabafo incluiu ataques indistintos a religiões e aos que nelas crêem. Tendo em vista os enfrentamentos pregressos e as reiteradas tentativas de intromissão indevida das instituições religiosas em questões públicas, não é de se entranhar que eles ocorram. Mas, idealmente, são dispensáveis - além de pouco inteligentes do ponto de vista tático, ainda mais se considerarmos que a batalha agora se deslocará para o Congresso, que deve regulamentar a decisão, dando a palavra final quanto a casamento e adoção de filhos por homossexuais.

Um tal cenário, viabilizado pela decisão de improváveis senhores de togas negras, acena para um país realmente democrático, onde viceje uma dinâmica sexual, social e afetiva realmente democrática. Tivemos um breve vislumbre dessa possibilidade na última quinta-feira. Que ela se concretize, em breve, como realidade.


(Foto retirada daqui)