Na adolescência tornou-se claro que o mistério era, evidentemente, o sexo, a existência de um mundo de prazer e entrega apartado do universo aparente do cotidiano.
Quanto à opressão, levei mais tempo para descobrir que se tratava dos efeitos paranóicos instaurados pela ditadura militar, os quais a peça Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, registrada em disco, reproduz com maestria, captando as sutis mas muito perturbadoras decorrências da opressão para a psicologia coletiva.
Com efeito, eu nasci e cresci sob a pesada atmosfera dos anos de chumbo. Em 1967, com um barrigão e a alguns meses de me trazer ao mundo, minha mãe ficou, nas imediações da Praça da República, espremida detrás de uma porta de ferro de uma loja fechada às pressas, enquanto uma batalha campal entre estudantes e forças repressivas se dava à sua frente, com direito a bombas de gás de um lado e, de outro, bolinhas de gude para derrubar os cavalos.
Neste primeiro de abril de 2011, 47o. aniversário de uma ditadura que afundou o pais numa pasmaceira e num vale-tudo anti-ético encoberto pela censura à imprensa, atrasando em décadas nossa evolução e deixando marcas profundas e deletérias, republico aqui uma história verídica vivenciada pelo meu pai, cujo ódio que sempre nutriu pela ditadura só é superado pelo êxtase com que celebrou a redemocratização e, mais recentemente, a Era Lula.
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Há 37 anos foi lançado no Brasil o filme Corações e Mentes. Mais incisivo documentário sobre a guerra do Vietnã, a obra dirigida por Peter Davis celebrizou-se pela denúncia da crueldade contra civis empregada pelo exército norteamericano no conflito, simbolizada na célebre foto (tirada em 1972 por Nic Ut) da garotinha vietnamita Kim Phuc correndo com o corpo nu queimado por Napalm.
Além da inegável importância histórica do filme, ele tem, para mim e para minha família, um significado especial, pois representou um dos momentos de maior risco que meu pai correu de ser apanhado pelas forças repressivas do regime militar.
Esta é uma história verídica e nunca tornada pública por nós, sendo que tampouco tive a oportunidade de lê-la escrita por alguma das outras pessoas que a vivenciaram. Trata-se, é evidente, de um episódio ínfimo (do ponto de vista das consequências vivenciadas individualmente por meu pai) se comparadas às brutalidades cometidas pelo regime militar - relatadas em documentos como o livro Brasil Nunca Mais -, mas que atingiram duramente, como ficará evidente, outros participantes do ocorrido.
É, no entanto, um relato ilustrativo do grau de cerceamento da liberdade individual durante o período que uma certa imprensa ousa hoje chamar de “ditabranda”, e do grande risco que cidadãos comuns, sem envolvimento direto com a luta política, corriam de serem enredados na teia de tortura e arbitrariedades de um aparelho repressor sem controle nem limites.
Meu pai foi ver Corações e Mentes no Cine Arouche, no centro de São Paulo. Embora fosse um homem de esquerda, simpatizante do comunismo, e temesse a repressão por conta de alguns textos analíticos e poemas políticos que publicara, tocava a vida e sustentava a família trabalhando num banco (emprego que odiava), restringindo suas opiniões sobre o regime para o círculo de amigos e para as noites boêmias do então seguro e potável centro de São Paulo (que adorava, boemia e local).
Um tanto por exigência do emprego, um tanto por vaidade pessoal, vestia-se muito bem, com ternos de casimira inglesa, pulseiras de prata, costeletas e cabelos compridos, de acordo com o modelito “playboy anos 70” – a tal ponto que um primo bulia, sempre que o via adentrar a casa de minha avó:
- Chegou a elegância e o dinheiro!
Certamente impressionado pela “pinta” do cidadão (ao menos foi o que meu pai imaginou), o porteiro do cinema insistiu para que ele visse o filme da sala 2, um "enlatado" hollywoodiano, argumentando que Corações e Mentes não era “uma fita apropriada pra um cavalheiro como o senhor”. Ele achou aquilo de um absurdo atroz, mas o funcionário foi muito insistente. Após quase chegarem à discussão, ele acabou entrando para ver o longa documental, que o impressionou desde a primeira sequência. As razões da insistência inusitada do porteiro logo se explicariam...
Quando o filme retratava um dos bombardeios mais violentos sobre uma vila vietnamita, em que toneladas de bombas eram lançadas contra pobres cidadãos indefesos, a luz de súbito se acendeu. A projeção foi interrompida. Militares, em trajes camuflados, cercavam a platéia, nos corredores laterais e à frente, apontando metralhadoras aos espectadores.
Seguiu-se um tempo que pareceu uma eternidade.
Dois homens entraram, ambos vestindo japonas beges com zíper. Um deles era o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sem dizer uma palavra, passaram a percorrer fileira por fileira, olhando fixamente as feições de cada espectador. Ao comando de um dos dois, o sujeito era retirado da sala por soldados. A lenta operação foi repetida diversas vezes, com vários indivíduos sendo presos e nenhuma palavra, exceto o fatídico “Você, fora!” que determinava a sorte do indigitado.
Num dado momento, não aguentando mais e tomado pela exasperação, um homem abriu ostensiva e estrepitosamente um jornal. Foi imediatamente preso.
Ao fim de cerca de duas horas, Fleury virou-se para a audiência, desculpou-se e, identificando-se como delegado do DOPS, disse que eles foram obrigados a interromper a sessão porque ali se dava atividade subversiva – alguém, segundo ele, estaria distribuindo panfletos na sala. Nenhum desses supostos impressos jamais chegou às mãos de meu pai.
Os homens se retiraram, mas podia-se ver a fila dupla de soldados à saída do cinema. O filme recomeçou, mas quem conseguia prestar novamente atenção nele depois do que se passara? Imaginavam apenas o que os esperava lá fora. No mínimo, passaremos por um corredor polonês, pensou meu pai; no máximo, iremos todos presos, seremos barbaramente torturados e até mortos.
O filme acabou e ninguém saía do cinema. Após não aguentar mais esperar, meu pai foi o primeiro a se levantar, seguido por outros. Passou incólume pela fila dupla de soldados e, ao chegar à rua, defrontou-se com uma operação de guerra: brucutus sobre a grama do Largo do Arouche, diversos veículos militares nos arredores; investigadores e delegados, aparentemente comandados por Erasmo Dias, numa operação planejada com o intuito deliberado de captar esquerdistas – o público que mais tenderia a se sentir atraído por um filme que fazia uma denúncia contundente do imperialismo belicista dos EUA de então.
As pessoas retiradas da sala haviam sido todas encapuzadas e estavam algemadas, de pé, numa espécie de perua militar. Que destino atroz as esperava?
Meu pai teve que atravessar a confusão de veículos militares para resgatar sua Brasília marrom, parada em pleno largo. Veio dirigindo com o coração na mão e só se convenceu de que não estava sendo seguido quando contornou o obelisco do Ibirapuera, deixando a 23 de Maio. Em casa o esperavam minha mãe, a filha de 4 anos e este blogueiro, então uma criança inocente dos riscos de ser preso e torturado que seu pai correra – pela simples decisão de assitir a um filme.
(Imagem retirada daqui)
2 comentários:
Já ouvi diversas vezes essa história, no entanto, você me fez esperar ansiosamente por um final feliz para nosso pai!
Excelente e comovente relato.
Simplesmente emocionante o post! Imaginei a cena toda na cabeça, e me fez perceber a força que um filme pode ter!
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