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segunda-feira, 10 de maio de 2010

A contribuição de Ana Cristina César aos Estudos de Cinema

Ana Cristina César não só deixou um belo legado de poemas em que questões existenciais e a natureza feminina são tematizadas de forma a um tempo rascante e lírica, mas traduções (de poetisas inglesas, notadamente), ensaios críticos, textos de prosa poética e um livro, pelo qual tenho particular estima, que, embora usualmente classificado como de crítica literária, sintetiza uma pesquisa na área dos estudos de cinema, Literatura Não é Documento (Rio de Janeiro: Funarte, 1980)

Em suas meras 121 páginas, Ana, demonstrando grande poder de síntese, procura, através da análise de um campo cinematográfico específico - a produção de documentários sobre autores literários nacionais -, investigar as relações entre cinema e Estado.

Após atentar para os aspectos educacionais do documentário “literário”, Ana sublinha o crescimento da importância do subgênero em momentos de afirmação da identidade nacional. Esboça, assim, a premissa lógica que orientou, em dois momentos ditatoriais distintos e distantes no tempo (o Estado Novo getulista e o pós-AI-5, anos 70 adentro), as relações entre cinema e produção cultural no Brasil.

Publicado em 1980 - quando os ventos da Abertura trouxeram ares menos sensíveis a críticas ao regime -, o livro fora escrito entre 1977/1978 (portanto, nos anos subsequentes à adoção do Plano Nacional de Cultura, vigente desde 1973 e que levaria o cinema brasileiro à sua melhor década em termos de público e de ocupação de mercado). Apresenta surpreendente distanciamento crítico para uma observadora inserida no momento observado.


Radiografando a relação Estado-cinema
Buscando investigar a dinâmica da relação Estado-cinema, Ana analisa, historicizando, os orgãos criados em quatro décadas dessa interlocução, priorizando o exame dos critérios normativos responsáveis pela filtragem estatal dos projetos aprovados.

A produção estadonovista, baseada no Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e chefiada pelo pioneiro Humberto Mauro, iniciara-se em 1937, com curtas metragens produzidos de forma ininterrupta. Relativamente uniformes, voltavam-se, a priori, à educação escolar, sendo distribuídos de graça às escolas, por sua vez dotadas de projetores cinematográficos. É a essa fase que pertence a primeira versão, em P&B, de Carro de Boi, que, refilmado em cores em 1974, seria o derradeiro filme dirigido por Mauro - o “nosso Griffith”, no dizer de Paulo Emílio Salles Gomes.

Já a produção documental dos anos setenta, não obstante estar ligada ao processo de busca por legitimização cultural por parte do regime, constituiria, segundo Ana Cristina César, “mais um surto, menos um bloco patrocinado”, dizendo mais respeito à “busca de uma eficácia perdida num esquema repressivo” do que a aspectos especificamente educacionais. O relativo pluralismo dessa produção abarca desde filmes presos ao convencionalismo formal (exaltação da personalidade do escritor; fetichização de sua presença; etc.), até obras experimentais arrojadas - embora estas quase sempre tenham sido, como é dado a constatar no desenrolar do livro, submetidas a périplos tortuosos de financiamento.


Inquietude radical
Encerrando a primeira parte do livro, no momento de confluência entre os estudos de cinema e a crítica literária, aflora a inquietude radical que marcou a trajetória pessoal e literária da autora, na forma de uma análise provocativa e original do conformismo da produção cine-documental brasileira, “sem produto que veicule uma crítica radical à visão circulante de literatura”. Questionando a possibilidade ou não de se introduzir diferenças no interior do documentário, põe o dedo na ferida ao inter-relacionar, através da contraposição, tal possibilidade à natureza estatal da produção.

Destaca-se, no livro, a percepção do quociente de manipulação inerente à escolha de projetos pela EMBRAFILME. Através de entrevistas, a autora permite entrever uma combinação de critérios que, embora simulem um catalisador modelar comum à heterogênea produção da estatal, acabam, devido à sua flexibilidade excessiva, passíveis de direcionamento para atender a interesses clientelistas. Simplista falar em cooptação, ingênuo desprezá-la.

Embora, nas décadas que se seguiram à publicação de Literatura Não é Documento, autores como José Mário Ortiz Ramos (Cinema, Estado e Lutas culturais, Paz e Terra, 1983), Anita Simis (Estado e Cinema no Brasil, Anablume, 1996) e Tunico Amâncio (Artes e Manhas da Embrafilme, EdUFF, 2000) tenham aprofundado sensivelmente a análise das contradições e especifidades dos anos Embrafilme, o livro de Ana Cristina César conserva sua contundência e originalidade, revelando potencialidades que o suicídio da autora, aos 31 anos, tragicamente abreviou.


(Imagem retirada daqui)

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