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domingo, 13 de dezembro de 2015

Lançamento: Coleção Cinema Brasileiro

 A história do cinema brasileiro, feita de “mortes súbitas e renascimentos precários”, como define Roberto Moura,  ainda apresenta zonas obscuras, períodos e tendências pouco conhecidos fora dos escaninhos da academia ou da cinefilia militante. 

A produção concentrada entre o final dos anos 20 e dos anos 40, em que a ousadia estético-narrativa de Limite convive com as primeiras tentativas de industrialismo, talvez seja um dos exemplos mais eloquentes.

É exatamente sobre tal período que se concentram os três volumes da Coleção Cinema Brasileiro – Clássico ▪ Industrial, organizada pela professora e pesquisadora Daniela Gillone. 

Lançado esta semana, o primeiro volume tem como tema o cinema de Humberto Mauro (foto abaixo), prospectando  o veio temático que Paulo Emílio Salles Gomes pesquisara com alento e primor há mais de 40 anos, no livro clássico Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte (São Paulo: Perspectiva, 1974).
 

Olhares diversos
Prioriza-se a análise de sua produção nos anos 30 e 40 ( quando protagoniza a aventura industrial da Cinédia), mas sem deixar de levar em conta o ciclo de Cataguases (1925-29) e sua atuação como "cineasta-educador" no INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), uma trajetória em "que se destaca pelos compromissos estéticos, políticos e sociais", como assinala a organizadora. 
 
Sheila Schwarzman, que há uma década renovou os estudos sobre o cineasta, perfaz um corte transverso na produção mauriana, com maior foco na fase do INCE (onde Mauro atuou de 1936 a 1964), período que também é privilegiado na análise de Caio Lamas. Joelma Ferreira dos Santos inventaria representações de brasilidade na fase sonora da produção mauriana, enquanto a minha contribuição ao volume examina a relação entre narratividade e representação no filme Lábios Sem Beijos (1930, foto abaixo). Já Marcelo Miranda interroga as linhas gerais da volumosa produção crítica sobre Mauro assinada por Ronaldo Werneck, cujo texto sobre cartazes dos filmes encerra o tomo.


 Acessibilidade
Com um projeto gráfico a um tempo sóbrio e refinado, o primeiro volme, com a versão integral dos textos em PDF, pode ser baixado gratuitamente no site da coleção. 

 O trabalho tem o mérito adicional de não se prender ao convencionalismo acadêmico: escritos por pesquisadores e críticos de cinema, os ensaios são mais curtos que o padrão burocrático que se tornou norma para papers, e refletem sobre os aspectos históricos, políticos e estéticos do cinema mauriano sem verborragia ou artificialismo teórico.  
  
Graças ao trabalho da Fundação Dorina Nowill para Cegos, o primeiro tomo está disponível para deficientes visuais e pessoas com  baixa visão através da tecnoogia DDReader, e a coleção será lançada também em DVD, que pode ser encomendado por bibliotecas e associações. 

Os demais volumes serão dedicados, respectivamente, ao citado  Limite, obra seminal do cinema autoral dirigida em 1929 por Mario Peixoto, e à era dos estúdios. Vale a pena esperar.



(Imagens retiradas daqui, dali, de lá e dacolá, respectivamente)


sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A imprensa e a questão indígena na era Dilma

A denúncia contra o Estado brasileiro na Comissão de Direitos Humanos da OEA por tratamento cruel e desumano dispensado às populações indígenas passou virtualmente em branco na imprensa nacional.

Para além do comportamento da imprensa em relação ao caso em questão, o que nos interessa aqui examinar é como ela tem tratado – ou deixado de tratar - as razões que sustentam a denúncia na OEA. Que vêm de longa data e vão desde a violação impune das terras indígenas, passam pela violência recorrente que não distingue homens, mulheres e crianças, atingem a dramaticidade da mortandade infantil e dos recordes de suicídio e culminam com o que não poucos especialistas do tema qualificam como genocídio.



Informações escondidas
A maioria dessas denúncias sequer chega a ser noticiada pelas publicações de alcance nacional, só vindo à tona graças à atividade jornalística de sites como o do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e à ação, na internet, de coletivos e cidadãos interessados na causa indígena, os quais têm no trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro uma de suas referências centrais.

Tal omissão midiática, que confirma um histórico de desatenção para com a questão indígena, vai na contramão do reconhecimento que, nas duas últimas décadas, esta tem recebido internacionalmente, no bojo da ascensão das reemergência das pautas ecológicas, da ascensão da biopolítica e do advento dos Direitos Humanos de quarta geração.



Mortes e torturas
Tal omissão jornalística é particularmente grave por se dar em um momento de acirramento de tensões e conflitos. Pois, bem antes da denúncia à OEA, os dois governos Dilma já vinham sendo sistematicamente acusados de negligência e de violência contra os índios.

Em dezembro de 2012, a Polícia Federal invadiu uma aldeia em Alta Floresta (MT) e matou Adenílson Krixi Munduruku, ferindo gravemente outros dois índios e sendo acusada, conforme noticiado pela imprensa alternativa, de emprego excessivo e gratuito de violência.

Um ano e meio depois, em Belo Monte, epicentro dos conflitos na Amazônia e obra-símbolo do modelo desenvolvimentista arcaico, estilo “Brasil Grande” da era petista, a Força Nacional foi acusada de atirar bombas e balas de borracha contra os índios que protestavam, suscitando investigação do Ministério Público Federal.



Choque assimétrico
No bojo e para além de tais graves eventos, um conflito latente marca a relação dos governos Dilma com a questão indígena, advindo da contraposição entre a visão tecnocrata e antiecológica que vinha caracterizando o modelo desenvolvimentista brasileiro pré-crise econômica - baseado no consumismo e em megaobras energéticas -, e o perspectivismoameríndio que informa a concepção de mundo indígena, para quem a preservação de suas terras e da fauna e flora circundantes afiguram-se não só essenciais à própria sobrevivência (mesmo se esta se der em diferentes graus de relação com o capitalismo vigente), mas à sobrevivência do próprio mundo.

Uma versão seminal de tal conflito estava, de certa forma, configurada já no embate pré-presidencial petista que, em 2006, opôs a “gerentona” Dilma e a “ecológica” Marina Silva. A escolha de Dilma como candidata representou, em si, a vitória de tal visão ultrapragmática e infesa a reivindicações de cunho ecológico (as quais são vistas como meros empecilhos).

O desastre ambiental que é Belo Monte e a pior política indigenista desde o período militar derivam de tal processo, que vem se alastrando ao longo dos dois mandatos da atual presidente e atingem o escárnio com a nomeação para o ministério da Agricultura - na cota pessoal de Dilma, e não por imposição da aliança - da ruralista Kátia Abreu (PMDB/TO), apelidada de “Miss Motosserra” e contra quem pesam acusações de trabalho escravo, crime ambiental e grilhagem de terras. Não por acaso, tal nomeação foi interpreta por setores indigenistas como uma senha ao ruralismo para a violação impune das terras demarcadas.



Questão indígena, eterna coadjuvante
Seria, no entanto, inexato afirmar que a imprensa negligencia por completo a violência relacionada aos povos indígenas. Ainda que com raridade, ela até aparece, aqui e acolá, nas páginas das publicações nacionais: com viés policial na cobertura dos conflitos de terra; nas projeções econômicas sobre os fatores delimitantes para a expansão do agronegócio; ou, por conta do alto índice de mortandade infantil e de suicídios, como nota de rodapé de reportagens sobre saúde.

O problema, que deriva diretamente da aliança cada vez mais forte entre as corporações de mídia e o grande capital, é a ausência de cobertura sistemática, a omissão ante a gravidade do drama humano e da violação de direitos, e a manutenção da questão indígena em um terceiro plano em termos de escala de valores editoriais - sobrepujada, em primeiro lugar, pela prioridade aos desígnios do mercado financeiro; e, em segundo, pelos ditames da supremacia econômica expansionista do agronegócio.

Uma imprensa que efetivamente cumprisse suas funções públicas haveria de fornecer a seus leitores informações e análises que, cotejadas, permitissem um melhor entendimento do necessário equilíbrio entre as demandas comerciais e mercantis do agronegócio, a obrigatoriedade de respeito aos direitos indígenas em sua plenitude, e a importância de que o governo exerça com imparcialidade e determinação o seu papel de mediador e de responsável pela obediência aos preceitos constitucionais.



Respostas insuficientes
Evidentemente, não é o que ocorre – muito pelo contrário – nem na imprensa, nem no governo, como ficou patente, uma vez mais, no comportamento do representante do governo brasileiro ante as graves acusações feitas à OEA, as quais limitou-se a rebater com respostas protocolares e lacunares, além de vagas promessas.

Em relação ao jornalismo televisivo, a situação é ainda pior. Pois além do misto de omissão e brevidade que também se verifica na cobertura impressa, há casos de sistemática perseguição e tentativa de criminalização dos povos indígenas, cujo exemplo maior – e mais repugnante – é o telejornalismo da TV Bandeirantes, que oferece uma cobertura desonesta e distorcida à incredulidade, tratando sempre os índios como invasores e sanguinários e os grandes latifundiários como vítimas. Execrável.



Hora decisiva
Se mantidos, os interesses e omissões que regem o tratamento da questão indígena – e sua cobertura pela imprensa - podem vir a ser decisivos em um futuro muito próximo.

Pois estamos em um momento em que algumas das piores previsões relativas à construção da usina de Belo Monte começam a se confirmar – como a ausência de meios de subsistência para os ex-ribeirinhos deslocados à força para conjuntos habitacionais periféricos, longe do rio de onde tiravam seu sustento. Com isso, cresce o receio pelo destino das três tribos que sobrevivem às margens dos 100 quilômetros de rio que deixarão de ser navegáveis e terão o volume de peixes drasticamente reduzido.

Ainda mais ansiedade desperta a possibilidade de que a PEC 215, que transfere da União para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas – e que já foi aprovada, por 27 a zero, pela Comissão Especial de Demarcação de Terras Indígenas -, venha a ser em breve referendada pelo Congresso. Dado o conservadorismo do atual parlamento, repleto de deputados e senadores ruralistas ou com laços com o agronegócio, afigura-se iminente tal propabilidade, que para lideranças indígenas e especialistas equivaleria, na prática, à legalização de um extermínio.



(Segunda versão de texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa)


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Delcídio e a derrocada moral do PT

"Na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes e as juízas do Brasil. Não passarão sobre novas esperanças do povo brasileiro, porque a decepção não pode estancar a vontade de acertar no espaço público. Não passarão sobre a Constituição do Brasil”
 No trecho acima reproduzido do voto que proferiu sobre o caso da prisão do deputado Delcídio Amaral (PT/MS), a ministra Carmem Lúcia coloca alguns pingos fundamentais nos is.


Primeiro, ela alude à enorme diferença entre o que o PT prometeu que faria, no poder, e o que realmente fez, que já era insatisfatório e se encontra cada vez mais diminuído por uma das piores crises econômicas da história do país – crise esta que deriva diretamente das opções econômicas e morais go governo petista. Na economia, representadas por uma política clientelista e descriteriosa de concessões de vultosos empréstimos a corporações próximas do poder e de isenções fiscais como forma de estimular o consumismo individual (em detrimento do incremento dos serviços para a coletividade); no aspecto moral, pela tolerância ou envolvimento direto com o maior caso de corrupção da história brasileira, o Petrolão.


Segundo, a ministra explicita o quanto um discurso de moralismo na política – uma das características distintivas daquele PT aguerrido pré-2002 - foi, seguida e repetidamente, não apenas abandonado, mas desmentido por escândalos sucessivos de corrupção envolvendo o partido e vários de seus membros – por duas vezes de maneira sistêmica, tal como reconhecido pela Justiça (por um STF cuja ampla maioria dos ministros fora nomeada por presidentes petistas, convém registrar).


O PT vive uma derrocada moral. Primeiro, o “Mensalão”; depois, o escândalo da Petrobras. Anteontem, numa página incrivelmente vergonhosa de sua história, o apoio a Eduardo Cunha, uma das mais nocivas figuras a ocupar uma posição de protagonismo na política institucional brasileira, em larga medida graças ao próprio PT, que, em aliança amoral e arrivista com a matilha do PMDB fluminense, o apoiou quando era um entre tantos malandros em busca de um mandato no Rio, e agora evita sua queda, receoso de que ela venha a significar o impeachment de Dilma.


Agora, ante um senador e líder de governo preso por ordem judicial, o petismo dá vazão a uma reação duplamente covarde: ora, num espetáculo de corporativismo e flacidez moral, tentando anular sua prisão no Senado; ora tentando ligá-lo ao PSDB e a Serra, embora ele tenha sido eleito pelo partido de Lula, do qual era lider no Senado, ao qual está filiado desde 2002 e pelo qual concorreu a senador e a governador do Mato Grosso do Sul.


Tanta conivência com a corrupção e tamanha e repetida traição ao que fora aos eleitores prometido já é de conhecimento do povo, a quem nas últimas eleições a candidata petista jurou defender e, em um caso explícito de estelionato eleitoral, traiu com um ajuste fiscal que ora os desemprega e pauperiza.


E a reação certamente virá, a volta do chicote no lombo de quem mandou dar, e há de se manifestar em breve, talvez já no próximo outubro. Então não haverá discurso de "golpismo" capaz de enganar os traídos.


domingo, 22 de novembro de 2015

A imprensa e a catástrofe ambiental da Samarco

A cobertura que os três grandes jornais do país dedicaram ao crime ambiental da Samarco, cuja devastação teve início em um distrito de Mariana e alastrou-se por centenas de quilômetros de Minas e do Espírito Santo, assassinando o Rio Doce, marca um dos pontos mais baixos da história da imprensa brasileira.

A performance dos diários, de início meramente protocolar, com informações insuficientes, em larga medida obtidas de fontes governamentais ou privadas com interesse direto na minimação do ecocídio e em sua não-caracterização como crime ambiental, só a partir do terceiro ou quarto dia passou a ser menos relapsa (mas ainda longe do aceitável).



Nome aos bois
Além disso, prolongou-se, na imprensa em geral, a insistência em denominar o caso referindo-se a Mariana, cidade histórica onde o rompimento da barragem se deu, e não a Samarco, a empresa mineradora cujo misto de negligência, incompetência e ganância o provocou, distorção de evidentes consequências ideológicas que só recentemente o Estadão abandonou.

A TV Globo protagonizou o mais explícito caso de violação da ética jornalística na cobertura do caso, ao ter um de seus cinegrafistas flagrado desligando a câmera quando um morador de Mariana passava a elencar dados sobre a culpabilidade da Samarco. Além disso, a revista Época, publicada pelo grupo Globo, trocou no último momento a capa que daria sobre o caso da Samarco por outra sobre os atentados em Paris – decisão que suscita polêmica, mas que sem dúvida revela ser falsa a alegação das principais revistas semanais de que, na semana anterior, não destacaram em capa a devastação ambiental que assolava Minas porque não teria havido tempo hábil entre sua deflagração e o tempo necessário à produção de capas.



Protagonismo das redes
Paradoxalmente, o jornal O Globo foi o menos pior dos grandes “jornalões”, capaz de ao menos levantar alguns aspectos relevantes em relação ao evento, enquanto o Estadão e, mais ainda, a Folha de S. Paulo praticaram um antijornalismo, que mal disfarçava o interesse em esconder o tamanho dos danos e a culpabilidade da empresa, temas que desde os primeiros momentos eram dimensionados e repercutidos com intensidade nas redes sociais.

Estas, aliás, tornaram-se o principal meio de informação e análise embasada sobre a catástrofe, dando de goleada na na mídia. No Facebook, sobretudo, cientistas anteciparam, com alto grau de acerto, a abrangência do desastre e seus efeitos sobre a população; advogados e procuradores desvelaram com precisão tanto a estratégia de minimação de danos dos advogados da empresa quanto o teor e o timing da ação do Ministério Público; ambientalistas predisseram o processo de “cimentação” do leito do Rio Doce e a mortandade de sua biosfera; biólogos marinhos forneceram projeções baseadas em modelos científicos acerca dos danos que a lama tóxica deverá causar ao chegar ao mar (afetando por décadas nutrientes da cadeia alimentar de 10.00km2 do Atlântico Sul e de três unidades de conservação marinha).



Tentativa de controle da informação
Também a inacreditável defesa prévia que o governador Fernando Pimentel (PT/MG) fez da mineradora Samarco e o fato de se dirigir à população do interior das instalações da empresa - onde funcionou, longe das vistas de moradores e da mídia, o Centro de Operações e Buscas responsável pelo socorro - tiveram a gravidade de sua significação analisadas com rigor, verve e com uma contundência que a imprensa ficou devendo ao leitor.

Ainda mais importante, merece ser destacado que, nas redes sociais, o drama da destruição de vidas humanas, animais e ecossistemas foi retratado direto da fonte, com expressão de subjetividade, protesto e indignação (e não com a dramaticidade direcionada e lacrimosa da cobertura à la TV Globo, em que o sofrimento das vítimas serve ao sentimentalismo piedoso, e não ao questionamento de culpados e modos de compensação).



Para além da crise
É evidente que, em meio a tal produção, difundiu-se muita boataria – e algumas bolas foras - mas, por um lado, nas redes sociais, há de se adotar critérios para selecionar perfis de especialistas e pessoas criteriosas (reconhecê-las é mais fácil do que se pensa); e, por outro, de se utilizar os meios que a própria internet oferece para checar suas informações. O saldo, no caso em questão, foi amplamente positivo.

Há de se reconhecer, porém, que a imprensa não tem – nem deve ter - a mesma velocidade ou o mesmo direito à proporção de erros das redes sociais. Por outro lado, isso não pode servir de desculpa para uma cobertura preguiçosa, omissa e não raro tendenciosa como a que, com raríssimas exceções – como a coluna de Míriam Leitão, um oásis de informação especializada –, fez do maior desastre ambiental da história do país.



Sem desculpas
Sobretudo porque, mesmo com as redações reduzidas e em plena crise do setor - e respeitado o tempo de produção do jornalismo diário - os jornais ainda têm recursos materiais, tecnológicos e humanos para produzir matérias e análises informadas e diversificadas - inclusive com o auxílio das novas tecnologias -, ainda mais sobre um evento que acontece na própria região Sudeste.

Ao falhar de forma flagrante em fornecer aos leitores um retrato condizente de um crime ambiental de grandes proporções, que afeta diretamente dois estados e centenas de milhares de pessoas, o jornalismo não deixa apenas de corresponder, uma vez mais, ao dístico de inspiração iluminista que clama para si, mas deixa a impressão – justa ou não - de que sua dependência comercial do grande capital, representado no caso pela joint venture internacional Vale/BHP Billion, fala mais alto do que o compromisso cívico que, com seu estímulo, alguns teimam em lhe atribuir.



Fatores principais
Por seu lado, embora a internet seja frequentemente acusada de ser um meio permeado pelo radicalismo e pelo acirrado maniqueísmo político, as redes sociais conseguiram – de uma maneira que a imprensa foi incapaz - estabelecer, além da culpabilidade da Samarco,  alguns aspectos importantes e contraditórios que ensejaram e tiveram papel determinante para a tragédia da Samarco. Tais como:

      1. As ligações da Vale e da Samarco com políticos de quase todos os partidos, para cujas campanhas deram volumosas contribuições, e o grau de indistinção entre público e privado que marca uma série de empreendimentos envolvendo as empresas, nos âmbitos estadual e federal;
      1. Os efeitos deletérios que a afoita privatização da Vale, em um cenário de desmonte do Estado e de ineficiência regulatória, legou ao processo, debitados na conta da presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP);
      1. O agravamento de tais deficiências em um modelo que, sem abrir mão da privatização, a combina contraditoriamente a uma política arcaica de desenvolvimento, em que as licenças ambientais não passam de empecilhos a ser “desenrolados” com a maior rapidez possível, características distintivas da administração petista que há 13 longos governa o Brasil – período mais do que suficiente para atenuar, ou mesmo reverter, o que rotula como “herança maldita” do governo anterior;
      1. A leniência na concessão de licenças ambientais e nas atividades de fiscalização e controle em âmbito estadual, irresponsabilidades divididas entre o tucano Aécio Neves (PSDB/MG) e o citado Pimentel.
A tudo isso soma-se a atuação deplorável da presidente Dilma Russeff (PT/RS) ante a tragédia, seu discurso titubeante, sua omissão no envio de ajuda material e humana, sua inacreditavelmente desrespeitosa demora de uma semana em visitar a região atingida, conduta que foi retratada e analisada nas redes sociais com a devida indignação – a qual a mídia, embora frequentemente acusada de “golpista”, preferiu atenuar ou mesmo ignorar.



Arcaísmos
O sofrível desempenho da imprensa na cobertura da tragédia de Mariana preocupa e constrange, mas não surpreende. Assim como acontece com editorias como Saúde ou Ciência, o tratamento da temática ambiental tem sido marcado, há tempos, por deficiência e omissão.

Trata-se de uma lacuna e um anacronismo cuja gravidade cresce em proporção à importância que o ambientalismo recebe – ou deveria receber – nas sociedades contemporâneas, numa dinâmica que determina se será dificultada ou facilitada a ocorrência de tragédias ambientais perfeitamente evitáveis - como a perpetrada pela Samarco.



(Imagem retirada daqui)

sábado, 14 de novembro de 2015

Eleições argentinas: entre o medo e o humor

Quando eu era criança, nos anos 80, havia um comercial de vodca em que a qualidade do produto era ressaltada por alegadamente não causar ressaca: - “Eu sou você amanhã”, explicava um bem-disposto sósia de um sujeito sentado à mesa de um bar, antes de pedir ao garçom que substituísse o pedido que este acabara de fazer por uma dose da marca anunciada [assista aqui].

O slogan pegou e foi apropriado pelo jornalismo político em forma de um conceito (“efeito Orloff”) que se tornou corrente para fazer prognósticos e traçar analogias entre o Brasil e a Argentina: hiperinflação, escândalos de corrupção, a gangorra do dólar, planos econômicos mirabolantes – ao menos até a importação do receituário neoliberal, com Collor aqui e Menem lá, no início dos anos 90, ora um, ora outro, o que primeiro acontecia em um país acabava, de alguma maneira e guardadas as devidas proporções, por se reproduzir no outro.



Reversão de expectativas
A lembrança dessa anedota avivou-se por conta da repercussão, na imprensa argentina, do resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, entre o até então favorito Daniel Scioli, da “Frente para a vitória”, apoiada pelo governo de Cristina Kirchner, e Mauricio Macri, herdeiro do menemismo e até há pouco prefeito de Buenos Aires, da aliança conservadora “Mudemos”.

Até as proximidades das eleições, a expectativa era de que Scioli seria eleito já no primeiro turno ou, na pior das hipóteses, iria com folga para o segundo. Após um atraso de horas na divulgação do resultado (não justificável apenas pela votação ainda ser feita na base de papel e caneta), que intrigou parte da mídia mundial e gerou boatos na internet, anunciou-se a vitória apertada do candidato governista: 36,86% versus 34,33% de Macri. Sendo que as pesquisas agora colocam o candidato da “Mudemos” como favorito.

Além da reviravolta na eleição presidencial, o peronismo perdeu dois de seus mais tradicionais feudos: as províncias (o equivalente a estados) de Jujuy e, pela primeira vez em 32 anos, de Buenos Aires, a mais industrializada e povoada do país, até recentemente governada por Scioli.

O jornalismo político falhou em antecipar o tamanho do prejuízo para o kirchneirismo.



Em busca de explicações
Passada a surpresa e, como de praxe, sem redimir-se de sua pontaria, os analistas começaram a produzir explicações para o fenômeno. No cada vez mais governista Página 12, em um artigo significativamente intitulado “A vingança dos portenhos”, o colunista Luis Bruschtein formulou uma tese que se tornaria corrente entre os partidários de Scioli:

Uma força política de portenhos de classe alta se impôs ao peronismo de trabalhadores e classe média baixa na província de Buenos Aires e conseguiu uma marca invejável em nível nacional. (...)

Houve nesta eleição um voto conservador que proveio de setores populares que ganharam em qualidade de vida durante esses anos, [voto] que também saiu de minorias sexuais ou de gênero que foram beneficiados por este governo, um voto que seduziu a grande quantidade de comerciantes e empresários que prosperaram de forma considerável nestes doze anos. Camadas médias que foram resgatadas da extinção por esse governo se voltaram para esse discurso que esconde as velhas politicas que as levaram à beira do precipício. Há um gesto de autoflagelação nesses setores seduzidos por um flautista de Hamelin que disse na campanha que estava de acordo com todas as medidas que votou contra.”

Como Bruschtein não explica por que razões a classe trabalhadora e as camadas médias se deixariam conduzir pela elite portenha, fica, além da concepção destas como politicamente acéfalas, incapazes de pensar e decidir por si próprias - e, portanto, à mercê do cabresto dos poderosos -, a impressão de que a explicação não passa de wishful thinking do jornalista. Agrava tal sensação a atenção nula que ele presta à hipótese, mais provável e passível de ser comprovada em dados oficiais, de que o agravamento da crise econômica durante o segundo governo de Cristina Kirchner teria afetado sobremaneira tais estratos sociais, corroendo, ao menos em parte, as melhorias que o próprio kirchnerismo anteriormente lhes proporcionara.



Fantasmas do passado
Na batalha entre as duas campanhas, ora intensa, chama a atenção, na estratégia do candidato do governo, o misto de artificialismo da polarização e ausência de relativização temporal: por um lado, fazendo uso de um “esquecimento do presente”, procura-se abstrair tanto a crise do país sob o kirchenirsmo, eternizado como benéfico e provedor, quanto o perfil intelectualmente deficitário e consideravelmente conservador de Scioli (candidato que, como reconhece o mais midiático dos historiadores argentinos, o kirchnerista Felipe Pigna, “está mais para a centro-direita dentro do peronismo”).

Por outro, a estratégia que vem sendo aplicada para criticar o candidato conservador não deixa de mostrar-se problemática: “Macri é a cara remoçada do menemismo”, define a crítica literária Adriana Persico, aludindo à combinação de insensibilidade social neoliberal e corrupção desmedida que caracterizou o período em que Carlos Saúl Menem habitou a Casa Rosada (1989-1999). “Cada cidadão tem a obrigação e a enorme responsabilidade de colocar sua memória a funcionar e decidir se quer voltar a esses terríveis velhos tempos”, prossegue ela.

Não obstante a justeza do alerta, a evocação dos fantasmas do passado, numa campanha conflagrada ao extremo, tem com frequência caracterizado Macri como uma retomada ipsis litteris do menemismo, Menem redivivo. Nesse sentido, Pigna é taxativo: para ele, o candidato representa “uma volta aos anos 90”, ideia que vem sendo martelada à exaustão pela campanha governista, sem qualquer ponderação ou relativização. Soa, assim, como se tal força política se tivesse mantido intacta por 16 anos, sem modificações ou nuances; a Argentina e o mundo dos anos 90 fossem idênticos aos de hoje, e a eleição do candidato da “Mudemos” significasse tão somente um resgate das políticas que Menem adotou durante seus dois mandatos, legando aos argentinos anos de caos econômico e debacle social.



Profetas do caos
Configura-se, desse modo, um cenário radicalizado, que o jornalista Juan Pablo Csipka, após elencar graves problemas tanto da administração Macri quanto do governo Scioli, declarar voto em branco e criticar a “demonização total e absoluta” contra Macri, assim resume:

Por um lado, a extrema idealização, se não de Scioli, ao menos do kirchnerismo. Por outro, uma vertente, vamos chamá-la de nacional e popular, de certo gosto amargo característico dos anos de fúria do menemismo (por exemplo, a campanha de 1995): “Somos nós ou o caos”. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: nem Scioli nem o kirchnerismo são, a esta altura, alternativas antagônicas ao que pode fazer Macri [no poder]."
Ao final trata-se, em um e outro caso, de “Disseminar medo massivo porque oh, existe a possibilidade de alternância de poder”, ironiza, no Facebook, a escritora argentina Pola Olixarac, autora do celebrado “As teorias selvagens” (Benvirá, 2011).



Déja vu
Nós, brasileiros, já vimos esse filme. A referida tentativa de tornar indistinguíveis Macri e Menem, por exemplo, guarda evidente similaridade com os esforços do marketing governista para tornar indistintos Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso, como se, 20 anos depois, o primeiro fosse reeditar o mesmíssimo governo do segundo – e com a mesma tragédia social resultante. A candidatura Dilma, por sua vez, à semelhança do que hoje a campanha de Scioli faz em relação ao kirchnerismo, dissimulou a crise que os economistas já então diagnosticavam encarnando uma versão idealizada do petismo no poder - reforçada por comerciais que vendiam um país paradisíaco, de comercial de margarina -, valendo-se assim, como no caso argentino, de um discurso do tipo “nós ou o caos”. Tática que serviu tanto para reverter a ascensão de Marina Silva e – ao bradar que ela tiraria comida da mesa do trabalhador para aumentar os lucros do Itaú - tirá-la do primeiro turno, quanto para fixar a ideia de que o candidato tucano promoveria um ajuste fiscal de inspiração neoliberal.

Dilma vitoriosa, o resultado, é forçoso notar, é que o tal ajuste ortodoxo, agora a cargo de Levy, tem imposto cortes profundos no Orçamento do país, com graves consequências para Educação e Saúde; e que o Itaú (assim como o Bradesco do conselheiro Trabuco) tem anunciado recordes sucessivos de lucro enquanto o desemprego atinge mais de um milhão de trabalhadores desde o início do ano. Pesquisas indicam que essa distância entre o prometido e o cumprido – que alguns chamam de estelionato eleitoral - está no cerne da perda de confiança popular no governo Dilma, expressada nos 70% que, segundo o Ibope, hoje consideram seu governo ruim ou péssimo. Se o efeito Orloff ainda vigora, fica o alerta aos candidatos argentinos.


Tática do espantalho
Tudo somado, tanto o desencanto popular com o governo Dilma quanto a reviravolta nas eleições argentinas parecem apontar para “a falência de um modelo de campanha eleitoral, extensamente usado pelo governismo brasileiro também: a política do "boogeyman" , do "cuco", como dizemos em espanhol ou, em bom português, a política do espantalho”, aponta Idelber Avelar, professor do Stone Center for Latin American Studies da Tulane University (EUA). “É a política limitada à demonização do adversário”, critica, arriscando um prognóstico: “Deu certo por pouco, muito pouco no Brasil 2014, graças à campanha mais suja da História. Não deu certo no primeiro turno argentino de 2015 e, pelo jeito, não dará certo no segundo. Não dará certo no Brasil-2018”.
 
Um grande diferencial em relação às tensas eleições brasileiras de 2014 está sendo o uso inovador do humor, através da "Campaña Bú - Con miedo votas mejor". Nela, a candidatura de oposição se reapropria do discurso kirchnerista que apregoa o caos se Macri vier a vencer, exagerando-o: ""Se Macri ganha, a mãe de McFly se casa com Biff"; "Se Macri ganha, Roberto Carlos não vai querer ter um milhão de amigos".



Vazio programático
Seja como for - e ressalvadas as notórias diferenças entre os governos Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, muito menos contemporizador -, não apenas salta aos olhos a similaridade entre as práticas político-eleitorais nos dois países, mas entre a atitude, a estratégia e a argumentação dos setores midiáticos governistas brasileiros e argentinos em relação às respectivas eleições. A leitura, por exemplo, da cobertura que o outrora modelar Página 12 faz do pleito – escamoteando os graves defeitos do atual governo enquanto supervaloriza o tendenciosismo e a força da mídia e demoniza a classe média – parece demais, a um tempo, um déja vu e uma antecipação, respectivamente, dos diagnósticos e desculpas que os blogs e publicações petistas vêm fabulando sobre a presente crise do governo Dilma, e do tipo de argumentação a que certamente viriam a recorrer numa eventual derrota da candidatura Lula em 2018.

Trinta anos depois daquele icônico comercial de vodca, Argentina e Brasil bisam a dinâmica do “Eu sou você amanhã” através da substituição da autocrítica, do debate franco e da apresentação de programas e propostas de ação, em prol do marketing político mais cosmético e da mera desqualificação do opositor, transformado em inimigo – e os eleitores deste em acéfalos e ingratos. Evidência de que, se os dois países evoluíram ao superar o jugo ditatorial, ainda estão muito aquém do nível de práticas, propostas e comprometimento que a verdadeira evolução democrática demanda.


Versão ampliada de texto originalmente publicado no Observatório da Imprensa.
(Imagem retirada daqui)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Samarco: crônica de uma tragédia anunciada

Neste momento, a lama tóxica do rompimento da barragem da Samarco arrasa com a vida de seres humanos, animais, rios e ecossistemas, em dois estados.

A empresa - cuja primeira atitude foi convocar jornalistas e advogados, para depois chamar o socorro - vai alegar inocência e culpar a natureza, contando para isso com a cumplicidade dos governantes (temerosos de perderem doações eleitorais e recursos milionários) e da mídia (cuja cobertura apelativa, sentimental, oculta as razões comerciais de seu desinteresse investigativo). Uma estratégia de encobertamento, dissimulação e vitimação que Vinicius Duarte disseca com agudeza.

Mas tal reação não oculta o fato de que se o ambientalismo fosse respeitado no país, o desastre simplesmente não teria acontecido. Pois uma barragem operava no limite, e outra a 10% deste. É a visão de que  licenças ambientais são frescura, uma mera burocracia a ser "desenrolada"  com a máxima rapidez, que leva a desastres como o de Mariana, evitáveis  se um laudo sério orientasse o licenciamento – obtido, no caso em questão, sabe-se lá como.

Porém, infelizmente, primeiro o conservadorismo tornou a ecologia um tema de chatos, e depois o petismo - Dilma à frente - o tratou como um empecilho mesquinho a atrapalhar o progresso. O resultado aí está.

Esta é uma tragédia com múltiplos autores: Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tem a culpa pela privatização irresponsável da Vale; Aécio (PSDB) pela forma leviana como seu governo concedeu licenças ambientais; Fernando PImentel (PT), o atual governador, por continuar emitindo licenças descriteriosas e por assumir a defesa da Samarco antes de qualquer investigação; e Dilma (PT) porque foi omissa em enviar ajuda, mesmo porque preferiu usar recursos para constituir uma Força Nacional para espancar jovens que exercem seu direito constitucional à manifestação pública, em vez de constituir e enviar forças para socorrer grandes desastres.

Não há, portanto, inocentes nessa história: ela confirma, uma vez mais, que PSDB e PT são farinha do mesmo saco.

Talvez a maior lição do desastre de Mariana, a bottomline, seja que o Estado sucumbiu de vez à inciativa privada, que a privatização criou - e as relações incestuosas com políticos dos mais diversos partidos deram um poder descomunal a - megaempresas capazes de coagir governos e mídia. Esta ainda disfarça, com uma cobertura de apelo sentimental, mas no fundo pouco interessada em questionar a razão do choro dos afetados, o que demandaria investigação séria sobre as culpas e responsabilidades pela tragédia.

Já a indistinção entre interesses públicos e privados é ainda mais patente. Torna-se cristalina na inacreditável atuação de Fernando Pimentel em defesa da Samarco, um governador que tem o desplante de se dirigir ao público, em pronunciamento oficial, de dentro da sede da empresa - onde fica localizado, aliás, longe da vista da população e da imprensa, o Centro de Operação e Buscas.

O certo é que a lama tóxica de Mariana, que ora se alastra pelo Espírito Santo, é, muito provavelmente, o primeiro dos grandes desastres que a fúria desenvolvimentista e o desleixo para com a regulamentação ambiental legarão ao país. 

E que tendem a se repetir enquanto a ecologia e o ambientalismo forem considerados excentricidades e empecilhos, e não a única garantia de desenvolvimento sustentável, de continuidade da vida de pessoas, animais, rios e ecossistemas.

 

(Imagem retirada daqui)





quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Lei "antiterrorismo" ameaça manifestações populares

O Senado acaba de aprovar, sob o pretexto de combater o terrorismo, uma lei que, na prática, servirá para criminalizar manifestações e protestos populares – inclusive e principalmente aqueles que vierem a pedir o impeachment de Dilma, o que fatalmente acontecerá se a crise, que já produziu 1.250.000 desempregados desde janeiro, continuar no atual ritmo e se transformar em tragédia social.

Com a precisão costumeira, o poeta e artista multimídia Andre Valiias radiografa o absurdo: “a presidente é autora da lei que será usada para criminalizar os manifestantes que irão às ruas contra sua deposição”. Mais maquiavelismo do que isso, impossível. E ainda tem gente que acredita que o PT é de esquerda...

De acordo com o projeto, que agora volta à Câmara (onde ja fora aprovado em agosto), as penas podem chegar a até 30 anos. 
Estamos, portanto, não apenas em meio a um gigantesco retrocesso econômico e social – promovido por um governo que se elegeu vendendo um pais de comercial de margarina e prometendo preservar empregos -, mas a um aumento do poder repressivo do Estado contra o direito constitucional à manifestação.

Trata-se do maior ataque à liberdade de ação política desde a ditadura.

Caracteriza-se, ainda, como uma reação última e tardia às Jornadas de junho, em 2013, momento traumático para o petismo, choque de realidade que desconstruiu a narrativa de prosperidade geral e evidenciou a insatisfação de amplos setores, notadamente os jovens.

A derrocada do petismo no poder começa ali, ao fingir não entender o sentido dos protestos, ao preferir propostas cosméticas, ao reprimir brutalmente enquanto preparava o endurecimento da legislação.

Ante o pesadelo que tem sido o segundo mandato de Dilma, muitos, atualmente, perguntam: até quando as pessoas aguentarão? Por que o povo ainda não promoveu protestos massivos?

A resposta certamente passa pela memória ainda viva da brutalidade da repressão a 2013, da violência policial desmedida, dos jovens manifestantes que amargaram meses de cadeia.
E inclui fatores que talvez estejam funcionando como elementos de dispersão, nublando uma percepção mais clara da gravidade do cenário político, tais como:

1) A premissa de que a mídia esteja contra Dilma (então como expllicar o apoio entusiasmado ao ajuste fiscal, ou a parca cobertura dos protestos de ontem contra a presidente); 

2) A alegada dicotomia entre governo progressista e Congresso conservador (“como se esse não fosse o Congresso eleito pelo esquema corrupto de governabilidade montado pelo PT”, como aponta o profesor Giuseppe Cocco);

3) O próprio fla-flu político, acirrado pela a atuação irresponsável de uma oposição sem propostas para o país, interessada tão somente na deposição da presidente.
Tudo isso é agravado pela ação de uma militância em grave estado de negação, que finge não ver o estelionato eleitoral, a repressão incompatível com democracia, o neoliberalismo como orientador da política econômica. Assim como passou anos tapando o nariz para a degradação ética da política inerente a alianças antiéticas com tipos como Maluf e Collor.,

Uma militância que, se Aécio, Marina ou qualquer outro candidato tivesse sido eleito e tomasse as mesmas medidas que Dilma vem tomando desde janeiro, estaria nas ruas a exigir a deposição do presidente.

Mas não, anestesiada, aceita passivamente a – e torna-se, portanto, cúmplice da –  criminalização das manifestações públicas. A história há de lhes cobrar o preço pelo fanatismo cego.


(Imagem retirada daqui)

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O escândalo do Enem

Se alguém ainda tinha dúvidas de que o Brasil e um país machista, as reações nas redes sociais e no Parlamento ante a escolha do tema "Violência contra a mulher" para a redação do Enem 2015 as dirimiram.

Tão logo a escolha do tema se tornou pública, figuras tragicômicas do conservadorismo brasileiro, como Bolsonaro e Feliciano acusaram o exame de “doutrinação” e de “marxismo do PT”, voltando suas baterias, ainda, a uma questão baseada no clássico feminista O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Para além da contradição irônica de um militar e um pastor reclamarem de catequização ideológica, trata-se de uma tripla bobagem.



Confusão deliberada
Primeiro, porque a violência contra a mulher é um tema que não se enquadra na divisão político-ideológica convencional entre direita e esquerda, pertencendo ao âmbito dos Direitos Humanos - que, como tais, ao menos na letra da lei, transcendem partidarismos.

Segundo, porque o PT nunca foi marxista, o que dizer após sua conversão a um modelo capitalista de desenvolvimento baseado no consumismo.

Terceiro, porque uma das mais recorrentes críticas a Marx é justamente de negligência para com as questões de gênero.




Analfabetismo político
Mas tal reação teve um aspecto pedagógico: a repercussão de tais criticas nas redes sociais, barulhenta e volumosa, forneceu uma amostra do quanto se encontra disseminado, sobretudo entre jovens, um conservadorismo preconceituoso e ignorante (embora se acredite ilustrado), neles instilado por velhas figuras paternais travestidas de intelectuais e ideologos.

Presos a uma visão política binária e excludente, com baixíssima formação cultural e política, são aliciados para um autoritarismo que “opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado”, como descreve a filósofa Márcia Tiburi em artigo na revista Cult. Para ela, esse neoconservadorismo, que se quer uma elite intelectual e se crê aideológico enquanto critica o que entende por ideologia (esquerdista) alheia, caracteriza-se por “autoafirmação de ignorância, assinatura de estupidez”.




Fahrenheit 451
O jornalista Mário Magalhães foi didático a tal respeito, ao apontar, em seu blog, que “O problema maior são as veleidades de censor, a proposta, escancarada ou envergonhada, de eliminar da história Simone de Beauvoir, seu pensamento e suas ações”.

Seja como for, em termos políticos é temeroso pensar o que esses jovens eleitores virão a fazer, nos próximos anos, com os seus votos.



Orgulho sem razão
O petismo, por sua vez, no estado extremo de carência em que se encontra, aproveitou o acerto na escolha do tema da redação como evidência, a um tempo, de seu esquerdismo e de que administra bem a Educação. Trata-se de uma dupla falácia, pois área educacional é a que mais sofre com o ajuste fiscal de inspiração neoliberal, com cortes na casa das dezenas de bilhões de reais.

Pior: no que diz respeito ao próprio tema da violência doméstica, embora o partido tenha o grande mérito de ter participado da elaboração e ajudado a aprovar no Congresso a “Lei Maria da Penha”, sancionada pelo presidente Lula, o governo Dilma, ao vetar a lei que determinava a igualdade de salários entre homens e mulheres, colaborou de maneira decisiva para perpetuar a assimetria econômica entre os sexos - que, por sua vez, está no cerne das relações de dependência financeira que dificultam tanto a denúncia da violência
quanto a obtenção de autonomia por parte de mulheres agredidas, muitas das quais acabam presas a uma relação abusiva.
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Feminicidio e violência
Nunca é demais apontar que a violência contra a mulher é uma questão social urgente. Segundo dados oficiais, quase 50 mil brasileiras foram assassinadas entre 2001 e 2011, a maioria entre 15 e 24 anos. Foram feitas mais de 50.000 denúncias em 2014, sendo que 77% das mulheres que relatam viver em situação de violência são agredidas ao menos uma vez por semana, 48% delas em sua própria casa. Sendo que se teme que esses números sejam apenas a face visível de uma violência que muitas vezes sequer é registrada.

Portanto, carimbar tal tema de propaganda esquerdista revela um misto de ignorância e má-fé, pois faz todo o sentido (cívico, educacional, preventivo) instigar jovens vestibulandos a sobre ele refletirem. A escolha dos examinadores foi mais do que acertada.




Jogo de aparências
Mas, levando em consideração o todo da prova, isso não anula algumas das críticas que são feitas ao Enem (não obstante o avanço que este representa em relação ao vestibular convencional). Dentre elas destacam-se o desprezo pelas diferentes realidades educacionais regionais, a não-explicitação dos propósitos e da competência de área de cada questão, e um modelo de prova que, se inova na escolha das questões, tratando temas sociais atuais, não deixa de repetir uma fórmula esquemática de exame que favorece as escolas cujo planejamento de aulas se dá com vistas ao exame (à maneira dos antigos cursinhos), prejudicando aquelas que cobrem o currículo sem direcioná-lo para tal.

Tais vícios têm tido como distorção mais palpável a hegemonia nacional, nos cursos mais disputados, de estudantes advindos das escolas de elite do Sudeste, os quais, além da ampla supremacia em sua própria região, têm ocupado muitas das vagas no restante do país, notadamente no Nordeste. Para um exame que foi anunciado como um substituto democratizante e socialmente includente ao velho modelo de seleção, trata-se de um problema gravíssimo.



Sem cura
Ainda mais grave é o fato de que, publicizado como uma falsa panaceia includente, o Enem, na verdade, nada altera em termos da qualidade do ensino oferecido. Como resume com propriedade Alcides Villaça:

Em vez de uma educação pública de bom nível, elaborar a cada ano uma cada vez melhor prova de avaliação do ensino deficitário. Um estranho termômetro, planejado para dissimular a febre”.




Mais de uma década de paliativos
Nesse sentido, o Enem repete o que se tornou um padrão nos 13 anos de petismo no poder: a opção por medidas de baixo ou nenhum custo, vendidas como panaceias, no lugar de ações planejadas e estruturadas de melhoria da Saúde e da Educação - como, respectivamente, o Mais Médicos, em vez de uma reestruturação da saúde pública no país; e a adoção de (bem-vindas) cotas, mas desacompanhadas de uma reforma educacional que estimulasse, em parceria com os estados, um salto qualitativo na área.

Destarte, aliviam-se alguns problemas e corrigem-se algumas distorções, mas sem mexer na estrutura que os causa.




A questão do contraditório
Tampouco se pode negar que, apesar da louvável escolha do tema, a correção da redação trará armadilhas potenciais. Pois, por um lado, parecem consideráveis as chances de que vestibulandos machistas e que foram previamente orientados a fazer ponderações e atentar ao contraditório em suas redações venham com argumentações do tipo "a mulher tem de se preservar", que indiretamente a culpam pela violência sofrida, chancelando-a.

Se, como tem sido nos últimos anos, a correção da redação der prioridade a estrutura, correção gramatical e construção de sentido, em detrimento da coesão ideológica, aumentam as chances de que redações tais como as descritas no parágrafo anterior venham a obter notas altas – quiçá máximas.



Escândalos
Por outro lado, se a correção se ativer com o devido rigor aos preceitos éticos e só der notas altas a redações que condenem sem subterfúgios a violência contra a mulher, isso pode vir a ser interpretado como um endosso à crítica (que não veio só do conservadorismo) de que, apesar de sua inegável importância, o tema, tal como proposto, não comporta o contraditório e impõe, na prática, uma – e apenas uma - posição ideológica ao vestibulando.

De um modo ou de outro, a tendência é que a questão da escolha do tema volte a produzir escândalos na mídia tão logo a correção e as notas das redações sejam divulgadas.


(Imagem da Mafalda de Quino retirada daqui