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quinta-feira, 28 de junho de 2012

Freixo e Maluf testam limites da realpolitik



A candidatura de Marcelo Freixo (PSOL) à prefeitura do Rio de Janeiro tem provocado comoção em setores da juventude e entre aqueles que, identificados com um ideário progressista, se agastam com práticas políticas institucionalizadas, tais como a composição de amplas alianças - inclusive com representantes dos setores mais retrógrados da sociedade - e compromissos não-oficiais mas efetivos entre o mandatário e os principais doadores de sua campanha.

Tendo se destacado pela determinação com que, em CPI estadual, combateu as milícias (que, recorrendo amplamente a violência e extorsão, tomaram o lugar do tráfico como gerenciadora de vários morros e áreas periféricas da metrópole), Freixo, ameaçado de morte por tais forças parapoliciais, tem uma visão complexa da questão da segurança pública no Rio e de suas atuais ligações com o grande capital, a qual exprime de forma articulada – duas qualidades raras em aspirantes a cargos executivos em um contexto regional no qual tem predominado um discurso populista e mistificador.


Fascínio do novo
Na atual campanha, sua fala intermediada de resgate de valores éticos, humanistas e sociais da esquerda – que, não obstante bem ciente da realidade atual, traz um quê do utopismo de 1968, de buscar a volta do sonho ao espaço pragmático em que se transformou a política – tem soado como música aos ouvidos de quem ainda nutre esperanças em seu poder transformador, mas gostaria de vê-la extirpada do que interpreta como seus acessórios poluentes: apoio eleitoral trocado por cargos na administração; aporte financeiro em troca de privilégios, benesses e eventuais licitações com cartas marcadas; coligações governistas que sacrificam ou relativizam bandeiras políticas.

Desse modo, mesmo com o apoio federal de que goza o candidato à reeleição Eduardo Paes – que tem profundas ligações com os milicianos -, Freixo, que pode vir a ser a grande novidade da eleição, tem conseguido inclusive “virar” votos de muitos petistas, agastados com o papel de coadjuvante do partido no estado.




Limites da realpolitik
A despeito de se irá ou não ganhar o pleito, a repercussão que a candidatura de Freixo vem obtendo ao afirmar recusar tal forma de fazer política parece captar uma demanda eleitoral à flor da pele, que, ao menos parcialmente, decorre de um fenômeno identificado em texto recente pela senadora petista Marta Suplicy, preterida por Lula a favor de Haddad em São Paulo:


O modelo 'realpolitik' se esgotou e parece que nem todos estão percebendo (…) eleitores … podem até entender a necessidade das composições, alianças e acordos que se tornaram imprescindíveis no Brasil muito em função do nosso sistema eleitoral, do número de partidos e do quanto tornou-se precioso o tempo de TV (...) Mas quando, pela sua simbologia, ferem os limites do bom-senso e têm a marca do estapafúrdio, tornam-se incompreensíveis para a população e são por ela rechaçadas.”

Sonho versus resignação
Para muito além de reação movida por despeito – e sem entrar no mérito da recusa da senadora em fazer campanha para Haddad -, interessa reter de sua análise um diagnóstico que com relativa facilidade é, hoje em dia, passível de ser empiricamente atestado através do contato com a juventude ou com grupos numericamente expressivos de cidadãos e cidadãs, e que as reações entusiasmadas à candidatura Freixo corroboram de forma evidente.

Além disso, o texto de Marta, em sintonia com o diagnóstico que perfaz e mesmo sem citá-la diretamente, implica numa portentosa crítica à aliança que trouxe Paulo Maluf e seu PP a bordo da candidatura petista à prefeitura paulistana.

Pois, em certo sentido, os pressupostos que levaram à efetivação dessa aliança – e que vêm sendo esgrimidos pelos seus defensores – são o exato contrário dos anseios que Marta identifica nos eleitores e que Freixo se esforça por suprir. Baseados na bem-sucedida estratégia de alianças levada a cabo por Lula e Dilma em âmbito federal, sustentam que a conquista do poder e da governabilidade pelas forças de centro-esquerda pressupõe o sacrifício de alguns ideais, bandeiras históricas e princípios éticos como forma de viabilizar alianças as mais amplas.


O passado como norma
Desse movimento decorreu, num primeiro momento, a aliança federal do PT com PMDB, PSB e partidos menores, a qual se expandiria no decorrer da administração Lula, incorporando, por exemplo, o PRP de Fernando Collor (momento que marca, na opinião de alguns analistas, o cruzar da fronteira que separa as alianças aceitáveis das que ultrapassam um padrão ético mínimo requerido). A recente aliança do PT/SP com o PP de Maluf leva ao paroxismo essa visão elástica de realpolitik.

Seus defensores partem do pressuposto de que por terem dado certo no âmbito federal com Lula, tais alianças, à revelia da posição do aliado no espectro político, de sua folha corrida e de demais pudores éticos, teriam se tornado uma espécie de norma obrigatória para vencer eleições – e, em decorrência, que a crítica e o colocar-se contra determinada composição implicaria em um “purismo” intrinsecamente nocivo, pois disposto a aceitar passivamente a derrota que tal recusa fatalmente ocasionaria. É difícil deixar de notar o quanto tais premissas trazem, introjetadas, um fatalismo tão inescapável quanto conservador.

No caso de Maluf supôs-se ainda que por, justificadamente, ninguém aguentar mais a péssima administração dos tucanos em São Paulo, os fins justificariam os meios. E, alegadamente, a aliança com o PP traria não apenas um minuto e meio a mais de tempo de propaganda gratuita na TV por dia, cinco dias por semana, mas, certamente, parte dos cerca de quinhentos mil votos que o parlamentar do PP obteve nas últimas eleições parlamentares.


Choque de realidade
Como diria o grande filósofo Garrincha, faltou combinar com os russos. A reação foi avassaladora, notadamente entre o pessoal de esquerda e a juventude. A mídia, é claro, sentiu o clima e tratou de botar lenha na fogueira – mas incorrerá em erro quem achar que se trata de uma reação artificialmente insuflada, mesmo porque o grosso da mídia hoje escreve e fala ao antipetismo.

O que ficou claro desde o início - e só não viram os obtusos que colocam Lula e o partido acima da razão - foi que, ao menos nesse momento imediatamente após o anúncio, haveria perda de votos, e não o ganho eleitoral apregoado. Não tenho dados empíricos para sustentar esta hipótese, mas arrisco dizer que, para além dessas perdas, a campanha deixou de conquistar, por conta de tal aliança, muitos votos em um estrato específico: a classe média com formação educacional e saturada da incompetência tucana – mas jamais disposta a compactuar com Maluf, que encarna a antítese dos valores que cultuam. Tendem a migrar para outro candidato que não Serra – possibilidade, aliás, que, até agora, tem sido largamente negligenciada pelo petismo.


Tendências claras
Pesquisa divulgada ontem pelo Datafolha confirma, por ora, as críticas dos que se opuseram à aliança: não só Haddad deixou de crescer como perdeu votos, e 64% dos que declaram votar no PT disseram reprovar aliança com Maluf. É evidente que se deve receber com ressalvas pesquisas eleitorais produzidas por tal instituto, que na última década teve seus índices prognósticos frequentemente desmentido pelas urnas, em ao menos uma ocasião em claro benefício de José Serra, cujos laços com os donos do Grupo Folha são por demais conhecidos.

Não obstante as ressalvas, tais pesquisas, sobretudo quando não realizadas em momentos decisivos da eleições, têm fornecido um quadro geral que, malgrado imprecisões eventuais, serve como esboço da situação. E o último Datafolha, além de diagnosticar o aumento da rejeição de Serra para impeditivos 35%, apura que a porcentagem dos que desaprovam a aliança com Maluf é de tal forma expressiva e em larga medida parece corresponder ao que se pode observar in loco na cidade, que não será surpresa se, com pequenas diferenças eventuais, outros institutos – inclusive os que pendem para o PT – o corroborarem.


O federal e o municipal
Para se compreender melhor a dinâmica eleitoral do momento, muito haveria a se falar, aqui, a respeito das substanciais diferenças entre eleição e governabilidade em âmbito municipal e nacional - em que, entre tantos outros fatores, o complexo sistema federativo, o bicameralismo e o que alguns cientistas sociais chamam de “presidencialismo parlamentarista” - além da a relação institucional com os estados e municípios - têm de ser considerados.

Pois a noção de que a proximidade e o grau de personalismo e de identificação (bem como de repulsa) entre eleitores e candidatos é muito maior no contexto do município tem sido um dado muito pouco observado nas análises relativas ao caso Maluf. E ela afigura-se essencial para a contextualização da reação enfurecida contra a aliança, pois algo muito diferente é esta dar-se, em âmbito federal, com o PP nacional – onde Maluf é um cacique decadente entre outros tantos – ou numa aliança municipal, ainda mais se selada com uma foto de Lula em alegre congraçamento na mansão do ex-prefeito, maior símbolo da corrupção do país, novamente prestigiado como figura pública em seu próprio curral eleitoral.

Em outro registro, mas de modo análogo, a candidatura Freixo pelo PSOL não pode ser entendida como um evento autônomo em relação à atuação do partido em âmbito nacional e estadual. A conquista massiva do voto petista – que se afigura essencial para sua vitória – acabará por implicar, portanto, em uma cobrança de posicionamento do candidato quanto à frequência com que a agremiação ao qual está filiado tem se aliado, em votações no parlamento, ao conservadorismo do DEM e do PSDB - e, ainda mais grave, como ele justifica que o PSOL, no deplorável estágio da mídia brasileira atual, tenha legitimado uma revista acusada de graves crimes ao valer-se de “denúncias” de Gilmar Mendes ali publicadas para endossar uma ação contra o ex-presidente Lula?


Caminho do meio
Penso que, tanto em um caso como em outro, um meio-termo acabará por se impor como necessário. Ou seja, Freixo muito provavelmente acabará obrigado – se não para vencer as eleições, certamente para conseguir governar – a compor alianças e a negociar com os representantes do grande capital, mesmo que, em um e outro caso, se esforçando, com  resultados efetivos ou enredando-se em autoengano, para conservar a dignidade.

Já em relação à eleição paulistana, parece ficar cada vez mais claro que a aliança com Maluf foi um enorme, deplorável erro, mas não por opor “puros” e “pragmáticos”, como os mais afoitos prognosticaram, pois a questão central, no caso, nunca foi que quaisquer alianças seriam, por si, condenáveis, mas sim quais seriam aceitáveis e quais não. E com um político gestado pela ditadura militar, símbolo máximo da corrupção, criminoso internacionalmente procurado, fiador da Rota como esquadrão da morte de pobres e negros é, claramente, inaceitável que a centro-esquerda faça alianças.


Tema perene
De qualquer maneira, só o futuro dirá, com certeza, quais as consequências da comnposiçãocom Maluf para a candidatura Haddad e da recusa à realpolitik para o projeto político de Freixo. Mas a questão de fundo implicada nessas posturas antagônicas deve permanecer ainda por um bom tempo como um dos temas centrais do embate político, do interesse dos jovens por política e, em decorrência, da própria evolução democrática no Brasil.


(Imagens retiradas daqui e dali)

domingo, 24 de junho de 2012

O golpe asséptico e suas ameaças

O golpe de Estado contra o presidente eleito do Paraguai, para além dos graves danos que causa à evolução da incipiente democracia do país – que até 1989 esteve sob a ditadura de Stroessner e desde então só elegera mandatários do partido de centro-direita Colorado, com exceção de Lugo -, abre um precedente perigoso e potencialmente ameaçador à normalidade democrática na América do Sul.

Tal constatação é corroborada por três fatores principais: o primeiro é a natureza cosmética da deposição de Lugo, um golpe de Estado travestido de impeachment, não obstante tratar-se de mera pantomima jurídica, com o raio de ação e o tempo disponível à defesa do acusado drasticamente limitados e armado com acusações baseadas em platitudes sem definição legal ou critérios objetivos de averiguação, tais como “mau exercício do governo”.


Guess who's coming to dinner?
A velocidade recorde com que os Estados Unidos, confirmando sua autoatribuída vocação de país defensor da democracia, reconheceram o novo governo de um golpista que atende pela sugestiva alcunha de Franco é um segundo elemento a caracterizar a quartelada civil paraguaia como ameaçadora à soberania sul-americana. O reativamento da Quarta Frota, as evocações cada vez mais frequentes à Doutrina Monroe e a tentativa recente - e malsucedida – de fincar uma base militar no Equador são representativas da atenção e das intenções do país mais bélico do mundo para com a região (leia texto de Azenha sobre interesses dos EUA no golpe).

Tanto mais pelo crescimento que ora se verifica, no subcontinente, no número de regimes, democraticamente eleitos, alinhados à centro-esquerda ou à esquerda bolivariana, ambos patrocinadores, em maior ou menor grau, de projetos políticos que implicam tanto na recusa à ALCA quanto ao fim do alinhamento automático e preferencial com os EUA. 

A tal configuração, que forma o último item de nossa lista tríplice, a quartelada que depôs Lugo (foto) se contrapõe como sugestão às forças conservadoras sul-americanas ora na oposição – e a seus parceiros transnacionais – de uma promissora novidade: a armação de cenários golpistas aparentemente assépticos, sem tanques na rua, a partir do conluio entre oligarquia, parlamentares e mídia.


Reações
Ante tal quadro, duas medidas se impõem como mais do que urgentes, necessárias: a reação ao golpe paraguaio, como forma de revertê-lo, restituindo a ordem constitucional; e a tomada das devidas precauções para impedir que conspirações similares tenham lugar nos demais países da América Latina.

Quanto à reação, é forçoso constatar que a janela de reversão imediata do golpe estreita-se à medida que o tempo passa, sobretudo se se leva em conta a rapidez com que ditas potências imperialistas do hemisfério norte vêm reconhecendo o novo regime. Mesmo com a reação enfática de Argentina, Venezuela e Equador – e com nota oficial firme e ponderada do governo brasileiro – a possibilidade de ver Lugo reempossado já nos próximos dias depende agora de uma combinação extraordinária de sucessos.

De qualquer forma, hoje ou em um futuro próximo, a reversão do quadro dependerá de uma ação coordenada entre os países com governos progressistas na região e as forças legalistas paraguaias visando, a um tempo, esvaziar a autoridade dos golpistas e construir meios de recondução e bases institucionais de sustentação a Lugo. Além do enfrentamento com os próprios golpistas e com a elite paraguaia, tal operação implica numa batalha surda com os EUA e em deparar-se com delicadas e potencialmente explosivas questões - inclusive algumas diretamente relativas ao Brasil, como no caso dos brasiguaios e dos “sacoleiros” - derivadas da permeabilidade das fronteiras paraguaias e do protagonismo da questão agrária no país, tema este analisado por Chico Bicudo.


Medidas preventivas 
Já em relação a medidas preventivas contra esse tipo de golpe low profile, afiguram-se urgentes ações em três frentes: no âmbito sul-americano, numa interação coordenada entre os governos progressistas da região no sentido de, com ações de inteligência, antecipá-las e as neutralizar e de, se mesmo assim efetivadas, agir pronta e conjuntamente para esvaziá-las e as reverter.

Já em termos nacionais, a mais efetiva medida contra anomalias golpistas é o reforço das instituições democráticas, notadamente assegurar-se de dar à Justiça, ao Legislativo e ao Executivo não apenas as melhores condições para o exercício de suas funções – e isso inclui a adoção dos métodos mais democráticos para eleição ou seleção dos cidadãos e cidadãs melhor capacitados a desempenhar tais funções -, mas a preservação do equilíbrio de relações o mais harmoniosas entre os três poderes.

Ademais -e ainda no âmbito das medidas institucionais anti-golpismo - a implementação do que Norberto Bobbio denominou Direitos Humanos de quarta geração acaba por implicar, além de numa vacina anti-golpismo (não fosse este, por definição, um ato múltiplo de violação de DHs), na necessidade de efetivação do esforço de superação positiva dos meios de participação popular na democracia representativa convencional, com o recurso a uma interação maior, mais frequente e mais efetiva dos cidadãos com os poderes constituídos, para além do momento de eleição.

Por fim, a terceira frente de ação preventiva diz respeito à mídia – talvez o mais urgente e danoso dos elementos potencialmente golpistas do cenário brasileiro, hoje.


O fator mídia
O comportamento da mídia brasileira quanto ao golpe em Assunção, em sua quase totalidade, veio a corroborar sua posição de defensora dos interesses das forças conservadoras, obedientes às regras democráticas ou não. As falas de personagens como Arnaldo Jabor ou Merval Pereira no sentido de, mais do que legitimar, enaltecer o golpe acabam, por sua falta de coerência e excesso de parcialidade, a deixar ainda mais evidente que eles – como tantos de seus colegas com assento na mídia corporativa - não passam de ventríloquos travestidos de jornalistas, a vocalizar um texto ditado pelo mercado e pela corporação que lhes paga o salário. E, assim, o apreço que tais corporações nutrem pela democracia se torna evidente.

Por outro lado, como demonstrado com o brilho costumeiro e de forma cabal por Dênis de Moraes no último encontro nacional de blogueiros, o Brasil encontra-se em um estágio consideravelmente mais atrasado do que vizinhos como Venezuela, Equador e Argentina no que concerne à regulamentação e à decorrente diversificação político-ideológica da mídia [em breve farei um post específico sobre sua apresentação no evento.] É preciso muita indulgência para não reconhecer que os governos Lula, com sua resistência passiva, e Dilma, com seus esforços de cooptação, se esforçaram pouco e avançaram menos ainda na democratização e na defesa da regulamentação da mídia.

Portanto, a questão midiática certamente se mostraria problemática na eventualidade agourenta de um dia sofrermos uma tentativa de golpe aos moldes em questão – dados o grau de penetrabilidade capilar interna de parte mídia brasileira e sua conformação como corporação transnacional, com um peso e um potencial danoso exponencialmente maiores do que ora se verifica no golpe no Paraguai. Desnecessário assinalar que este forma mais uma entre tantas razões a evidenciar a urgência e a centralidade da questão midiática no Brasil, e o quanto esta demanda uma imediata e condizente atenção.



Diferença de escala
Embora seja prudente tomar todas as medidas preventivas contra a disseminação de tal espécie de golpe, é preciso ter claro, no que nos tange diretamente enquanto nação, que o Brasil não é o Paraguai.

Pois uma análise sem preconceitos mas também sem ilusões mostra-nos, de forma clara, que, comparativamente, a situação institucional é bem mais frágil no país vizinho, devido a fatores diversos - em algum grau passíveis de serem atribuídas a uma herança histórica para a qual o próprio Brasil contribuiu, quase exterminando, com sangue escravo e a soldo da Inglaterra, a população masculina adulta paraguaia, num genocídio que muito deveria nos envergonhar (e que, por isso mesmo, alguns revisionistas tentam a todo custo desmentir). 

De qualquer maneira, o fato é que a fragilidade comparativa do país vizinho é hoje gritante no tamanho da economia e na decorrente volubilidade econômica; na cultura política construída num contexto de redemocratização tardia e precária, virtualmente monopolizada pela centro-direita e marcada por episódios golpistas mais ou menos recentes - além, sobretudo, da pobreza e da miséria brutais as quais está submetida, sem colchões assistenciais efetivos, a grande maioria da população paraguaia. 


 Tais constatações, não obstante lamentáveis, se contrapostas às mostras de resilência da democracia brasileira nas últimas décadas permitem, mesmo reconhecendo que esta está longe de poder ser considerada avançada, identificar diferenças de escala entre um e outro modelo político-institucional e de estágio entre graus de evolução democrática..


No pasarán
Esta é uma razão a mais para que, embora, como já dito, devamos estar atentos para evitar ao máximo a possibilidade de que algo similar ao golpe paraguaio tenha lugar aqui, o novo modelo de insurgência das elites não possa servir para a defesa de uma postura ainda mais cordata e indulgente da esquerda em relação às forças conservadoras nacionais, impulsionada por tais temores golpistas.

Seria, na democracia, o pior dos cenários: na já excessivamente contemporizadora e, no sentido buarqueano do termo, cordial política brasileira, a inoculação do medo – e, pior, do medo golpista – como forma de impor alianças mais dilatadas entre progressistas e conservadores. Tal feito significaria não apenas a sujeição ainda maior a demandas regressivas, mas, assim, a promoção espontânea de um processo de indistinção entre esquerda e direita que só tende a beneficiar esta, enquanto descaracteriza aquela. (Não é mera coincidência que o golpe no Paraguai venha sendo utilizado nas redes sócias para justificar aliança do PT de São Paulo com Paulo Maluf, o que é o cúmulo do oportunismo – e não só porque o político em questão é, ele mesmo, produto de uma ditadura militar.)


(Imagens retiradas, respectivamente: daqui, dali, de lá e dacolá)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A esquerda e os ataques autoinfligidos

O debate em torno da renúncia de Luiza Erundina à candidatura à vice-prefeitura de São Paulo, para além das questões políticas concretas às quais se liga – como a aliança do PT com o PP de Maluf ou a escolha de um novo candidato a vice - evidenciou importantes aspectos acerca dos debates e dilemas políticos da esquerda - e de sua relação com o conservadorismo - em um contexto no qual as redes sociais assomam à posição de fórum comunicacional dos mais relevantes, por vezes determinante.

Esse cenário traz em seu bojo uma série de benefícios imediatos e de possibilidades de comunicação, interação e, em algum nível, de participação política – as quais, aprofundadas e institucionalizadas à medida que a tecnologia e a inclusão digital avancem, tendem, a médio prazo, a revolucionar o próprio modo de inserção político-eleitoral dos cidadãos no âmbito de uma ciberdemocracia.


Movimento de manada
Por outro lado, essas transformações operadas na confluência da tecnologia, da comunicação e da política, embora eminentemente positivas, não estão desprovidas de armadilhas, de riscos de manipulação e de possibilidades temerosas várias, os quais acabarão por demandar autocrítica, ajustes e precauções por parte dos próprios agentes comunicacionais e políticos.

Assistimos neste momento, no Brasil, à disseminação de uma das mais potencialmente danosas dessas práticas, cuja diifusão tem sido extremamente facilitada pelas chamadas novas tecnologias: o ataque pessoal desqualificador em massa. Ele constitui, de qualquer maneira, uma prática a se lamentar, mas mais ainda porque ora se dá no interior da própria esquerda, em um processo autofágico de agressões mútuas. Isso já vinha ocorrendo, pontualmente e em escala menor, há algum tempo, mas atinge uma especie de ápice através do processo de agressiva difamação contra Erundina que teve lugar nas redes sociais já na noite de terça-feira (19/06) e se manteve intenso durante todo o dia de ontem e de hoje.


De santa à vilã
Uma sucessão de pseudo-denúncias, do tipo “Veja a foto do pacto de Erundina com Quércia”, “Você sabia que partido de Erundina é ninho de ex-malufistas?” ou “Deputados estaduais do PSDB fizeram uma vaquinha para ajudar Erundina? [por que e em quais circunstâncias, é claro, não dizem]”, além da indefectível ressurreição do caso do Tribunal de Contas proliferaram ontem na internet, não raras vezes reproduzidas pelos mesmos perfis que três dias atrás vibravam com sua indicação a vice.

Ora, há toneladas de fotos de praticamente todos os políticos da geração de Quércia com ele, inclusive de Lula, e o PMDB quercista – do qual chegou a tomar parte o vice-presidente Michel Temer – foi e - evidentemente não mais com essa denominação - continua a ser, parcialmente, integrante do maior partido aliado no PT em âmbito federal. E o próprio Nassif, que ontem condenou o gesto de Erundina, sustenta que ela "foi alvo de uma tentativa de golpe por parte do Tribunal de Contas do Município (TCM)", caso cujos desdobramentos finais acabariam por mobilizar gente de todos os partidos em solidariedade à respeitável figura política que ela é (pois, ao contrário do que algumas mentes tacanhas pensam, opositores não são necessariamente inimigos figadais e mesmo entre políticos profissionais pode, eventualmente, haver solidariedade).


Veja faz escola
De qualquer modo, não é o debate sobre a procedência ou não de tais acusações o que interessa aqui, e sim chamar a atenção e alertar preventivamente para um fenômeno mais ou menos recente nas redes sociais e que, se devidamente manipulado pelos setores conservadores, pode gerar ainda mais divisões e conflitos de monta no interior das forças que lhes fazem oposição.

Pois tais práticas, por si, já demonstram o quanto setores da esquerda na internet têm seguido e mimetizado os métodos cafajestes que tomaram conta da imprensa brasileira ma última década, a partir da atuação militante da revista Veja – notadamente do autoexilado Diogo Mainardi e de dois de seus “blogueiros” de aluguel - na verdade, um par de jornalistas com alguma expertise e habilidades retóricas de seminaristas aplicados, que as utilizam para distorcer e desvirtuar feitos e projetos da centro-esquerda e, sobretudo, para difamação e desqualificações pessoais.


Gasolina na fogueira
Os “novos” métodos que agora infelizmente maculam a atuação de setores da esquerda pouco diferem, na prática, dos que há pouco eram virtualmente exclusivos do esgoto jornalístico o qual alegam deplorar, valendo tudo para a agressão e a desqualificação pessoal. Incluem até mesmo um personagem que se oculta por detrás de um pseudônimo – Stanley Burburinho – que passa boa parte do dia desencavando e difundindo material que, repercutido nas redes sociais, possa ser usado para desqualificação de quem quer que se oponha ao projeto político petista, na linha de partido. Vem desse ser covardemente protegido pelo anonimato boa parte das “acusações” contra Erundina.

Que um número considerável de perfis - inclusive os de pessoas reais de que gosto e respeito (ou respeitava) – reproduza, com intenção vingativa e difamatória, “acusações” como as parágrafos acima reproduzidas não passaria de algo a se lamentar, como evidência de baixeza e de imaturidade política, não fosse o fato de que tal estratagema não apenas interdita o debate, necessário ao avanço democrático e à solução dos eventuais impasses – ainda mais em um momento como o atual -, mas açula ódios e discórdias já à flor da pele em decorrência da aliança com Maluf e da renúncia de Erundina.


Táticas mistificadoras
O arco de tais ações comporta tanto agressões as mais abjetas, como procedimentos claramente mistificadores ou falseadores - como escandalizar-se com uma reprodução de uma declaração totalmente descontextualizada de Erundina, ou as tentativas de tentar caracterizar como artificial a revolta causada pela aliança com Maluf devido ao fato de o PP já ser um aliado nacional do PT. Ora, o PP nacional é invisível para a maioria da população e Lula nunca se prestou a ir beijar a mão de Maluf na mansão deste no Jardim América para selar a aliança, fornecendo imagens para a mídia se refastelar - o que, somado ao carnaval que os petistas entusiastas de tal aliança fizeram, comprova, por si, a especificidade de sua importância.

Já em São Paulo, no âmbito de uma eleição municipal, a força das lideranças locais é imensuravelmente maior e Paulo Maluf é um cacique, enfraquecido, mas ainda capaz de se eleger seguidas vezes deputado, o que o ajuda a manter à distância a letárgica e elitista Justiça brasileira. Em seu reduto, ele continua sendo o  símbolo máximo da corrupção (como criminoso internacionalmente procurado pela Interpol) e do desrespeito aos Direitos Humanos (fiador da Rota em seu pior momento e da repressão periférica em bases classistas e raciais). Além disso, é o mais destacado dos políticos paulistas ainda na ativa surgidos sob os auspícios da ditadura militar - ou seja, o retrato acabado da pior direita patrimonialista, um antagonista histórico e, este sim, figadal do PT, um estranho no ninho petista.


O melhor dos iguais?
Isso nos leva a um segundo aspecto preocupante da questão: o modo como setores da esquerda defenderam a aliança com uma figura política com tamanha folha corrida impressionou (e continua a impressionar) não apenas pela desfaçatez e ausência de escrúpulos, com a adoção de um pragmatismo exacerbado que desconsidera qualquer aspecto ético, mas pela agressividade com que reagiram contra os que ousaram criticar ou se opor a tal aliança - não só recusando, no mais das vezes, qualquer debate em bases civilizadas, mas procurando culpá-los pelas derrotas passadas e desqualificá-los como ingênuos, preos a um moralismo tacanho, "acusando-os" de "puros" (ver ótimo texto do jornalista Leandro Fortes a respeito).

A questão que se coloca, no limite, é: se, para tais setores da esquerda, a ética ficou reduzida a algo arcaico e dispensável tanto no trato com os que com eles divergem (ainda que no mesmo campo político) quanto, relegado a mero empecilho contraproducente, do ponto de vista eleitoral, em que a aliança com uma das mais nefastas figuras políticas brasileiras – pior, só Bolsonaro – em troca de um minuto e meio na TV se justifica, com tudo que isso inexoravelmente traz como simbologia de conivência com a corrupção e com a violência de Estado, o que distinguiria a esquerda em termos de conduta ética e o que haveria de diferencial em seu projeto político em relação ao que os partidos de centro e de centro-direita oferecem?
- “Vira o poder pelo poder. Assim não voto mais no PT” - ouvi recentemente de uma amiga antes entusiasmada com a candidatura Haddad. [Não estou endossando que não haja diferenças entre o projeto petista e o da centro-direita – é claro que há, notadamente em termos de políticas sociais -, mas procurando demonstrar os efeitos simbólicos passíveis de se depreenderem de tal aliança.]

Caindo em armadilhas
Assim, incutir, como um cavalo de Troia, a aliança com o maior símbolo do conservadorismo populista – e, como já dito, da corrupção e do desrespeito aos Direitos Humanos - no seio de uma extremamente promissora candidatura de centro-esquerda não foi o único sucesso recente da direita, em São Paulo. A adoção das estratégias desqualificadoras típicas do jornalismo serrista é, hoje, prática corriqueira no interior da própria centro-esquerda. E quem se beneficia tanto com Maluf na chapa petista quanto com a esquerda trocando baixarias desqualificadoras entre si são apenas os opositores de Haddad, Serra notadamente. Por isso, às vezes passa-se a impressão que o PT está caindo como patinho nos ardis do conservadorismo - e o faz agredindo os que tentam alertar para o perigo, os quais poderia ao menos ouvir.

De qualquer forma, os danos da aliança com Maluf estão feitos e, mesmo que ela viesse a ser revertida – o que parece irreal -, foi dada,de livre e espontânea vontade, à mídia a foto de Lula com Maluf que ela explorará à exaustão. Tal aliança fatalmente levará a candidatura de Haddad a perder votos em setores da esquerda, mas a chance de derrotar, a um tempo, o serrismo e o PSDB em São Paulo impõe-se como elemento natural a, malgrado todas as rusgas, impelir a centroesquerda comandada pelo PT a buscar a união na cidade.


Trégua necessária
Parece, portanto, inteligente – e producente - que, como medida inicial, sejam suspensas as agressões, difamações e desqualificações no interior da esquerda. Agredir Erundina ou quem quer que seja não contribui em nada para a erradicação dos tucanos em SP, pelo contrário. Voltar a criar um clima propenso ao diálogo e parar de ver um inimigo em cada simpatizante que ousa fazer uma crítica polida à condução da candidatura Haddad soam como medidas profiláticas.

Ademais, a centro-esquerda dependerá de capacidade de articulação e de pressão para que a escolha do candidato a vice na chapa petista recaia em uma figura capaz de somar – e não apenas votos. Após meter Maluf goela abaixo da militância, é hora de ao menos procurar apaziguar a esquerda e acenar claramente contra o neoliberalismo e a favor de avanços sociais e respeito aos Direitos Humanos. Isso não cicatrizaria de imediato as feridas, mas começaria seu tratamento, ao invés de avivá-las. Neste momento, já seria um feito.


(Imagem retirada daqui)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Resposta ao post de Nassif sobre Erundina

O jornalista e blogueiro Luis Nassif publicou hoje um texto, intitulado "Luiza Erundina: tudo por uma foto" em que analisa a renúncia da deputada federal (PSB/SP) à candidatura de vice-prefeita pelo PT/SP, na chapa liderada por Fernando Haddad. O texto que se segue ao mencionado post, abaixo reproduzido, é uma resposta às críticas de Nassif.

"Luiza Erundina: tudo por uma foto"

"Tenho um carinho histórico por Luiza Erundina.

Quando foi alvo de uma tentativa de golpe por parte do Tribunal de Contas do Município (TCM) devo ter sido o único jornalista a sair em sua defesa. Tinha o programa Dinheiro Vivo, na TV Gazeta, de público majoritariamente empresarial. Externei minha indignação que teve ter tido algum peso na decisão do presidente da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) Mário Amato, de visitá-la com uma comitiva de empresários, hipotecando-lhe solidariedade.

Defendia-a também quando operadores do PT criaram o caso Lubeca. E, recentemente, o Blog conduziu uma campanha de arrecadação de fundos, para ajudar Erundina a pagar uma condenação injusta dos tempos em que foi prefeita.

Sempre admirei sua luta pelos movimentos sociais, das quais sou periodicamente informado por irmãs lutadoras.

Por tudo isso, digo sem pestanejar: ao pedir demissão da candidatura de vice-prefeita de Fernando Haddad, Erundina errou, pensou só em si, não nas suas bandeiras políticas nem nos seus movimentos sociais. Foi terrivelmente individualista.

À luz das entrevistas que concedeu ontem, constata-se que os motivos foram fúteis. Estava informada da aliança do PT com Paulo Maluf; chocou-se com a foto  de Lula e Haddad com ele. Foi a foto, não a aliança, que a chocou.

A foto tem uma simbologia negativa, de fato. Aqui mesmo critiquei o lance. Mas apenas simbologia. Não se tenha dúvida de que, eleito Haddad, Erundina seria a vice-prefeita plena para a periferia, seria os movimentos sociais assumindo uma função relevante na administração municipal.

No entanto, Erundina abdicou dessa missão, abriu mão de suas responsabilidades em relação aos movimentos sociais, devido ao simbolismo de uma foto. Ela sabia que, eleito Haddad, seria mínima a participação do malufismo na gestão da prefeitura; seria máxima a intervenção de Erundina nas políticas sociais.

Poderia ter dado uma entrevista distinguindo essas posições, externando sua repulsa do malufismo, mas ressaltando a diferença de poder entre ambos.

Mas Erundina se sentiu preterida, não por Haddad, mas por Lula, que deixou-se fotografar com Maluf e não com Erundina.

Seu gesto foi para punir Lula, pouco importando o quanto prejudicaria seus próprios seguidores, os movimentos sociais. Ela abriu mão de um cargo que não era seu, mas de seus representados, para punir Lula.

E quem ela procura para a retaliação? Justamente os órgãos de imprensa que mais criminalizam os movimentos sociais, que tratam questão social como caso de polícia. Coloca a bala no revólver e o entrega à revista Veja. A quem ela fortaleceu? Ao herdeiro direto do malufismo na repulsa aos movimentos sociais: Serra.

Saiu bem na foto da mídia, melhor do que Lula com Maluf, mas a um preço muito superior. E quem vai pagar a conta são os movimentos sociais, pelo fato de sua líder ter abdicado de um cargo que a eles pertencia."

Fim do texto de Nassif.
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Uma primeira questão a ser analisada diz respeito à premissa adotada pelo título e reproduzida pelo post: Erundina teria renunciado "por uma foto", ou seja, por atenção e holofotes midiáticos. Teria sido mesmo essa sua motivação? Parece pouco provável. Em primeiro lugar, porque Erundina está na política profissional há quase quatro décadas e em nenhum momento demonstrou avidez por holofotes midiáticos - pelo contrário: discrição e a recusa em modelar o seu discurso de acordo com o que a mídia quer ouvir são duas características distintivas de sua atuação.

Em segundo, porque, se se mantivesse candidata, ela teria, no mínimo, mais de três meses de exposição diária, sendo que exclusivamente positiva nas propagandas eleitorais. Achar que ela trocou tudo isso por uma exposição momentânea na mídia e a qual, ao mesmo tempo em que a promove, incita ódios exacerbados entre sinpatizantes do partido mais votado do país parece pouco lógico.

O poder da imagem
Além dessa premissa questionável, o texto omite que Erundina renunciou à posição de vice mas se comprometeu a continuar fazendo campanha, ou seja, a atuar junto às bases sociais do partido, embora com menos proeminência - dado que desmonta um dos principais argumentos de Nassif, de que Erundina "abriu mão de suas responsabilidades em relação aos movimentos sociais".

Há, ainda, dois pontos altamente questionáveis no artigo: o primeiro é a afirmação de que uma foto é "só simbologia", fingindo desconhecer que simbologia é a essência, o fator preponderante em uma eleição. E sendo que a foto em questão, de Lula "beijando a mão" de Maluf na mansão deste - comprada sabe-se lá com que dinheiro -, é até agora, e tende a continuar sendo por um bom tempo, a imagem-símbolo da campanha.


Para além da Veja
O segundo ponto questionável é aproveitar-se da disseminação de justificado sentimento antimídia para tipificar Erundina como uma espécie de parceira da Veja - e, portanto, de Serra. "Coloca a bala no revólver e o entrega à revista Veja" é um período indigno do jornalista equilibrado que Nassif costuma ser, trai o (em seu caso, particularmente justificável) ódio subjacente à revista dos Civita e, escrito com o fígado, evidencia as reais motivações do ataque a Erundina. 

Porém, haja simplismo: para além das maquinações da mídia, o fato é que tanto a surpreendente desistência de Erundina, como a aliança do outrora combativo PT com o político de cujas práticas deriva o verbo "malufar" são, inquestionavelmente, matéria de interesse jornalístico, de Veja inclusive.

  
Protagonismo das redes
A bem da verdade, quem alienou movimentos sociais e beneficiou Serra, quando Erundina ainda "era" vice,  foi o PT/SP ao se aliar à mais nefasta figura do conservadorismo populista paulista, um individuo que não pode botar os pés fora do país sob risco de ser preso pela Interpol. Quem convive com petistas e com os movimentos sociais sabe que foi a partir dessa aliança esdrúxula que uma parte talvez minoritária, mas certamente volumosa da militância passou a se dizer "broxada" e "sem tesão" pela campanha. 

E, como boa matéria de Luciano Coutinho no Observatório da Imprensa revela, foi ao receber esse feedback negativo de setores da militância nas redes sociais que Erundina convenceu-se de que deveria renunciar à candidatura - um gesto que não pode, portanto, ser classificado de "terrivelmente individualista" nem de dar-se sem levar em consideração os movimentos sociais. Pelo contrário: como observa Coutinho, "O episódio marca o momento em que as novas mídias se sobrepõem à mídia tradicional numa disputa eleitoral no Brasil".

Quem tudo quer...
Ainda mais importante: por paradoxal que pareça, a decisão de Erundina, não obstante prejudicial, neste momento, à candidatura petista, tem tido um efeito renovador, ao escancarar o autoengano da direção e de muitos militantes, dispostos a vender a alma, a mandar "às favas os escrúpulos",  em troca de um minuto e meio na TV.

A culpa pelo desastre é deles, quem deu uma banana aos movimentos sociais ligados ao PT foram eles, quem impôs uma decisão vinda de cima, acabando com a tradição de democracia interna do PT são eles, que devem agora responder por suas ações, ao invés de transferirem covardemente o ônus destas a terceiros, que tiveram o desplante de expô-los como mero mercadores. Erundina não pode ser responsabilizada por agir de forma límpida e restituir a primazia da ética sobre o ultrapragmatismo.

Gesto desmistificador
Sua atitude é o contrário de uma ação individualista e covarde, de prima-dona, como sugere Nassif: é um gesto de extrema coragem e de altruísmo, que renuncia à possibilidade iminente de ascensão ao poder e à chance única de encerrar sua carreira política em alto estilo; um gesto que tem e terá consequências dolorosas, que já lhe cobram um preço altíssimo, através da agressão de petistas descontentes que ora tudo fazem para transformá-la em um pária e em conspurcar sua imagem (até com Demóstenes Torres ela foi hoje comparada...). 

Achar que a figura pública diferenciada que ela sempre foi ousou um gesto tão redentor e que acarreta tantos revezes pessoais só para "ficar bem na foto" é indigno de Erundina - e de Nassif.

domingo, 10 de junho de 2012

A falência da Espanha e seus disfarces

A Espanha quebrou, faliu. Este é o fato, a terrível realidade que se esconde por detrás de uma operação discursiva que lança mão de termos amenos, humanistas e solidários como “ajuda”, “resgate” e “operação de salvamento”. 

Trata-se, na verdade, de uma intervenção na economia e na soberania espanholas, para benefício do mercado financeiro e com duras consequências para a população. 


Rajoy questionado
Tendo imposto suas demandas ao governo do conservador Mariano Rajoy sob sua relutância apenas aparente, a batalha que os arautos do neoliberalismo ora travam é de ordem discursiva: em primeiro lugar, trata-se de convencer os espanhóis que é não apenas aceitável, mas para seu próprio bem desejável que paguem, com carestia, desemprego, cortes nos salários, nas aposentadorias e no acesso a saúde e educação – em suma, com o que resta do Estado de bem-estar social à europeia – as dezenas (talvez centenas) de bilhões de euros que serão utilizadas para tirar as instituições financeiras do buraco por elas mesmas cavado.

A julgar pelas reportagens na imprensa espanhola, agora está ficando claro para muitos de seus ingênuos eleitores que Rajoy - que há dez dias declarou taxativamente que não haveria resgate aos bancos - mentiu. E, a bem da verdade, continua a fazê-lo, já que é lugar-comum entre economistas que cem bilhões de euros são um mero paliativo, e que o setor financeiro, com as cartas na mão, demandará de quatro a oito vezes esse valor para cobrir seus rombos - com a imposição dos cortes sociais correspondentes.
Não foi por falta de aviso


Consequências psicológicas
“A intervenção é um golpe psicológico que constitui um marco na história de nossas relações com a Europa. Em um país onde a identidade nacional e os sentimentos de autoestima coletiva têm estado sempre tão estreitamente vinculados aos feitos alcançados no âmbito europeu, custa crer que tenhamos chegado a este ponto. Entender como e por quê e o que ocorrerá a partir de agora mostra-se imprescindível”, aquiesce uma voz favorável ao "resgate".

Desse quadro decorre um segundo movimento da citada operação discursiva, desta feita para salvaguardar o orgulho nacional, que a menção à condição de quarta economia da Europa costuma alimentar. Nela pontifica, de novo, a promoção do contorcionismo verbal à maneira do 1984, de Orwell, com a adoção de uma novilíngua em que a tragédia torna-se pacto social; a bancarrota, ajuste mercadológico; a humilhação à soberania nacional, solução negociada com os parceiros de bloco.

Nós, latino-americanos, já vimos algumas vezes esse filme, porém em versões em preto e branco, do final do século passado. Trata-se, com o perdão pela redundância, de uma chanchada de má qualidade, protagonizada por canastrões, com um roteiro que tem sérios problemas de verossimilhança e, pior, não tem final feliz: os vilões vencem.


Espanha x Argentina
Essa autorreferência ao nosso continente nos leva ao terceiro movimento da estratégia discursiva neoliberal acima aludida, desta feita de caráter eurocêntrico e, naturalmente, pró-mercado, facilmente identificável no discurso da mídia brasileira relativo à crise espanhola: “Quando o resgate era de pais da periferia, a mídia chamava de falência, quebra. Quando é no centro: resgate, apoio, empréstimo. Ajuda”, resume o professor Emir Sader, em seu Twitter.

Convido os(as) leitores(as) a compararem o tratamento que essa mesma mídia deu ao default argentino – que se recusou a seguir as imposições do sistema financeiro internacional - e o enfoque que ora dispensa à quebra da Espanha – que segue à risca o que manda a Troika. Recomenda-se, ainda, daqui a algum tempo, quando tivermos elementos sobre os desdobramentos da obediência espanhola à banca, que também se leve em conta, nessa comparação, a situação do país ibérico e a da Argentina – que, malgrado todas as ameaças de danação eterna a que fatalmente estava condenada por ousar enfrentar a cartolagem, tem apresentado, sob um governo de centro-esquerda, um desempenho econômico superlativo em meio à crise.


Confusão conceitual
A persistência do neoliberalismo como modelo orientador das políticas econômicas da Zona do Euro - agravadas por sua prescrição como antídoto que só faz agravar sua maior crise, como se vê na Espanha - nos fornece a medida do quanto a constituição de blocos econômicos transnacionais, apregoada como imprescindível à sobrevivência na globalização, acabou por constituir-se em um fator determinante na submissão dos estados nacionais aos ditames do mercado financeiro.

No âmago de tal problema está uma confusão conceitual, intencionalmente inoculada pelos arautos do neoliberalismo quando da ascensão histórica deste, ao longo dos anos 80, sob os  os eflúvios de Thatcher e Reagan: a concepção de globalização e neoliberalismo como termos indissociáveis e, em larga medida, intercambiáveis, marcados por uma relação pela qual a primeira, por seu caráter estruturante, imporia a adoção de políticas econômicas nos moldes ditados pelo segundo, sob a ameaça de expulsão da então chamada “nova ordem mundial” e decorrente aniquilamento do país enquanto ente autônomo.

Essa confusão e essa crença são um lugar-comum na reflexão teórica sobre o período, levada a cabo inclusive por pensadores que continuam na linha de frente da crítica socioeconômica. É notável, no entanto, que tanto intelectuais brasileiros como Octávio Ianni e Milton Santos quanto uma certa tendência do pensamento franco-europeu agrupada em torno do Le Monde Diplomatique tenham desde sempre, em sua maioria, recusado a aferrar-se ao determinismo teórico do período. 


O retorno da soberania
Este, embora falho, é até certo ponto compreensível, posto que tardiamente desmentido factualmente. Pois, a rigor, a constatação de que a morte do Estado nacional era uma balela e que havia possibilidade de as nações, enquanto ente socioeconômico, sobreviverem – com crescimento, inclusão social e um Estado fortalecido, atuante e que conservasse um bom grau de independência a despeito da interdependência da economia global– só tem lugar com a ascensão e o sucesso das administrações de Lula, Chávez, Kirchner, Morales, Corea, entre outros - e, em alguns casos, de seus sucessores.

Assim, ainda que devamos ter muito claros a persistência insidiosa do poder neoliberal sobre tais administrações e os limites e eventuais equívocos e desacertos destas – como a insensibilidade do governo de Dilma Rousseff para com as demandas do funcionalismo público, que ora fornece um dentre tantos exemplos possíveis -, é preciso atentar com limpidez para as conquistas e as possibilidades propiciadas pelo realinhamento político-ideológico promovido pela democracia brasileira na última década -e lutar para efetivá-las e ampliá-las.

O povo espanhol, por sua vez, já promete voltar a tomar as ruas e a Puerta del Sol, em protesto. Suerte.


(Foto que encima o post retirada daqui ; as demais, daqui)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Olhos e corações voltados à Grécia

À medida que as eleições gregas entram em sua reta final, os olhos do mundo se voltam ao berço da democracia para acompanhar o que promete ser um dos mais emocionantes pleitos dos últimos tempos - e dos poucos a incluir a possibilidade concreta de eleger uma força política cuja plataforma inclui o rompimento com o programa de austeridade ditado pela Troika.

Pois, a nove dias das eleições, a Syriza (Coligação da Esquerda Radical) lidera, com 31% - e na condição de grande e entusiasmante novidade -, as projeções de votos, seguida pelos 25% da centro-direita (Nova Democracia) e pelos socialistas (só de nome) do PASOK, com 14%.

A confirmação da vitória da Syriza no próximo dia 17 seria uma enfática tradução político-eleitoral da derrota do receituário neoliberal anti-crise que a "comunidade europeia" lhe determinou, e cujo fracasso, do ponto de vista social, tem sido dramática e cotidianamente constatado pela população grega, que convive com índices de desemprego da ordem de 35% e com mais da metade dos jovens sem trabalho. 


Economicismo desumano
A receita ditada pela Troika, além de coagir e humilhar a autonomia da democracia grega, impôs um brutal corte de salários, pensões e investimentos estatais, com alta redução do raio de ação do Estado e nenhuma preocupação com as graves consequências sociais decorrentes. A aplicação de tais medidas, caracterizadas por um neoliberalismo desabrido, tem envenenado ainda mais o tecido socioeconômico de uma nação empobrecida e aprofundado a crise. Para muito além das planilhas sobre dados macroeconômicos, a Grécia é hoje um país cuja classe média vem sendo dizimada e cujos pobres, sujeitos a fome e desnutrição, encontram-se entregues à própria sorte.

O mundo social do trabalho se esfacela, com sindicatos extramente enfraquecidos, a proliferação de “contratos informais” e o calote salarial institucionalizado (500 mil trabalhadores não estariam recebendo seus pagamentos). O cenário se deteriora: há falta de medicamentos para doenças graves e empresas farmacêuticas relutam cada vez mais a vender a prazo, segundo relata o The Guardian de hoje (08/06); nas cidades, proliferam mendigos e meninos de rua; grassam a fome e a desnutrição: “o país já se encontra em ruínas”, definiu o ativista Yorgos Mitralias, segundo relato de Mauricio Haschizume em matéria da Carta Maior.


Assimetria de tratamentos
Um caso dramático se tornou o símbolo das medidas desumanas a que está sendo submetido o povo grego: o músico Antonios Perris, de 60 anos, se suicidou após ver-se na miséria e não conseguir que nenhum asilo aceitasse a mãe, que sofre de Alzheimer e esquizofrenia e pulou com ele do quinto andar de um prédio. Perris (foto abaixo) deixou uma carta, largamente negligenciada pela mídia corporativa, em que apela aos poderosos pelos pobres e para que os bancos cessem os despejos.
Enquanto, num flagrante desrespeito aos direitos humanos, o povo grego é pauperizado dessa maneira em nome da austeridade, o Banco Central Europeu injeta nada menos do que 1 trilhão de euros (R$ 2.532.000.000.000,00) em bancos do continente, cuja ação irresponsável no período imediatamente anterior à crise, “alavancando” empréstimos sem lastros, é uma das principais causas da débâcle financeira.


Mídia versus renovação
Não obstante tais discrepâncias, será instrutivo acompanhar, nessa reta final das eleições gregas, o esforço que os porta-vozes do mercado encrustados na mídia e por ela designados como “jornalistas especializados” farão para alardear, com um palavrório que, sob verniz técnico, mistura wishful thinking, lugares-comuns da Economia e não tão veladas ameaças, o caos e a expulsão do paraíso que fatalmente, segundo eles, incidirão sobre a Grécia caso a Syriza – caracterizada como o ninho do pior e mais irresponsável radicalismo - assome ao poder.



Até o momento, porém, o que as pesquisas de intenção de voto sugerem é que os eleitores têm se dado conta de que o paraíso neoliberal da Europa mal tem lugar para a plutocracia grega, quanto mais para os estratos médios e baixos, atirados à própria sorte. O jovem candidato a primeiro-ministro pela Syriza, Alexis Tsipras (37, foto acima), já alertou que se a Europa cortar os fundos adicionais pré-acordados, a Grécia, sob seu comando, para de pagar a dívida.  Mesmo caso a coligação não venha a ganhar as eleições (toc, toc, toc...), deve se constituir como uma nova força na arena grega - e, de qualquer maneira, já goza do mérito de ter trazido uma lufada de ar fresco a renovar o pensamento político no velho continente.


Novos rumos para a esquerda
Muito haveria para se dizer sobre a relação entre a paradoxal vigência do neoliberalismo como alegada panaceia para a Europa atual, a crise grega e a saudável novidade representada pela Syriza. Mas a sensacional intervenção de Slavoj Žižek no comício da coligação, disponível ao final do texto (com legendas em português lusitano), aborda essas e outras questões - como os impasses no interior da esquerda ou a recusa à passividade que as reações dos gregos à crise denotam - com tamanho brilhantismo, eloquência e originalidade que o melhor é encerrar por aqui, recomendando, com ênfase, que assistam ao vídeo.

Pois, falando para um público naturalmente entusiasmado, certamente grato por seu apoio e que compartilha muitos de seus ideais, o filósofo esloveno mostra-se particularmente inspirado, seja pela consistência de sua crítica ou pela intensidade de sua performance, com seu blending único de psicanálise e marxismo, seu inglês com sotaque caricatural, suas metáforas e comparações inusitadas e desconcertantes - tecidas muitas vezes a partir de filmes, canções e demais produtos culturais de massa (como a alusão a Coca-Cola e Pepsi para ilustrar a diferença entre Nova Democracia e PASOK) -, além de seus conceitos personalíssimos e desconcertantes - como, no caso, o de “democracia descafeinada”. Vale a pena ver o vídeo até o final.



(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá)