A polêmica quanto ao
impeachment ser ou não um golpe transformou-se em um não-debate,
posto que choque de convicções. Cada um dos lados em confronto
possui tanto argumentos irrefutáveis quanto um arsenal de truques
retóricos e óbvias falácias. Para além de quem tem razão em tal
impasse, preocupam-me duas de suas consequências diretas.
A primeira, já
apontada por diversas vozes, é que, seja qual for a resposta a tal
polêmica, ela devolverá ao PT o estigma do vitimismo, cujo culto,
açulado pelos truques do marketing político tão eficiente quanto
aético, já lhe foi muito útil nas urnas e pode vir a ser decisivo
para reanimar a candidatura Lula em 2018.
A segunda, a meu ver
ainda mais artificial do que a anterior, diz respeito ao modo como o
legado petista tende a perdurar e a ser tratado pela militância, por
simpatizantes e pelo pessoal do "voto crítico" - aquela
turma que passa dois anos descendo a lenha no PT, acusando-o de fazer
o jogo da direita e de, portanto, não representar a esquerda, mas,
na hora do voto, volta a ser linha-auxiliar do petismo. Difícil
afirmar se se trata de mera miopia política ou grave masoquismo, mas
o fato é que já vimos esse filme em 2010, 2014 e na votação do
impeachment, e não há razão para acreditar que não se repita em
2018, com Lula, a despeito de seu legado, que inclui o desastre Dilma
Rousseff.
E é justamente a
operação de maquiagem e falseamento de tal legado, já em curso, o
que me interessa tratar aqui. Pois parece-me claro que a tendência narrativa petista será opor as medidas anticíclicas que Temer certamente tomará -
ajuste fiscal, tunga nos aposentados ("reforma" da
Previdência", em linguagem marqueteira), corte de direitos
trabalhistas - não a medidas extremamente similares que Dilma tomou
ou estava prestes a tomar (como aexpansão das "concessões"
e a própria "reforma da Previdência", item prioritário
em sua agenda pré-impreachment), mas ao ápice do governo Lula, com
a expansão do crédito, das vagas na universidade, dos concursos
públicos, dos lucros em geral.
Ou seja, será
comparado um presente recessivo e em crise (em grande parte graças a
artes petistas) com um passado atípico e já idealizado em seu
momento mesmo de consagração (porque,entre outras aspectos, foram
desprezadas suas consequências para a economia futura do país).
Tal tendência já é
possível de ser observada atualmente, em forma embrionária: a
administração Temer, segundo tal narrativa, representará
o fim da ascensão de muitos à universidade (como se o FIES já não
estivesse falido com DIlma), atentados a direitos trabalhistas (como
se os dois governos petistas não tivessem mudado as regras de
aposentadoria, seguro-desemprego, seguro-defenso e pensões), o
término do período em que pobres viajavam de avião (como se a
redução das rotas interioranas, do número de voos e de sua taxa de
ocupação não fosse uma realidade presente), e por aí vai.
Ou seja, contra o então
presente recessivo de Temer será contraposto um passado idílico e
socialmente justo do petismo - como se este não se desdobrasse
naquele, e como se o legado de Dilma (presente ou futuro) não fosse
a pior crise econômica dos últimos 34 anos.
(Imagem retirada daqui)