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quarta-feira, 29 de julho de 2015

A crise e o estado de negação

A crise brasileira é hoje uma realidade, com desemprego acelerado (111 mil vagas com carteira assinada fechadas só em junho; mais de 500 mil no primeiro semestre), inflação galopante e direitos trabalhistas e previdenciários sob franco ataque. Pior: não há perspectiva de recuperação no curto prazo, mesmo porque os efeitos do ajuste fiscal imposto pelo governo Dilma Rousseff estão apenas em seu início.

Porém, tão grave quanto a crise econômica - e de consequências potenciais ainda mais desastrosas para o país - talvez seja a crise programática e ideológica legada pelo petismo, que ao aderir a uma política econômica tipicamente neoliberal torna-se virtualmente indistinguível das forças conservadoras. Assim, justa ou injustamente, acaba por atirar quase toda a esquerda em um vácuo – como há anos temos neste espaço alertado, enquanto observávamos as alianças cada vez mais elásticas e aéticas e a tentativa de conquistar hegemonia politica através de uma ilusória cooptação dos setores conservadores, marca distintiva do primeiro governo Dilma.



Discursos desviantes
Enquanto o país real vive esse drama, o petismo e seus aliados midiáticos engajam-se em um esforço hercúleo para desmentir a crise e sua gravidade. Nesse ímpeto, desprezam os dados oficiais, fecham os olhos para o que se vê e se fala nas ruas e abusam de contra-exemplos colhidos amiúde – o resort que o blogueiro “progressista” encontrou lotado, as vendas de um carro de determinada marca, o avião sem poltrona vazia. Como se, numa sociedade economicamente complexa como a brasileira, a crise significasse,de uma só vez, uma derrocada total e generalizada de todos os setores de atividade, e não houvesse setores da elite – notadamente a financeira – que dela aproveitam para auferir lucros ainda mais altos do que os que obtiveram durante toda a era petista, pródiga em recorde de lucros bancários. Falta bom senso.

A Carta Maior, por exemplo, passou o dia de hoje (29/07) bombardeando as redes sociais com mensagens tentando tirar o ônus da crise das costas de Dilma e internacionalizá-la, com temas como o prejuízo mundial anunciado pela Volkswagen – como se o resultado do balanço anual de uma corporação dependesse obrigatoriamente de uma crise internacional, e não de uma série de fatores administrativos, comerciais e tecnológicos - ou a precavida (e absolutamente corriqueira) decisão da presidente do FMI de recomendar cautela e desaprovar aumento de juros.

Mas o que é realmente lamentável é que, nessa empreitada, Carta omita que justo hoje a Cepal anunciou que, na América Latina, só Venezuela e Brasil devem entrar em recessão, e que o Federal Reserve [o banco central dos EUA] confirmou não ser transitória a significativa melhora dos níveis de emprego no país. Omissões e parcialidades assim é que fazem a outrora respeitada publicação de Mino Carta ser cada vez mais vista como um panfleto partidário - uma “Veja do B”, como apelidada nas redes sociais. O que ju$tificaria tal renúncia ao bom jornalismo? Um exame nas tabelas da Secom nos ajuda a entender.



Estado de negação
Seja como for, na prática é uma impossibilidade, atualmente, negar ou suavizar a crise, corroborada por uma penca de dados oficiais e à vista de qualquer pessoa desprovida de fanatismos partidários e com a mínima sensibilidade para os dramas sociais - os 93% de desaprovação a Dilma nas pesquisas falam por si. Ademais, é o próprio governo o principal evocador da crise como justificativa incontrastável para o corte de direitos trabahistas e do orçamento de praticamente todas as áreas da administração - notadamente Saúde e Educação, as mais afetadas, a despeito do discurso oficial de preservação das “áreas sociais”.

Caracterizado por omissão, comparações despropositadas e falseamento da realidade, o contradiscurso governista, com frequência alheio não só a fatos e dados (inclusive os oficiais, do próprio governo que apoiam), tende a substituir a análise racional do quadro politico por dogmas e convicções a priori, numa dinâmica que pouco tem a ver com política, assimilando-se mais a uma lógica religiosa. Tende, a médio prazo, a ser politicamente fatal.



Tipologia do escape
Dois fenômenos – um tecnológico, outro discursivo – estimulam e ajudam a explicar o modus narrativo petista. O primeiro diz respeito às igrejinhas que a web 2.0 proporciona, os “guetos informativos” de que nos fala o pesquisador Carlos Castilho em artigo imprescindível sobre o tema, onde delineia a dinâmica por meio da qual, atualmente, o pensamento crítico ou questionador é preterido ou negligenciado por grupos de internautas unidos por laços ideológicos ou paridários.

O segundo fenômeno é o caráter binário da concepção de política do neopetismo: ou se está a favor ou contra, não há meio termo, como demonstra Vladimir Safatle, com a habitual competência, em seu texto semanal. Agrava esse binarismo excludente a forte recusa que o governismo tem mostrado em relação à autocrítica, substituída pela desqualificação agressiva dos opositores, sejam à direita (“coxinhas”) ou à esquerda (“fazem o jogo da direita”).


Pré-julgamentos
Completa o arsenal autoilusório petista a eterna comparação com o governo FHC (como se ser menos pior do que aquele período de trevas fosse suficiente) e a eleição de bodes expiatórios multiuso, tais como a invocação de um sempre iminente golpe (sem jamais atentar para o caráter golpista do estelionato eleitoral ou da revogação de direitos trabalhistas e previdenciários adquiridos), a Justiça (primeiro na pessoa de Joaquim Barbosa; agora na do juiz Moro) e a mídia (a qual chamam de “PIG”, numa operação semântica que explicita o pré-julgamento negativo antes do exame do mérito). 

Qualquer semelhança, às avessas, com a direita caricata que acusa o petismo de comunista e de partido líder da corrupção não é mera coincidência.



Contas a pagar
No caso específico da atual crise, esse comportamento é particularmente preocupante porque, na contramão do petismo tradicional, se esforça por negligenciar o sofrimento de desempregados, pensionistas, aposentados e trabalhadores de baixa renda. Enquanto isso, numa tentativa de renegar a crise, tenta sobrevalorizar os indicativos de consumo das classes mais abastadas. Trata-se de uma inversão de valores incompatível com qualquer ente político responsável e consequente, ainda mais com um partido que se diz de esquerda.

Os custos dessa traição do PT para com suas origens é, hoje, incomensurável. Por um lado, por ser impossível predizer como e em quanto tempo o tal vácuo à esquerda será preenchido. Por outro, porque mesmo tendo agido, na melhor das hipóteses, como um partido de centro, o petismo no poder tende a ser identificado, no imaginário eleitoral, como representante da esquerda – e, assim, será sobre este estrato político que recairão o estelionato eleitoral praticado por Dilma e o retrocesso em forma de perda de direitos trabalhistas, desemprego e carestia trazido em seu bojo.



(Foto da estátua de Giordano Bruno nio Campo dei Fiori, em Roma, retirada daqui)