
Eu tinha 16 anos, dezenas de namoradas e cantava em uma banda de punk rock. Minha vida era plena de hedonismo. A principal preocupação era impedir que uma namorada descobrisse a(s) outra(s) – algo que hoje me parece sem sentido, pois é óbvio que elas sabiam, mas na época eu não atinava com isso.
Lembro perfeitamente do dia do comício das Diretas-já: era uma tarde quente, e eu estava no pátio da escola, beijando uma namorada – que era tipo a número 1. Aproximou-se a mais temida das inspetoras de alunos (que nós chamávamos “serventes”, o que hoje me parece preconceituoso), dona Elza, e começou a berrar com ela, me esculachando: que ela era a terceira garota que eu beijava naquele dia, se ela não tinha auto-respeito, o que a mãe dela ia pensar disso e por aí vai. Achei que a garota fosse embora, mas não. Ela sorriu. E continuamos ali, nos divertindo. No meio da tarde a levei pra casa e depois fui buscar outra garota, chamada Ana. Foi com ela que fui ao comício (sinto-me incrivelmente canalha escrevendo isso, mas é a verdade).
Aninha me presenteou com um chapéu de feltro vermelho, que eu adorava, e o utilizei o tempo todo. Havia no ar, desde o momento em que pegamos o ônibus, uma atmosfera especial, que parecia nos dizer: hoje é um dia único, vocês estão protagonizando a história.
A praça da Sé estava apinhada. Ficamos de frente para a catedral, do lado direito, e ainda hoje, quando olho uma grande fotografia aérea que tenho emoldurada, costumo brincar, apontando um ponto em meio ao mar de gente, dizendo: “Este aqui sou eu”.
É vívida na minha memória a voz do locutor Osmar Santos – que foi um dos grandes fenômenos radiofônicos do país antes de sofrer um grave acidente - gritando: “Diretas quando, São Paulo?”, e todos respondendo, em uníssono, “Já!!!!”. E das tentativas de, cantando o refrão: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, derrubar uma perua da vênus platinada, emissora que jamais cobrira o movimento popular até então – embora hoje, apelando até a truques de edição posteriores, tente renegar isso.
Lembro bem da emoção que provocou o discurso de Franco Montoro, então governador de São Paulo – e um político anos-luz à frente do que o PSDB, então inexistente, se transformaria. Ouço ecos de Faoro, de Bicudo, de personalidades que eu ou intuía ou sabia devido à militância de meu pai serem figuras importantes, mas que não tinha elementos para julgar por mim mesmo. Havia também momentos indefectíveis, como “Coração de estudante”, de Milton Nascimento, e o hino nacional cantado por Fafá de Belém, que já àquela época pareciam algo piegas (embora, a bem da verdade, no calor do ato cívico, não deixassem de ter seu encanto).
Lembro também que havia uma enorme bandeira do Brasil, que passava de tempos em tempos, nos encobrindo por vários minutos, permitindo que Aninha e eu nos agarrássemos de forma mais ousada. Num desses “amassos” roubaram meu chapéu... Que raiva!
A minha memória das Diretas-Já é assim: mescla personagens e situações históricas e memórias de uma sexualidade adolescente vivida ingenuamente e sem culpas.
Mas o dia da votação da emenda Dante de Oliveira no Congresso não teve nada de erótico. Foi triste, muito triste. Lembro do sentimento de derrota que nos acometeu ao final da noite, quando, embora a votação fosse avançar madrugada adentro, estava evidente que seríamos derrotados. Lembro de faces com lágrimas escorrendo, de um sentimento de uma derrota que nos custaria anos, como de fato custou. Lembro de um abraço longuíssimo e doloroso de uma pessoa de que eu gostava muito, cujo sentido era claro e se confundia com o político: poderíamos ter sido muito felizes, mas não fomos. Nunca mais, nesses anos todos, a vi de novo.
Figueiredo foi o mais burro e o mais inapto dos mandatários brasileiros. Poderia ter passado à história como o presidente que promoveu a transição democrática, mas não. Passou como um bronco, que dizia preferir o cheiro dos cavalos ao do povo.
Respeito a posição do PT à época, de recusar as eleições indiretas no Congresso. Era o que um partido de esquerda tinha a obrigação de fazer. Mas nunca comprei a versão – aparentemente consolidada - de que Tancredo seria “mais do mesmo”, como afirmam tanto blogueiros imaturos quanto comentaristas suspeitos, como Nelson Motta – cuja alma matter de todas as horas, a Rede Globo, foi a principal fiadora e apoiadora de Sarney.
Primeiro porque personalidade conta muito em política. Dilma não será Lula, Eduardo Gomes não foi JK. Segundo porque Tancredo tinha uma história política consolidada: principal ministro do Getúlio eleito, negociador da posse de Goulart sob o parlamentarismo. Um centrista, um conciliador. Não dá para comparar com Sarney, egresso da Arena – partido de apoio ao regime militar – e coronel do estado mais pobre da federação (e, como alguém já observou, o mais insensível socialmente dos coronéis, pois até ACM legou o Pelourinho e uma Salvador modernizada aos baianos, enquanto as magníficas construções de São Luís caem aos pedaços e a pobreza grassa no Maranhão).
De qualquer forma, a derrota nas Diretas-Já, seguida da trágica e altamente suspeita morte de Tancredo foram episódios traumáticos e de consequências nefastas para o país – as décadas perdidas, como a história as denominou e como os inegáveis avanços propiciados pelo governo Lula – em relativamente pouco tempo – confirmam. O quanto poderíamos ter avançado se tívéssemos tido um presidente eleito em 1985?
Apesar de tudo, confesso que sinto um grande orgulho de ter participado das Diretas-Já. Foi uma luta justa, que – numa época em que não havia internet – uniu amplos contingentes da população em oposição ao governo de turno e à então toda-poderosa Rede Globo.
Na minha opinião, tratou-se de um movimento mais autêntico do que aquele contra Collor – no qual, embora eu também viesse a tomar parte como cara-pintada, foi, hoje se constata, excessivamente manipulado pela imprensa, Folha de São Paulo à frente. As Diretas-já foram mais intensas, expressaram desejos coletivos longamente repressados e que poderiam vir a ter consequências certamente maiores, se bem sucedidos.
Perdemos a batalha, mas de coração jovem e nobre e de cabeça erguida.