A ênfase mais polêmica do manifesto vem da afirmação que “A canalha é de jornalistas, não de patrões, é preciso que se diga”. Não pretendo discutir aqui a questionável assertiva – a qual ou entendi mal ou tenderia a discordar, no que tange aos patrões -, mas sua citação neste espaço é mais um motivo para você, leitor(a), ir lá conferir o vigor instigante do texto de Leandro.
O que me interessa reter, por ora, é essa situação vivenciada pelo jornalista, de renúncia a constrangimentos éticos em nome da sobrevivência no mercado (sobrevivência que, como Leandro aponta, poderia se dar de outra forma); de inversão dos fatos e insistência no falso em nome da primazia da má-fé; de um estado de coisas tal que um jornalista justamente consagrado não se furta a chamar de “canalha” seus colegas de profissão – e, o que é pior, estes não se avexam em retrucar, pois falta-lhes moral e brio para tanto.
Acostumamo-nos a isso, de uma forma tal que um dos esportes mais praticados na internet brasileira é a crítica à imprensa, merecedora até mesmo de uma sigla tão mordaz quanto generalizante utilizada de forma ampla para caracterizá-la: PIG (Partido da Imprensa Golpista), criada por Paulo Henrique Amorim, jornalista consagrado que aderiu ao novo esporte sem abrir mão de uma atuação mainstream numa TV sustentada pelo neopentecostalismo, em que repete várias das vicissitudes criticadas nas arenas virtuais – inclusive na sua.
Também não é sem mordacidade que constato que sem a “grande mídia” a blogosfera perderia grande parte de seus temas – e de sua graça. Trata-se, é evidente, de um paradoxo – e de uma realidade que muitos blogueiros insistem em fingir não ver. A crítica à mídia é não apenas bem-vinda mas, neste momento mais do que nunca, necessária. Só que isso tem levado a um sentimento anti-mídia generalizado que gera distorções e equívocos históricos que se perpetuam.
Por exemplo: ao contrário do que muitos críticos virtuais insistem em afirmar de forma um tanto inconsequente – pois sem conhecimento de causa – a “grande imprensa” nem sempre foi assim. O modus operandi da plutocracia midiática e suas meia dúzia de famiglias, é verdade, pouco mudou através dos tempos, mas o jornalista - este ente profissional hoje exterminado no Brasil por uma decisão infeliz da pior Alta Corte de nossa história – foi, ao menos até o fim dos anos 80, um dos principais agentes de resistência político-ideológica, no mais das vezes identificado com a necessidade de redemocratização do país, com as lutas sociais e como questionamento da aliança entre elite econômica e poder político.
Um dos motivos para tal é que um número considerável de jornalistas provinha da intelectualidade (a maioria deles comunistas, partido então com forte presença nas hostes culturais) em busca de sustento material, repaginados para consumo diário, como sugere o sociólogo Sergio Miceli em seu imprescindível estudo sobre os intelectuais no Brasil na primeira metade do século XX.
O jornalista constituia-se, então - e por um longo tempo -, em um ente identificado com a esquerda a um ponto tal que um venerando analista de nossa imprensa predisse que quando Lula subisse ao poder os barões da imprensa não conseguiriam produzir um retrato condizente de sua administração, tamanha a resistência, manipulação e boicotes que os jornalistas imporiam como forma de defender Lula. Ledo engano.
Se bem que, na verdade, a premissa inicial contida na profecia de tal oráculo se confirmou, já que poucas - ou nenhuma - presidências foram enfocadas de forma tão distorcida como a de Lula. Só que essa distorção não foi pró-Lula e levada a cabo pela esquerda, mas contra o presidente duas vezes eleito e à direita. Além das explicações contemporâneas para tal processo, há fatores mais profundos que tem raizes históricas. Poucos setores foram tão afetados pela que a Queda do Muro de Berlim representou – e pelo quadro materialista-ideológico que a sucedeu - quanto o jornalismo nativo, e por razões as mais diversas:
- A perda definitiva da hegemonia no PCB na seara cultural;
- O trauma na esquerda, seguido do vazio pela perda de horizontes político-revolucionários (simbolizados no “fim da história” de Fukuyama);
- O processo de desideologização social (lembrem-se de Cazuza berrando que queria uma ideologia pra viver) e a cultura materialista extrema imposta pelo yuppismo dos anos 90;
- A explosão, via disseminação do ensino superior, de mão-de-obra barata, concomitante ao empobrecimento intelectual da imprensa;
- O barateamento do acesso à informação e a simplificação - ou extinção - de procedimentos diversos ligados à produção industrial da notícia, que o advento da era da telecomunicação digital trouxe em seu bojo.
Esses fatores, somados e açulados pelos processos globalizantes de padronização vertical e horizontal dos meios jornalísticos e de concentração de capital via megafusões, geraram o jornalista que ora conhecemos, esse ser híbrido e um tanto esquizofrênico: por um lado, em maioria, um pobre-diabo mal ajambrado, quase sempre sub ou desempregado, ávido por qualquer frila, brandindo quixotescamente a bandeira de seu talento e de sua ética inflexível; por outro, uma espécie de oráculo dos deuses, em seus ternos e tailleurs bem cortados, subservientes ao mercado e às forças políticas mais retrógradas em troca do vil metal, que aliena e mantém sua suposta condição de “formador de opinião”. É precisamente na travessia da ponte profissional entre esses dois estereótipos carregados que ele se transforma na “canalha” a que alude Leandro Fortes.
Talvez, ao invés de erguer como bandeira a destruição da mídia, como tantos o fazem, seja a hora de sairmos dessa falsa dicotomia representada por esses dois estereótipos propositadamente exagerados, aproveitando o potencial e talento jornalístico abundante fora das grandes redações – é este o subtexto do manifesto de Leandro.
De minha parte, não estou entre os que querem ver a “grande mídia’ destruída – aliás, acho essa posição de uma irresponsabilidade sem tamanho. Não apenas por uma questão de securidade sócio-econômica que diz respeito a todo um setor empregatício, nem porque a blogosfera independente está ainda longe de se estruturar em bases profissionais que permitam a produção da notícia em bases industriais. Mas porque acredito na viabilidade de uma alternativa intermediária, que reúna, em bases profissionais, o melhor do pensamento crítico da blogosfera aos meios de produção industrial da notícia.
E é também precisamente aí que o Manifesto de Leandro é alçado à sua dimensão maior, na proposição de um novo jornalismo, profissional, remunerado, mas honesto, encerrado na predição de que “É possível ser jornalista e trabalhar em qualquer lugar sem se submeter ao mau-caratismo. Arriscado, mas possível”.
(Imagem retirada daqui)