Nos
últimos dias, muita gente tem me abordado para perguntar sobre
Marina Siva. São, em sua maioria, pessoas insatisfeitas com o atual
cenário político e que não simpatizam com Aécio nem querem
anular; parte delas está em dúvida entre votar, no primeiro turno,
em Marina ou em um dos partidos de esquerda sem chance real de
vitória. A maioria já notou que a massacrante campanha de
desqualificação de Marina na internet faz muito barulho, mas não
levanta e muito menos desenvolve nenhuma questão relevante.
Este
texto é dedicado a essas pessoas, com cujo impasse eleitoral me
identifico. Sem nenhuma pretensão de "fazer cabeças" ,
procura contextualizar a candidatura Marina no atual espectro
político, analisando com maior profundidade duas de suas limitações
mas evidentes e dois aspectos claramente positivos de sua
candidatura. Não é, como veremos, uma personagem desprovida de
dilemas. As conclusões, é claro, ficam a cargo de cada um.
Vácuo
persistente
Em
primeiro lugar, há de se ter claro que a candidatura de Marina Siva
não anula uma das características mais preocupantes das eleições
2014: a constatação de que, a rigor, elas não oferecem ao eleitor
uma candidatura competitiva de esquerda. Isso se deve, sobretudo, à
primazia que as três candidaturas com chance de vitória concedem,
com insignificantes nuances entre si, a um modelo econômico de
origem neoliberal e que privilegia os interesses do mercado
financeiro em detrimento aos da população.
Tal
modelo baseia-se no propalado "tripé econômico",
constituído de metas pré-definidas de inflação, dólar flutuante
(ou seja, sem intervenção estatal no sentido de manipular a taxa de
câmbio) e rigor fiscal, traduzido em metas para superávit primário
(a relação entre receita e despesas, excetuadas aquelas dispensadas
ao pagamento de juros da dívida pública).
Ao
povo, os trocados
Mais
grave, ele implica, ainda, na transferência mensal ao mercado
financeiro de quantias extorsivas na forma de pagamento de juros, com
o agravante de que estas sobem proporcionalmente à taxa de juros
oficial (Selic), a qual tem sido mantida em patamares elevados pelo
Banco Central sob o pretexto de combater a inflação. Para dar uma
ideia do estrago: em 2011 só os juros da dívida pública custaram
ao povo brasileiro R$ 230 bilhões, o equivalente a 5,6% do Produto
Interno Bruto (PIB) e a 15 vezes o total de investimento anual no
programa Bolsa- Família. (Convém lembrar que quando o PT era
oposição, ele propunha, como convém a um partido de esquerda, o
congelamento do pagamento dos juros da dívida até que ela fosse
auditada por uma consultoria independente e recalculada.)
Enquanto
Aécio levaria esse modelito neoliberal ao limite e Dilma o tem
transigido eventualmente, manipulando índices aqui e ali, mas, com a
covardia característica, sem jamais assumir uma postura critica em
relação a ele – pelo contrário, ela não cansa de jurar estar
sendo fel ao tripé -, Marina já deixou claro que o manterá ao pé
da letra.
Trata-se
de uma decisão de fundamental importância, posto que não só reduz
drasticamente os recursos para a promoção de mais justiça social e
mais desenvolvimento, mas enfraquece o necessário combate
político-ideológico contra a hegemonia neoliberal, combate este
para o qual o Brasil, devido à sua relativa independência e à sua
posição de líder regional e potência global em ascensão, teria
condições de protagonizar.
Liberdades
individuais
Outra
questão a suscitar preocupações em relação à candidatura de
Marina diz respeito às suas posições relativas aos direitos
individuais e questões comportamentais no âmbito da biopolítica,
aí incluídas as questões de gênero. Dados os limites espaciais
deste texto, vou me limitar a citar três das mais relevantes
questões a tal âmbito circunscritas: a isonomia de direitos entre
heterossexuais e homossexuais, a questão do aborto e a
descriminalização da maconha.
É
certo que a função legislativa, a priori, não figura entre as
atribuições do Executivo federal. Mas, dadas as peculiares
conformações do presidencialismo vigente no Brasil, é certo também
que, na prática, o poder presidencial é capaz de adiar ad infinitum
a discussão de tais temas, como aliás temos assistido no país desde a redemocratzação. Com
isso, enquanto o mundo avançou muto nas duas últimas décadas no
trato de tais questões, o Brasil, a despeito de sua mística de país
de costumes liberais, foi ficando para trás e hoje se encontra
defasado em relação a boa parte do mundo democrático.
Confrontada
quanto a tais temas – e em relação à incompatibilidade entre tal
agenda e suas crenças religiosas pessoais – Marina respondeu, em
um primeiro momento (em 2010) que submeteria tais questões a
plebiscito popular; ultimamente sua assessoria tem divulgado que ela
passou a suportar direitos LGBTs, mas ela própria nada declarou. A
proposta de submeter tais temas a plebiscito é altamente
questionável, pois, embora signifique uma forma de fazer avançar a
democracia direta, o faria, contraditoriamente, em relação a
questões caras a minorias, num jogo viciado que despreza a premissa
contemporânea de que a democracia, além de refletir o desejo da
maioria, tem por dever assegurar os direitos das minorias.
Balanço
As
duas questões elencadas acima constituem os aspectos mais negativos
da candidatura Marina, na opinião deste blogueiro. São
suficientes para recusar o voto nela? Isso depende de cada um. Há de
se levar em conta que, em relação aos mesmos quesitos elencados,
nem Dilma nem Aécio oferecem melhores perspectivas – e que os
candidatos que o fazem não têm chance real de vitória.
Há
de se considerar, também, os pontos positivos que só a candidatura
de Marina traz, dos quais dois serão comentados abaixo.
O
mundo desde o fim
Com
sua sólida formação em desenvolvimento sustentável, Marina poria
um fim ao modelo predatório de desenvolvimento que atingiu o ápice
no governo Dilma e que tem gerado danos os mais graves. Em primeiro
lugar, ao próprio meio ambiente e à mobilidade urbana, na contramão
de um momento histórico em que a finitude dos recursos e a
necessidade de avançar sem esgotá-los são cientificamente
comprovadas.
Em
segundo lugar (pela ordem dos acontecimentos, não em importância),
por ser responsável pela pior política indígena da história da
democracia brasileira, com uma aliança nefasta entre o poder federal
e o agronegócio impondo deslocamentos massivos e assassinatos, e com
epidemias vitimando tribos em diversos quadrantes do país, no que
não poucos antropologistas qualificam como um genocídio.
Danos
ideológicos
Em
terceiro lugar, pelo que tal visão "tecnocrática" de
desenvolvimento, arcaica em sua essência, gerou em termos de danos
político-ideológicos, ao submeter acriticamente a política ao
determinismo econômico, como sublinha
Moysés Pinto Neto:
"Como para Dilma a política é irrelevante, já que no final com as transformações econômicas promovidas todos lhe dariam razão, tudo que envolve um conflito é deixado de lado em torno da viabilidade desse projeto desenvolvimentista. Pior: Dilma fez preponderar no PT, que era um partido razoavelmente afinado com a causa ecológica, a mentalidade de que a preocupação ambiental está em conflito com o desenvolvimento social."
Marina
Silva reúne, como poucas profissionais no mundo, condições de
reverter tal quadro, tanto pelos méritos próprios
internacionalmente reconhecidos, que fazem dela expert em preservação do meio
ambiente, quanto por estar cercada do que de melhor o país oferece no
tema. Certamente promoveria a substituição de tal modelo predatório
por políticas de desenvolvimento que insiram o Brasil entre as
nações que crescem de forma autossustentada, preservando o país às
novas gerações. Isso significaria, necessariamente, uma revisão
das políticas indígenas tanto em relação ao latifúndio quanto em
prol do avanço de sua afirmação identitária e cultural.
Resgate
da política
Outra
área em que Marina promete inovar é em termos de práticas
políticas. O fato de ela ter recebido vinte milhões de votos e,
resistindo a intensas pressões, se recusado a apoiar Serra ou Dilma
no segundo turno de 2010 é demonstração factual de que fala sério.
Seria
um alento e um regate para um país que tanta esperança depositou no
PT, para em seguida ver, desde o governo Lula, alianças políticas
demasiadamente elásticas, em que toda e qualquer consideração
ética foi negligenciada em prol de mais poder, abrindo espaço para
figuras nocivas da vida pública brasileira, como Collor e Maluf. Nas
palavras do sociólogo Luiz Eduardo Soares, "O desapreço pela
mudança nos métodos políticos continuou, ajudando a jogar no
pântano a credibilidade da política."
No
governo Dilma, prossegue Soares, "A questão da ética pública
continuou sendo abordada como capricho pequeno burguês ou simples
armações políticas da grande imprensa, sem que se assumisse a
sério a autocrítica que o mensalão teria exigido". Como é de
conhecimento até do mundo mineral, os petistas não só deixaram de
fazer a necessária autocrítica após o mensalão, mas continuam
fingindo que ele nunca ocorreu nem foi julgado por um plenário em
ampla maioria composto de juízes nomeados por Lula e Dilma. No
universo paralelo do petismo, o mensalão é uma invenção da mídia
e uma maldade do carrasco Joaquim Barbosa (ele próprio também
nomeado por Lula). Acredite se quiser...
Chance
única
Além
da renovação per se das práticas políticas – uma demanda da
sociedade brasileira tornada urgente desde as Jornadas de junho e que
Marina Silva e Marcelo Freixo foram das poucas lideranças a
incorporar a seus programas políticos –a candidata do PSB encara,
neste momento, na prática, a única chance real de tirar o PT da
Presidência.
Trata-se
de uma demanda que não só se tornou legítima, mas urgente. Para o
blogueiro Tsavkko,
para quem Marina representa o atraso, mas Dilma é ainda pior, "O
país precisa disso, a esquerda precisa disso e os movimentos sociais
mais do que nunca precisam de espaço para se renovar". E,
acrescento eu, dados o grau de autoilusão e de ilusionismo aos quais
os governo petista, com o auxílio de sua brigada de fanáticos, tem
mantido a população, só a derrota e a imprescindível e há tempos
esquecida autocrítica poderá trazer tal força política de volta
ao mundo real.
Pois,
além de tudo o que já foi mencionado ao longo do artigo, impedir a
continuidade do governo Dilma seria a resposta cívica a uma
governanta que não hesitou incorrer em estelionato eleitoral ao se
comprometer, em comercial de campanha, a não privatizar o Pré-Sal
e, uma vez no poder, privatzar-lhe, e a troco de banana. A uma mandatária
que foi fiadora e parceira dos governos estaduais na brutal repressão
aos protestos populares, o pior legado da Copa a ameaçar de maneira
permanente o direito constitucional à manifestação nas ruas do país. A uma
presidente autoritária e arrogante, que reprimiu grevistas,
destratou professores das universidades públicas e só se dispôs ao
diálogo com a sociedade - de forma torta e breve - após o povo
sair, de forma massiva, às ruas, num movimento que deixou claro a
farsa do mundo maravilhoso do petismo, mas que estes até hoje não
compreenderam.
Ventos
de renovação
Como
toda mudança, o voto em Marina traz algo de aposta. Não nos
iludamos quanto a isso. Mas antes um risco calculado do que uma
certeza representada pela continuação, por mais quatro longos anos,
do péssimo governo Dilma. Teme-se que o país não aguente. Eu,
embora ainda não tenha fechado questão, me encontro, a princípio,
neste momento, disposto a preferir um voto pela mudança a um voto
ideológico (no PSOL no primeiro turno; nulo no segundo) em que
expresse meu desagrado pelos rumos da política institucional no
Brasil. E você, leitor(a)?
Dentre
os estímulos para tal opção, alem dos já elencados, a declaração
de Luiz Eduardo Soares, figura pública que não pode ser acusado de
identificação com a direita (e que foi ministro de Lula), em texto
de no qual diz ver Marina na Presidência como "uma oportunidade
histórica absolutamente extraordinária para retomarmos a gigantesca
tarefa de imaginar, coletiva e dialogicamente, um outro mundo
possível, um outro Brasil possível, respirando novos ares.".
Oxalá tenha razão.