Preservar,
a virtualmente qualquer custo, os altos índices de aprovação da
presidente Dilma Rousseff tem sido uma meta prioritária do governo
petista, a qual, ao lado da ampliação da hegemonia via expansão
das alianças partidárias, facilita sobremaneira a governabilidade.
Tal processo, porém, ao impelir o governo a evitar ao máximo
situações de desgaste, levando-o eventualmente à inação, à
omissão e a recuos estratégicos, acaba adiando, dificultando ou
impossibilitando o enfrentamento de demandas urgentes porém
polêmicas – como reforma agrária, os direitos
civis relativos à homoafetividade e notadamente, a promoção da
democratização da comunicação. Tal estratégia, além de
exasperar parcelas do eleitorado, tem como efeito colateral, como
veremos, a geração de um alto custo para o partido, para a esquerda
e para o país.
A
criação de uma blindagem em torno da presidência, de forma a
mantê-la a salvo do efeito de eventuais crises – notadamente dos
casos de corrupção, reais ou não, que a mídia, de forma
praticamente ininterrupta na última década, transforma em sucessão
de escândalos -, não é uma inovação trazida pela gestão Dilma.
Algo similar já ocorrera nos oito anos em que Luiz Inácio Lula da
Silva habitou o Palácio do Planalto. O que a atual administração
fez foi ampliar o já dilatado arco das alianças partidárias – o
que significa avançar mais alguns passos em direção ao
conservadorismo e, por conseguinte, ver-se obrigada a uma postura
ainda mais conciliatória e menos incisiva em relação a
determinados temas potencialmente polêmicos. As questões morais que
afetam o comportamento da chamada "bancada religiosa" são
um típico exemplo de tal processo – e do quanto ele pode ser
danoso à verdadeira democratização dos direitos humanos no Brasil.
A
condenação de inocentes
Porém,
tanto com Lula como com Dilma, o comportamento do governo em relação
aos escândalos político-midiáticos pouco difere. Trata-se,
basicamente, de agir com celeridade e, antes que o espetáculo da
corrupção ganhe repercussão massiva, demitir o(s) acusado(s), haja
ou não indícios de culpabilidade. Em decorrência desse modus
operandi, auxiliares
do primeiro, segundo e terceiro escalão caíram como pedras de
dominó na última década, contribuindo para reforçar o mito
midiático de que o governo petista seria mais corrupto do que seus
antecessores.
Longe
de se tratar de uma medida profilática positiva, como se alardeia,
essa prontidão em cortar na própria carne ante a mínima acusação
ou suspeita revela, por parte do governo, baixo nível de
confiabilidade em seus quadros, pouco apreço pelo princípio da
presumibilidade da inocência e, sobretudo, uma tibieza e um temor
ante a mídia incompatíveis com um regime verdadeiramente
democrático, em que direitos e deveres são inerentes à ação da
mídia e do governo, e este não se submete àquela.
Tal
distorção se torna ainda mais evidente quando se leva em conta que,
a exemplo do que ocorreu com a ex-secretária da Receita Erenice
Guerra, com Orlando Silva, ex-ministro dos Esportes, e com o ex-chefe
da SECOM, Luiz Gushiken, muitos acusados, neste últimos 10 anos,
embora tenham sido execrados pelos meios de comunicação e
publicamente demitidos pelo governo, acabaram inocentados pela
Justiça por falta de provas. E com um agravante: além de terem suas
reputações arruinadas pela mídia de forma irreversível – pois o
volume de textos acusatórios, em todos os casos, foi
desproporcionalmente maior do que as ínfimas linhas as quais noticiaram sua absolvição, quando o fizeram -, tais cidadãos jamais
foram reincorporados ao governo do qual, por razões infundadas,
foram alijados.
O
PT questionado
Tais
flagrantes injustiças tendem a produzir ressentimentos acumulados.
E, num cenário em que um dos sustentáculos do crescimento do
ativismo político na internet tem sido blogs de grande audiência em
que a crítica à mídia ocupa um lugar primordial, fica cada vez
mais evidente a falta de diálogo entre uma cúpula partidária que
parece empenhada justamente em não mover uma palha contra os meios
corporativos de comunicação e uma militância que, mais do que se
mostrar convencida da ação nefasta de tais setores, cultiva – no
mais das vezes justificadamente - um profundo sentimento anti-mídia,
do qual a frequência e a generalização de críticas ao que chamam de PIG
(Partido da Imprensa Golpista) são exemplos cabais.
Esse
embate surdo parece ter atingido um ponto de saturação com o recuo,
patrocinado pela presidência petista, do deputado Odair Cunha
(PT/MG) na CPI do Cachoeira, desistindo de apresentar um relatório
que indiciava cinco jornalistas – entre eles Policarpo Júnior,
editor-chefe da Veja – e de
recomendar que a "corregedoria" do MP investigasse o
Procurador-Geral, Roberto Gurgel, o que levou a uma reação contrária em
massa nas redes sociais e nas caixas de comentário de blogs e
publicações virtuais.
O
episódio parece ter difundido a certeza de que o PT não só se
recusa a dar à mídia um tratamento à altura, mas omitiu-se ante o
dever cívico de investigar e indiciar elos entre o crime organizado
e revistas semanais. A reação estupefata de muitos, inclusive de
petistas históricos, parece indicar que a tolerância para com a
inação do governo está em vias de se extinguir. A possibilidade de
que o PT venha a legar ao futuro um país bem melhor em termos
socioeconômicos, mas com uma arena comunicacional hipertrofiada, extremamente
retrógrada e concentrada em pouquíssimas mãos, como sempre foi,
avulta-se, hoje, infelizmente, como plausível.
Perguntas
incômodas
Em
um momento em que figuras como o ex-porta-voz do presidente Lula,
Ricardo Kotscho, e Mino Carta, editor do único semanário político
a não embarcar no antipetismo hidrófobo, vêm a público cobrar uma
autocrítica do partido, talvez seja hora de questionar se
efetivamente tem fundamento o medo do governo em enfrentar a mídia e,
assim, criar conflitos que arranhem seus ótimos índices de
aprovação, e quais seriam os danos efetivos se isso acontecesse.
Em
primeiro lugar, analisemos o receio que o governo demonstra ter da
reação midiática ante uma eventual resposta petista: o que mais
poderia a mídia fazer, após publicar ficha policial falsa da
candidata a presidente na capa de jornal; dar voz a um desequilibrado
mental para que acusasse o presidente de estuprador de menor; patrocinar "blogueiros" cuja missão primordial é difamar,
desqualificar e semear o ódio; insuflar ou criar escândalos de
corrupção que sabia de antemão improcedentes; insultar
diuturnamente um presidente e recusar-se a reconhecer sequer um
dos seus muitos feitos (que boa parte do mundo reconhece); patrocinar
ou endossar armações golpistas várias? A mídia corporativa fez,
faz e continuará fazendo tudo a seu alcance para enfraquecer e derrubar o governo
petista, à revelia deste reagir ou não. Quem teria a perder é ela,
se o governo fechasse as torneiras que, via publicidade oficial,
abastecem seus cofres.
Por
outro lado, será que a manutenção dos índices de popularidade
está tão atrelada a ausência de polêmicas desgastantes e é assim
tão primordial quanto o governo pensa, ou, como algumas pesquisas
qualitativas demonstraram ao longo deste ano, são a manutenção de um
quadro econômico com baixo desemprego e poder de consumo bem acima
da média das décadas imediatamente anteriores os principais atrativos para um volume significativo de eleitores que nunca morreu de paixão
pelo PT, mas que apoia Lula e, sobretudo, Dilma? Não deveria ser levado em conta
o risco de que, num eventual agravamento do desempenho da economia
que atingisse renda e emprego, essa parcela volúvel, pois descomprometida ideologicamente, do eleitorado
viesse a debandar do apoio ao governo, e justamente quando o petismo
já não pudesse contar com as parcelas de seu eleitorado fiel,
agastadas com sua passividade covarde ante a mídia (ou em relação
a temas como a reforma agrária, os direitos civis dos gays, a
insensibilidade para com as populações indígenas, etc.)?
Não se pode, é verdade, atribuir exclusivamente ao PT a
responsabilidade pela leniência da esquerda no trato com a mídia
corporativa. Em tal seara, o maior partido de oposição à aliança
petista, o PSOL, tem repetidas vezes assumido uma posição não
apenas omissa em relação a práticas midiáticas inaceitáveis,
mas, de quando em quando, se valido de um oportunismo em que, de mãos
dados com a pior direita, endossa verdadeiras armações jornalísticas patrocinadas por um semanário que traficou a credibilidade de
outrora por um panfletarismo hidrófobo que em nada se assemelha a
jornalismo.
Medidas
democratizantes
É
importante sublinhar que o que se propõe em relação a tal campo
não representa nenhum ato de força, nenhuma ruptura institucional e
nem mesmo uma luta aberta do governo contra a mídia. Não se
apregoa que o governo deixe de renovar a concessão pública de sinal
televisivo à Rede Globo – embora este seja um seu direito
constitucional - ou que mande a PF invadir a redação da Veja.
Longe disso. A maioria das
sugestões de ação governamental concentra-se em três políticas
republicanas, concatenadas entre si e historicamente reconhecidas
como necessárias ao aprimoramento da democracia brasileira. A saber:
1)
Instituir, após debate com a sociedade e em sintonia com o
Legislativo e o Judiciário, um marco regulatório para a mídia, o
qual estabeleça claramente direitos e deveres e, no caso de
transgressões destes, punições, de modo a coibir o assassinato de
reputações, a calúnia, as armações jornalísticas, hoje
recorrentes e impunes. É urgente reinstituir o direito de resposta,
que assegure a rapidez demandada pela era do jornalismo virtual e dê
à retratação espaço e destaques equivalentes aos da difamação.
2)
Rever o critério de concessão de verbas publicitárias federais a
órgãos de comunicação, deixando de se guiar pela chamada "mídia
técnica", que as distribui de acordo com os níveis de
audiência/vendagem. O atual governo não só tem mantido essa
prática literalmente conservadora e continuado a encher as burras da
Globo e da Abril, mas, como afirma, em um texto didático, Renato Rovai, editor da Forum,
acena com cortes das verbas anteriormente destinadas a órgãos
alternativos.
3)
Promover a democratização da comunicação, com o governo
valendo-se de seu poder econômico e regulatório para assegurar
diversidade e competitividade no campo midiático, com a criação de
novos canais radiofônicos e televisivos abertos que multipliquem as
ofertas de produtos audiovisuais, de abordagens jornalísticas e de
tendências analíticas, além da promoção de uma efetiva democratização do acesso a internet de banda larga.
Resquícios
neoliberais
Convenhamos,
não é pedir demais. Ainda mais de uma aliança governamental
capitaneada por um partido que se soergueu e, em suas primeiras
décadas de vida, ganhou projeção nacional empunhando bandeiras bem
semelhantes a estas. O problema é que o mesmo governo que, em nome
do economicismo que a tudo se sobrepõe, aceitou, após muita
relutância, contrariar dogmas econômicos neoliberais como a
independência do Banco Central, os juros altos e, ultimamente - aleluia! -, até o superávit primário, tem se recusado, fora do
âmbito da economia, a promover um aggionarmento das
ideologias orientadoras das políticas culturais e comunicacionais
para fora do âmbito do neoliberalismo.
Destarte,
tanto a política de produção cultural do país continua atrelada a
um modelo de financiamento via renúncia de recursos fiscais a qual,
na prática, coloca nas mãos dos diretores de marketing de empresas
privadas o direito de determinar o que será e o que não será
produzido – e, assim, ditar os rumos de nossa cultura -, quanto a
manutenção de verbas em meia dúzia de corporações midiáticas
continua sendo sustentada pela passividade de um governo que se
resigna a obedecer aos critérios ditados pelo conceito de "mídia
técnica", corroborando, na prática, a premissa preconceituosa e intrinsecamente neoliberal de que o Estado deve se limitar à função reguladora em tais áreas
– e que assumir uma posição pró-ativa e tomar para si a função
de determinar os rumos culturais e comunicacionais do país seria
incorrer em "stalinismo cultural". Com uma centro-esquerda
dessas, quem precisa de direita?
Danos ao país
Os
maiores danos causados pela estratégia de preservação da
popularidade presidencial a qualquer custo se fazem sentir é no
âmbito do país. Se a década de administração federal petista
lega ao Brasil um grande avanço em termos de combate à pobreza,
inclusão social e reconfiguração socioeconômica dos estratos
populacionais - além de um cenário futuro favorável à Educação,
destinatária dos lucros futuros do Pré-Sal -, mostra-se
problemática sua contribuição no âmbito do aperfeiçoamento
institucional da democracia brasileira. Em relação a este, não
apenas não se empenha em uma reforma política que enfrentasse de
frente as vicissitudes do sistema – preferindo, ao contrário,
aderir ao toma-lá-dá-cá do jogo partidário e, volta e meia, vendo-se envolvido em denúncias de corrupção e de ilegalidades -, mas,
como já visto, se recusa a assumir a sua responsabilidade no
processo de promoção da democratização da mídia - plutocratizada
sob o comando de meia dúzia de famílias -, e, em decorrência, de
criação de mecanismos que impeçam que ela siga difamando
reputações, difundindo falsas acusações e fabricando escândalos
por motivações político-partidárias que não coadunam nem com a
ética pública nem com os princípios básicos do exercício do
jornalismo.
Em
um momento em que tanto países de democracia consolidada, como a
Inglaterra, quanto alguns de nossos vizinhos sul-americanos, cuja
democracia refloresceu após períodos ditatoriais, mostram-se
cientes da necessidade de legislar sobre os limites éticos da
mídia, a negligência de tal demanda no Brasil, em nome da
manutenção da popularidade presidencial, representa um atraso
institucional e uma ameaça permanente ao avanço da democracia no
país.