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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Dilma e o Irã

O país que Dilma Rousseff assumirá em 1º. de janeiro ocupa uma posição no mundo e tem uma relevância estratégica para a geopolítica global muito diferentes das que ostentava quando o atual presidente tomou posse, oito anos atrás.

Fatores externos - como a intensidade de uma crise financeira gerada no coração do “mundo desenvolvido” – e internos – como a descoberta de enormes reservas de petróleo em solo brasileiro – contribuem para essa nova configuração, mas o fator ativo que a moldou foi a corajosa política externa do governo Lula. Embora caracteristicamente positiva, ela trará em seu bojo grandes desafios para a presidenta eleita.


O legado de Lula
Como reconhecem as principais publicações e autoridades internacionais, uma das principais novidades trazidas pela Presidência de Lula deu-se no âmbito das relações exteriores. Tentativas tímidas de diversificar a política internacional do país para além da órbita norte-americana haviam sido feitas, amiúde, anteriormente – como na aproximação do governo Getúlio Vargas com o nazifascismo ítalo-germânico nos anos 30 ou no acordo nuclear com a Alemanha promovido por Geisel quatro décadas depois -, mas, além de episódicas e pouco efetivas, não se comparam à verdadeira reestruturação estratégica da diplomacia promovida pelo governo que ora se encerra.

Pois, ao recusar o Alca e suas condicionantes limitadoras e reforçar tanto a orientação Sul-Sul das alianças internacionais do país quanto a aproximação com a China e com a Rússia, o atual governo, além de resguardar o Brasil das piores conseqüências da crise econômica originada nos EUA (as quais o México ora amarga com graves efeitos sociais), estabeleceu um parâmetro e um norte para a ação diplomática, os quais, tudo indica, devem ser seguidos e aprofundados pela presidência Dilma.


Tricky questions
A atual configuração, embora mais condizente com um quadro internacional no qual novos atores assomam à cena principal, fazendo com que os EUA percam o protagonismo exclusivo (o que não significa necessariamente o fim do império norte-americano, como alguns precipitadamente apregoam), não deixa de apresentar contradições e situações complicadas, tricky, que não se resolvem através de binarismos definitivos, apoiar ou rejeitar, aliado ou inimigo.

O fato de não restarem dúvidas de que nossa velha mídia adota, rotineiramente, dois pesos e duas medidas para examinar tais contradições – enfatizando o desrespeito pelos direitos humanos no Irã mas fechando os olhos para o massacre israelense contra os palestinos, ou denunciando as prisões arbitrárias promovidas pelo regime cubano enquanto finge esquecer de Guantánamo -, embora reprovável como prática jornalística, não torna o cenário menos contraditório ou os problemas menos reais.

Não é de bom tom, entre setores da esquerda e da militância virtual, lembrar isso, mas a verdade se impõe - e o fato de o Irã, com sua milenar e exuberante herança estético-cultural de ex-Império da Pérsia, ter se tornado presa do autoritarismo religioso mais retrógrado em grande parte graças às barbeiragens interesseiras dos EUA via CIA (notadamente desde a deposição de Mossadegh em 1953), não obstante lamentável, não torna o atual regime dos aiatolás mais palatável.

Pois é simplesmente inaceitável que, em pleno século XXI, mulheres e homossexuais sejam não só são tratados como cidadãos de segunda classe, mas eventualmente submetidos a castigos e penas bárbaros – incluindo chicotadas e morte por apedrejamento. Os Direitos Humanos, os quais a humanidade levou séculos para consagrar na letra da lei, se sobrepõem, axiologicamente, a interesses político-ideológicos e ao anti-americanismo.


Nova diplomacia
A presidenta Dilma já deixou claro, em entrevista ao Washington Post, ser enfaticamente contra as formas repressivas adotadas atualmente no Irã:

“Eu não endosso o apedrejamento. Eu não concordo com práticas que possuem características medievais [quando se trata de] mulheres. Não há nuances; não faço concessões nesse assunto”.
Embora ressaltando a importância de atuar para a construção da paz no Oriente Médio (e criticando abertamente o belicismo norte-americano), Dilma foi além, divergindo do atual governo em relação ao Irã e demonstrando que atuará de outra forma:

“Eu me sentiria desconfortável, como mulher eleita Presidente, não dizendo nada contra o apedrejamento. Minha posição não vai mudar quando eu assumir o cargo. Eu não concordo com a forma em que o Brasil votou [se abstendo de condenar o Irã na ONU, por violação dos direitos humanos]”.
Ainda assim, e levando em conta outras declarações da presidenta eleita em relação ao tema, não parece crível – nem desejável – que a posição de Dilma resulte em uma reorientação substancial dos rumos da política externa no atual governo, mas em um ajuste fino de sintonia, o qual, se bem executado, tende a consolidar a autonomia das relações exteriores do país em relação aos EUA e a melhorar ainda mais a imagem internacional do governo brasileiro – notadamente em influentes setores do ativismo europeu -, recolocando no âmago da discussão a centralidade da questão de gêneros e do respeito aos Direitos Humanos no mundo contemporâneo.


(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Governo Dilma: o machismo como arma da mídia

Um dos principais desafios do governo Dilma Rousseff será resistir à artilharia de preconceitos machistas que, com certeza e de forma intermitente, a velha mídia disparará contra a primeira Presidenta eleita do país.

Há dois exemplos próximos que nos permitem dar como certa a adoção de tal estratégia para o jogo de derruba-presidente rotineiramente adotado por nossa partidarizada imprensa: o modo como a própria Dilma foi tratada no período eleitoral (com direito até a um texto tragicômico, de tonalidades lombrosianas, de uma colunista de Época) e, como previu Rodrigo Vianna, o “machismo macabro” que vem sendo praticado pelos jornais argentinos contra Cristina Kichner, notadamente após a morte de seu marido Nestor.

Nesse sentido – e sem entrar no mérito de quem tem ou não razão na briga – é notório que o acirramento da oposição, a níveis aparentemente irreconciliáveis, entre a chamada blogosfera progressista e a blogosfera feminista atende, em última análise, aos interesses da mídia golpista e da direita.

Esta, convém sempre lembrar, ao protagonizar uma das campanhas eleitorais mais baixas de nossa história não desagradou apenas, por razões óbvias, a “blogosfera progressista”, mas, ao não demonstrar o mínimo pudor em apelar para a mistificação religiosa do aborto negligenciou a discussão efetiva de um tema central do feminismo contemporâneo.

Ainda que o tom dos presentes enfrentamentos de parte a parte desautorize, no curto prazo, o vislumbre de uma paz efetiva e da união entre esses setores altamente relevantes da blogosfera, não se pode deixar de apontar que a cisão entre eles tende a ser particularmente deletéria neste momento, pois a batalha pelos corações e mentes da arena pública tende a ser ainda mais intensa no governo Dilma do que no de seu predecessor - até mesmo pela urgência que têm os setores conservadores de desestabilizar o país e evitar o eventual retorno de Lula em 2014.

Em termos institucionais, espera-se que a competente e antenada Helena Chagas à frente da Secretaria de Comunicação seja capaz de interagir melhor com a opinião pública e tornar mais efetiva a difusão das posições governistas, em comparação com o governo anterior.

Mas no âmbito da arena virtual - que tende a se expandir aceleradamente nos próximos anos, com a difusão da banda larga - a busca da convergência e dos pontos em comum entre a blogosfera feminista e os chamados "progressistas", respeitadas as diferenças de visão e de estratégias de ação, seria altamente desejável para elevar o nível das discussões e evitar que confluência entre questões de gênero e política, que deve marcar a proxima Presidência, fique à mercê das manipulações machistas da velha mídia - e da direita à qual ora serve.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O Bem-Amado e o ativismo político-cultural

A adaptação de O Bem-Amado por Guel Arraes não decepciona apenas pelo roteiro frouxo, repetitivo, por atuações demasiado histriônicas e pela tentativa de inserir a narrativa em um contexto histórico inverossímil, mas, sobretudo, por distorçer gravemente a criação de Dias Gomes, ao negligenciar um traço distintivo da obra do dramaturgo baiano: a crítica político-ideológica consistente.

Marco Nanini, na pele do “coronel” Odorico Paraguaçu, e Tonico Pereira, personificando o populista de esquerda Vladimir, substituem o que poderia ser um duelo entre dois grandes atores por um torneio de quem grita mais alto. Às lúbricas saracotices das irmãs Cajazeiras com Odorico é dispensado um tom de chanchada, o qual, somado à superficialidade dos jogos eróticos pudicos, tende a cansar pela repetição. O casal central da trama, formado pelo jornalista Neco Pedreira (Caio Blat) e pela filha de Odorico, Violeta (Maria Flor), não bastasse a chatice de suas coqueterias calienta huevos, é fotografado com uma luz que acentua os tons brancos, dando a suas cenas idílicas a aparência de um comercial de margarina.

Um dos poucos personagens que se salva é o soturno e árido Zeca Diabo de José Wilker: sem chegar a ser, de forma alguma, melhor do que a versão brejeira do personagem quando na pele de Lima Duarte, ao menos é inovador. Já o Dirceu Borboleta de Matheus Nachtergaele é talvez o pior momento da carreira desse ator fenomenal – ainda mais para os que guardam memória da impagável personificação do secretário de Odorico por Emiliano Queiroz, com direito a gagueira e a ar apalermado.

A trilha sonora de Caetano Veloso & cia. é, para dizer o mínimo, preguiçosa – e a canção-tema, dissonante ao extremo, está no rol das mais pobres contribuições do baiano ao cinema. Para compeltar, em termos de tecnologia sonora o filme regride algumas décadas, a uma era pré-desenho de som: com frequência música e falas se contrapõem, indistinguíveis, não há nivelamento máximo ou preenchimento mínimo – de forma que, enquanto os berros de Nanini ardem nos tímpanos, os sussurros de José Wilker são eventualmente inaudíveis -; há ruídos e efeitos em níveis desiguais e às vezes inverossímeis: por vezes é como se estivéssemos ante um daqueles filmes do Jabor dos anos 70...

Salva-se uma direção de arte cuidadosa, com um quê de cinema malasiano nos tons de verde e vermelho e no uso de cortinas à guisa de molduras, resultando em belos interiores para uma Sucupira praiana e em colonial baiano. Mas mesmo nesses ambientes predomina uma certa pasteurização inerente às produções da Globo Filmes, dadas sua modorra narrativa característica, em allegro ma non troppo, e sua linguagem cinematográfica quadrada, mais previsível do que a de uma novela das oito.

Mas tais problemas não são o pior: ao igualar os dois políticos rivais encarnados por Nanini e Tonico Pereira, caracterizando ambos como manipuladores corruptos e velhacos, o filme substitui a crítica mordaz e matizada que o original de Dias Gomes fazia aos dois espectros político-ideológicos – aos quais o autor sobrepunha de maneira clara uma teleologia de valores republicanos, ausente no filme - por um discurso niilista, de descrença na política, de “políticos são todos iguais e não prestam” que é o que há de mais contraproducente para o avanço da democracia no Brasil.


Do CPC para a TV
A geração de Dias Gomes (e de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha) tornou-se exemplar em termos de atuação política no campo cultural. Tendo seu raio de ação dramaticamente reduzido pela censura militar e pelo AI-5, optou por agir nos interstícios da mídia corporativa (leia-se Rede Globo), apostando num reformismo de longo prazo em oposição à inviabilizada revolução.

Tal estratégia acabou por levar à elevação do nível da dramaturgia televisiva e à introdução de temáticas que esgarçavam ao máximo a tolerância, superando em muito os limites que o poder militar e a igreja achavam aceitáveis. Destarte, a história da dramaturgia televisiva brasileira nos anos 70, início dos 80, é de uma dupla queda de braço: no interior da emissora, entre autores engajados e intelectualmente dotados e o sentido corporativo de auto-preservação de seus executivos; nos corredores governistas, entre os primeiros e as instituições religiosas e militares – notadamente a Censura.

O resultado de tais embates, embora inescapavelmente oscilante e imprevisível - muitas vezes negativo - foi mais de uma década de intensa dilatação dos padrões morais e da incisividade da crítica política em plena ditadura. Se, como sugere Roberto Shwarz, o interregno 1964-1967, imediato pós-golpe militar, é, paradoxalmente, marcado pela “hegemonia cultural da esquerda” no campo cultural, os anos de chumbo, ao menos na longa distensão do governo Geisel em diante, marcam um período único na história da TV brasileira, em que produtos como as novelas Gabriela, Saramandaia e O Bem-Amado e séries como Plantão de Polícia, Carga Pesada, Ciranda,Cirandinha e a proibida Amizade Colorida não subestimavam a inteligência do espectador ao mesmo tempo em que esgarçavam os então estreitos limites do permissivo e da representação político-social.

Face à banalidade e ao bom-mocismo que, no último quarto de século, assomou à teledramaturgia global, é difícil acreditar que emissora protagonizou tais avanços, mas ela o fez – e, em grande parte, como resultado de uma ação político-cultural deliberada de agentes culturais egressos dos Centro Populares de Cultura da Une, como os supracitados.

Eu tinha 6 anos quando a novela O Bem-Amado estreou, em 1973, e não me lembro de quase nada (a não ser o que vi depois, em trechos reprisados). Mas recordo perfeitamente da série semanal homônima, que foi ao ar entre 1980 e 1984, com praticamente o mesmo elenco da novela: Paulo Gracindo na performance de sua vida como o prefeito Odorico Paraguaçu, Lima Duarte como um hilário Zeca Diabo, o ator único que é Emiliano Queiroz como o estabanado Dirceu Borboleta, Ida Gomes, Dorinha Duval e a adorável Dirce Migliaccio como as irmãs cajazeiras, o bilioso oposicionista personificado com calculada imperfeição por Lutero Luiz, além de Carlos Eduardo Dolabella como o jornalista escolado e a gostossíssima Fátima Freire como a repórter novata e indignada (suas coxas cruzadas em um episódio em que Zeca Diabo a atacava em um cinema iluminaram meus, como diria Manuel Bandeira, alumbramentos pré-adolescentes).

Cada episódio, baseado nos pequenos contos de Dias Gomes, constituía um rico olhar sociológico sobre os costumes e as relações – sexuais, comerciais, políticas – características do modo de ser do Brasil no período, endereçado principal mas não exclusivamente aos coronéis regionais apoiados pela ditadura, e pleno de crítica bem-humorada e picardia. Para completar, havia a deliciosa e marcante trilha sonora de Toquinho e Vinicius de Moraes. Poucas vezes a televisão foi tão inteligente – e como iguais concebeu e tratou seus telespectadores.

Trata-se, sem sombra de dúvida, de um dos melhores produtos que a TV brasileira já levou ao ar, com um amálgama perfeito entre dramaturgia, humor e crítica política.



Ativismo e blogosfera

Mas o que é importante assinalar, no âmbito deste post, é que o fenômeno O Bem-Amado não constitui uma mera ocorrência histórica, perdida no tempo, mas um exemplo que suscita importantes reflexões sobre ativismo político-cultural e mídia corporativa. E de que forma isso nos diz respeito atualmente? De muitas, creio eu, como pretendo debater nos próximos parágrafos.

Vivemos, atualmente, com o advento da web 2.0 e do admirável mundo novo digital, uma era de profunda crise da mídia corporativa em geral – no que concerne a direitos autorais e de propriedade, controle sobre a veiculação de produtos audiovisuais, porcentagem de ocupação de mercado, mudança de suporte tecnológico, etc. As gravadoras e a imprensa são os dois exemplos mais gritantes, mas de forma alguma os únicos.

No Brasil, particularmente, esse crise estrutural é agravada – na mídia jornalística em especial – por uma questão conteudística: o engajamento político-ideológico de publicações como Veja e Folha de S. Paulo ou dos jornais, programas de rádio e de TV da Rede Globo de forma geral, ao atentar contra pressupostos éticos fundamentais do jornalismo, suscitou a desconfiança e a descrença dos segmentos mais bem-informadas do público.

Em decorrência desse quadro - e de forma mais intensa do que vem acontecendo em outros países -, a ação político-cultural na blogosfera e nas redes sociais, no Brasil, tem sido construída, em larga medida, em oposição a uma mídia estruturalmente em crise e desacreditada – mas, no que concerne particularmente à TV Globo, ainda capaz de uma penetração tentacular em todo o país impensável para qualquer outra modalidade comunicacional.

Em virtude da persistência dessa audiência medida em milhões – em oposição à difusão atomizada e de outra ordem de grandeza, consideravelmente menor, da blogosfera e que tais – é que se recoloca, em um cenário renovado, a questão enfrentada pela geração de Dias Gomes: ignorar a mídia corporativa e combatê-la através de uma guerrilha político-cultural (antes via espetáculos de rua, ora via internet) ou lutar em seu interior pela difusão de contra-discursos que contrariem a hegemonia conservadora/neoliberal?

Não é uma questão fácil de ser respondida, mas, ainda que as brechas das corporações estejam muito mais fechadas aos discursos dissonantes do que no imediato pós-1968, tampouco pode ser simplesmente descartada, como vários blogueiros fazem com desdém. Toda uma corrente de pensadores crê estarmos atravessando uma primavera da comunicação digital, a qual, segundo eles, tende, a médio prazo, a ser absorvida e controlada pelo grande capital via corporações. Esta seria só uma das razões para a manutenção na crença da possibilidade de se penetrar nas estruturas e modificá-las a partir de dentro.

(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Oportunismo e hipocrisia: o aumento dos parlamentares

O aumento de 62% que os parlamentares federais concederam a si mesmos, elevando seus salários para R$26,7 mil, tem provocado justa revolta na sociedade, não só devido aos números envolvidos, mas ao oportunismo da medida.

Soma-se a isso o fato de o reajuste beneficiar atores políticos que notoriamente trabalham pouco e desfrutam de um sem-número de regalias, enquanto, sempre sujeitos a contingências orçamentárias, os salários dos cidadãos comuns são reajustados a conta-gotas, com aumentos reais que mal cobrem o aumento do custo de vida.


Burocracia e partidos
É fato que a alta burocracia de um país deve ser remunerada de acordo - não só para desestimular a corrupção, mas como forma de atrair os melhores e mais preparados quadros. Porém tal constatação não justifica o caso em questão, e por duas razões.

Primeiro por uma peculiaridade preocupante da democracia brasileira: o custo de eleição de cada parlamentar faz não apenas que a atuação de muitos deles esteja diretamente atrelada aos grupos econômicos que financiam suas campanhas, mas que se mostrem por demais suscetíveis à atuação dos lobbies que agem no Congresso, com tudo que isso implica em corrupção potencial (a qual, por advir da esfera privada, a mídia faz vista grossa).

Segundo, porque tal aumento salarial, referente a servidores públicos e incidindo sobre o orçamento federal, teria obrigatoriamente de ser previamente discutido pela sociedade.


Oportunismo e hipocrisia
Mas nada disso foi levado em conta pela maioria de nossos parlamentares, os quais, como convêm aos dissimuladores, agem ao apagar das luzes do mandato e do ano - quando as atenções do público estão, em sua maioria, voltadas ao hedonismo consumista e ébrio das festas de final de ano.

Não se justifica, no entanto, o esforço da mídia e de setores da internet para debitar o aumento dos parlamentares exclusivamente na conta dos partidos governistas – leia-se PMDB e, sobretudo, PT. Se estes têm, evidentemente, a sua (grande) parcela de culpa - agravada, no caso do Partido dos Trabalhadores, por contrariar a sua posição histórica quanto à questão -, ela deve ser igualmente atribuída ao PSDB, DEM e demais partidos de oposição, que também votaram a favor da medida – com o agravante que a adesão ao mega-aumento contraria de maneira frontal o discurso moralista e “ético” do qual prioritária e rotineiramente se valem para fazer oposição. Não há santos nessa história.

O PSOL foi o único partido a votar contra a medida, acompanhado por parlamentares avulsos de outros partidos, totalizando os 7% de rejeição ao aumento, contra 93% a favor. Mas ninguém abdicou dos vencimentos extras. Ou seja: criticam uma medida impopular com a certeza de que esta seria aprovada por seus pares, saem bem na foto, mas na verdade desfrutam, do mesmo jeito, do aumento imoral.


Ameaças à democracia
Entretanto, o fato de o aumento ser indecente e abusivo não justifica, porém, a campanha que, deflagrada por um dublê de humorista e garoto-propaganda do DEM, se espalha por setores da internet, clamando para que se ponha fogo no Congresso. Trata-se de uma atitude perigosamente irresponsável, que atenta contra os valores da democracia.

Seria, a meu ver, desejável que o povo saísse de seu imobilismo bovino e se mobilizasse contra esse aumento salarial e o que ele significa – mas que o fizesse visando ao aprimoramento institucional da democracia brasileira. Botar fogo em congresso é escancarar a avenida política para o autoritarismo e a corrupção às escuras que promove.

O caminho para reverter os ataques acintosos do Legislativo, do Judiciário e do Executivo ao avanço republicano da democracia no Brasil não comporta atalhos. Ele só se dará através da participação ativa da sociedade na política, em época de eleição ou não. Atitudes irracionais (como defender a destruição do Congresso) ou passivas (como negar a política e votar nulo) só facilitam a ação do que há de mais nocivo e deletério na política nacional.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O supervalorizado "A Rede Social"

Desatento ao lançamento do novo filme de meu ídolo Woody Allen e fisgado pela intensa publicidade do filme, fui ao cinema para ver A Rede Social. Decepção.

O filme tem uma das aberturas mais chatas da história do cinema, um longo e palavroso diálogo, num pub com música alta, entre o universitário e futuro fundador do Facebook Mark Zuckerberg e a garota de quem – como o filme tenta nos fazer crer - gosta. A função desses torturantes minutos é abrir uma brecha, ao final, para o resgate sentimentalóide do protagonista. Tal operação soa particularmente deslocada em um filme que se gaba de ser sóbrio e "profundo" (mas acaba por confirmar a boutade de Linda Williams segundo a qual “Todo filme norte-americano é melodramático”).

Como se sabe, a trama conta como em quatro anos, Zuckerberg, um (com o perdão pelo pleonasmo) geek antisocial que, em pleno inverno, andava de chinelo Rider e meias no campus de Harvard, se torna o mais jovem bilionário da história mundial, no bojo da criação do site Facebook e da disseminação do conceito de rede social na internet. Mas o filme dirigido pelo classudo David Fynch - que tem no currículo filmes cultuados como Clube da Luta, Seven e Zodíaco - está longe de oferecer a essa fantástica estória um tratamento à altura.

Sempre arrastada, a narrativa se divide em dois tempos fílmicos: no primeiro é restituído o processo inicial de concepção, lançamento e expansão do Facebook – para o qual colaboram, inicialmente, ainda em Harvard, o brasileiro de origem judaica Eduardo Saverin (Andrew Garfield) e, posteriormente, na Califórnia, o rival deste, Sean Parker (Justin Timberlake), um dos fundadores do Napster e o um tanto caricato vilão do filme.

No segundo pólo da trama, passado em 2007, são reencenadas, com licenças dramáticas, os processos judiciais movidos pelo preterido Eduardo e pelos gêmeos aristocráticos (e remadores olímpicos pelos EUA) Winklevoss, que teriam, segundo eles, criado o conceito que levou ao Facebook . Diálogos em torno de uma mesa, mediados por advogados. Very boring.

O filme faz uso de elementos propriamente cinematográficos para distinguir passado e “presente”: no primeiro prevalecem uma direção de arte carregada, detalhista, e tons amarelados, marrons e verdes,”esquentados” e iluminados de forma pontual pela direção de fotografia; já os debates de 2007 se dão no ambiente clean de um escritório de advogacia, com a predominância do azul escuro, do metálico e do marrom-madeira, iluminados de forma fria e com pouca textura.

Onipresente, o único quesito que realmente se salva em A Rede Social é o desenho de som, auxilado por uma ótima trilha musical, a cargo de Trent Reznor e Atticus Ross. Toda a narrativa é perpassada por uma vibração sonora pulsante, meio drum’n’bass e algo rascante, com distorções “sujas” – como na canção “Even though” com Norah Jones ou no álbum Homogenic, de Bjork. Isso cria uma atmosfera tensa e, paradoxal e eventualmente, uma sensação de relaxamento e fruição - ou seja, é a cara desta década. Mas, afinal de contas, desenho de som é um quesito cultuado apenas por iniciados ou por acadêmicos que se dedicam ao estudo do som no cinema.

Naturalmente, não é tal "detalhe" que tem sido vendido como o grande atrativo do filme, mas sua sobriedade, sua alegada recusa às fórmulas fáceis de Hollywood em prol da densidade dramática e da profundidade psicológica, seu casting que recusa o star system - como se utilizar-se de atores pouco conhecidos, por si, fosse sinal de qualidade. Porém, comparado ao cinema de arte europeu ou mesmo ao novo cinema argentino, a profundidade psicológica dos personagens de A Rede Social é rasa como um pires.

Essa alegada recusa dos cânones hollywoodianos, somada aos tiques modernóides e açulada por um marketing onipresente, tem se mostrado bem-sucedida em, ao mesmo tempo, dotar o filme de uma aura de grande arte e garantir seu sucesso. A Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA acaba de encher A Rede Social de prêmios, incluindo melhor filme, diretor, roteiro adaptado (do livro The Accidental Billionaires, de Bem Mezrich) e, acreditem, ator para Jesse Eisenberg no papel do fundador do Facebook – premiação esta que é, no mínimo, uma idiossincrasia: a atuação dele se limita a fazer uma mesma expressão de nerd enjoado o filme todo, como se o diretor tivesse se limitado a uma única ordem: - “Jesse, faça cara de bunda!”.

Na vida real, Zuckenberg (foto) declarou que o filme está longe de retratá-lo com fidelidade. O pífio resultado ajuda a pensar que talvez ele esteja com a razão.

(Imagens retiradas, respectivamente, daqui, dali e dacolá)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Alemão: a panacéia ilusória

O Brasil e sua mídia vivem um daqueles momentos de hipnose coletiva em que a razão dá lugar a sentimentos longamente represados e a catarse se dá nos dedos engatilhados do Exército de Libertação Nacional que ora ocupa o Complexo do Alemão.

Trata-se de um filme já visto e seu final, com a continuação de um estado de coisas estrutural, que não se restringe à “comunidade” x ou ao morro y e portanto não pode ser debelado com a ocupação de um desses lugares, é por demais conhecido. Ainda assim, como convém ao totalitarismo das turbas, que não suportam o contraditório ou o dissonante, aos que ousam desvelar a falsa panacéia cabe o rótulo de defensor de traficantes ou a indefectível acusação de apologia dos “direitos humanos de bandidos”. Nada de novo sob o sol.

Dessa fúria vingativa de “cidadãos inteiramente loucos, com carradas de razão” brota a disposição risonha – mais um “silêncio sorridente” – ante a suspensão temporária dos direitos humanos – para os pobres, como sempre. E exultam ante a “conquista” do Alemão como se da Normandia se tratasse, mas se mantêm calados frente às denúncias cada vez mais frequentes de violência e desmandos policiais contra aqueles cujo único crime é morar, com todo o conforto, nas faixas de Gaza fluminenses: "pobres são como podres".


Política e mídia
A essa visão "customizada" dos direitos humanos, variável conforme estrato social e CEP, acrescenta-se, como hoje em dia não poderia deixar de ser, uma pitada de maniqueísmo político, em que os que ousam criticar a violência policial ou a inutilidade da operação a médio prazo são colocados no index como inimigos da sacrossanta tríade UPP-Sérgio Cabral-Lula.

Nesse cenário, é confortador saber que setores da própria Justiça têm vindo a público protestar contra a violação sistemática da lei que, tal como perpetrada, a invasão do Alemão representa. É o caso da Associação Juízes para a Democracia, que divulgou uma nota significativamente intitulada "À margem da lei todos são marginais".

À mídia (idealmente) caberia – convém sempre lembrar – trazer racionalidade ao debate. Mas, a imprensa que ora temos no Brasil trata-se, sabemos, de um caso perdido. Aliás, o que havia para ser dito sobre seu comportamento no episódio o foi, com brilho, por Sylvia Moretzsohn, no Observatório da Imprensa – e, de qualquer forma, não são tais questões que queremos neste post debater, e sim os processos de manipulação ideológica que nos trouxeram a este estado de coisas.


A culpa do usuário
Um dos discursos mais bem-sucedidos em relação às drogas nos últimos tempos – encampado pela publicidade oficial do Ministério da Saúde durante o governo FHC – é o que afirma serem os usuários os culpados pela violência urbana, já que, com seu hedonismo aloprado, “financiam” o tráfico de drogas. Essa lenga-lenga “pegou”. Só ficou faltando explicar como é que cidades que têm um consumo de drogas per capita muito mais alto do que o Rio de Janeiro - como Londres, Nova Iorque ou mesmo Roma e Paris – não apresentam o cenário deflagrado da Cidade Maravilhosa.

Trata-se de uma amnésia conveniente, da qual a mídia se vale de forma recorrente quando se trata de questões sociais: levar tais fatores em conta significa atentar para o detalhe de que há um enorme contingente de miseráveis – um exército de reserva permanente - pronto para ser cooptado por qualquer migalha para atividades ilegais, sejam o tráfico de drogas, de arma, seqüestros, roubos e/ou que mais der na telha dos elias malucos da vida. - “É a economia, estúpido” -, já decretara um filósofo marqueteiro.

É claro que no mundo colorido das pollyannas tupiniquins não haveria consumo de drogas e, não havendo consumo de drogas, não haveria violência urbana. Só que no mundo real nem uma coisa nem outra vai acontecer. Primeiro, porque seres humanos comprovadamente tomam drogas ao menos desde o Antigo Egito e, ainda mais depois delas terem sido, a partir dos anos 60, incorporadas como elementos da vida contemporânea, não é agora, na sociedade da insatisfação administrada, que vão parar de tomá-las.

Segundo – e certamente mais grave -, porque mesmo na hipótese excêntrica de o sonho poliânico se realizar e ninguém mais fumar maconha ou cheirar cocaína, é pouco provável que o pessoal do tráfico, armado até os dentes, desista do comércio de entorpecentes e passe a ganhar a vida honestamente, vendendo maçãs-do-amor e algodão doce nas ensolaradas praças cariocas – aí é que vão barbarizar para valer, valendo-se de seu arsenal de fuzis e granadas.


Sem panacéias
Isso significa que se deve abdicar do combate ao tráfico de drogas? De forma alguma, pelo contrário. Só que esse é, inescapavelmente, um combate de longo prazo, que requer a combinação articulada e multitudinal de estratégias de conquista de território, de aumento da presença do Estado em áreas periféricas, de dissolução de redes e vínculos criminais, de combate à corrupção policial e de um encaminhamento mais maduro e contemporâneo - e menos moralista e irreal - à questão das drogas, que, no que concerne ao usuário, deve ser tratada como questão de saúde pública.

Mas ilude-se quem quer. A fé sobre-humana na invasão do Alemão como momento redentor da cidadania, não obstante patética, chega a ser comovente como manifestação de neurose coletiva. Porém, como apontou o impoluto Paulo Sérgio Pinheiro em artigo para colecionar, “A batalha no Alemão não vai vencer o crime organizado”. É uma pena. Mas para que isso ocorra é preciso que a razão se sobreponha ao fanatismo.


(Imagem retirada daqui)