A denúncia contra o
Estado brasileiro na Comissão de Direitos Humanos da OEA por
tratamento cruel e desumano dispensado às populações indígenas
passou virtualmente em branco na imprensa nacional.
Para além do
comportamento da imprensa em relação ao caso em questão, o que nos
interessa aqui examinar é como ela tem tratado – ou deixado de
tratar - as razões que sustentam a denúncia na OEA. Que vêm de
longa data e vão desde a violação impune das terras indígenas,
passam pela violência recorrente que não distingue homens, mulheres
e crianças, atingem a dramaticidade da mortandade infantil e dos
recordes de suicídio e culminam com o que não poucos especialistas
do tema qualificam como genocídio.
Informações
escondidas
A maioria dessas
denúncias sequer chega a ser noticiada pelas publicações de
alcance nacional, só vindo à tona graças à atividade jornalística
de sites como o do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e à
ação, na internet, de coletivos e cidadãos interessados na causa
indígena, os quais têm no trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros
de Castro uma de suas referências centrais.
Tal omissão midiática,
que confirma um histórico de desatenção para com a questão
indígena, vai na contramão do reconhecimento que, nas duas últimas
décadas, esta tem recebido internacionalmente, no bojo da ascensão
das reemergência das pautas ecológicas, da ascensão da biopolítica
e do advento dos Direitos Humanos de quarta geração.
Mortes e torturas
Tal omissão
jornalística é particularmente grave por se dar em um momento de
acirramento de tensões e conflitos. Pois, bem antes da denúncia à
OEA, os dois governos Dilma já vinham sendo sistematicamente
acusados de negligência e de violência contra os índios.
Em dezembro de 2012, a
Polícia Federal invadiu uma aldeia em Alta Floresta (MT) e matou
Adenílson Krixi Munduruku, ferindo gravemente outros dois índios e
sendo acusada, conforme noticiado pela imprensa alternativa, de
emprego excessivo e gratuito de violência.
Um ano e meio depois,
em Belo Monte, epicentro dos conflitos na Amazônia e obra-símbolo
do modelo desenvolvimentista arcaico, estilo “Brasil Grande” da
era petista, a Força Nacional foi acusada de atirar bombas e balas
de borracha contra os índios que protestavam, suscitando
investigação do Ministério Público Federal.
Choque assimétrico
No bojo e para além de
tais graves eventos, um conflito latente marca a relação dos
governos Dilma com a questão indígena, advindo da contraposição
entre a visão tecnocrata e antiecológica que vinha caracterizando o
modelo desenvolvimentista brasileiro pré-crise econômica - baseado
no consumismo e em megaobras energéticas -, e o perspectivismoameríndio que informa a concepção de mundo indígena, para quem a
preservação de suas terras e da fauna e flora circundantes
afiguram-se não só essenciais à própria sobrevivência (mesmo se
esta se der em diferentes graus de relação com o capitalismo
vigente), mas à sobrevivência do próprio mundo.
Uma versão seminal de
tal conflito estava, de certa forma, configurada já no embate
pré-presidencial petista que, em 2006, opôs a “gerentona” Dilma
e a “ecológica” Marina Silva. A escolha de Dilma como candidata
representou, em si, a vitória de tal visão ultrapragmática e
infesa a reivindicações de cunho ecológico (as quais são vistas
como meros empecilhos).
O desastre ambiental
que é Belo Monte e a pior política indigenista desde o período
militar derivam de tal processo, que vem se alastrando ao longo dos
dois mandatos da atual presidente e atingem o escárnio com a
nomeação para o ministério da Agricultura - na cota pessoal de
Dilma, e não por imposição da aliança - da ruralista Kátia Abreu
(PMDB/TO), apelidada de “Miss Motosserra” e contra quem pesam
acusações de trabalho escravo, crime ambiental e grilhagem de
terras. Não por acaso, tal nomeação foi interpreta por setores
indigenistas como uma senha ao ruralismo para a violação impune das
terras demarcadas.
Questão indígena,
eterna coadjuvante
Seria, no entanto,
inexato afirmar que a imprensa negligencia por completo a violência
relacionada aos povos indígenas. Ainda que com raridade, ela até
aparece, aqui e acolá, nas páginas das publicações nacionais: com
viés policial na cobertura dos conflitos de terra; nas projeções
econômicas sobre os fatores delimitantes para a expansão do
agronegócio; ou, por conta do alto índice de mortandade infantil e
de suicídios, como nota de rodapé de reportagens sobre saúde.
O problema, que deriva
diretamente da aliança cada vez mais forte entre as corporações de
mídia e o grande capital, é a ausência de cobertura sistemática,
a omissão ante a gravidade do drama humano e da violação de
direitos, e a manutenção da questão indígena em um terceiro plano
em termos de escala de valores editoriais - sobrepujada, em primeiro
lugar, pela prioridade aos desígnios do mercado financeiro; e, em
segundo, pelos ditames da supremacia econômica expansionista do
agronegócio.
Uma imprensa que
efetivamente cumprisse suas funções públicas haveria de fornecer a
seus leitores informações e análises que, cotejadas, permitissem
um melhor entendimento do necessário equilíbrio entre as demandas
comerciais e mercantis do agronegócio, a obrigatoriedade de respeito
aos direitos indígenas em sua plenitude, e a importância de que o
governo exerça com imparcialidade e determinação o seu papel de
mediador e de responsável pela obediência aos preceitos
constitucionais.
Respostas insuficientes
Evidentemente, não é
o que ocorre – muito pelo contrário – nem na imprensa, nem no
governo, como ficou patente, uma vez mais, no comportamento do
representante do governo brasileiro ante as graves acusações feitas
à OEA, as quais limitou-se a rebater com respostas protocolares e
lacunares, além de vagas promessas.
Em relação ao
jornalismo televisivo, a situação é ainda pior. Pois além do
misto de omissão e brevidade que também se verifica na cobertura
impressa, há casos de sistemática perseguição e tentativa de
criminalização dos povos indígenas, cujo exemplo maior – e mais
repugnante – é o telejornalismo da TV Bandeirantes, que oferece
uma cobertura desonesta e distorcida à incredulidade, tratando
sempre os índios como invasores e sanguinários e os grandes
latifundiários como vítimas. Execrável.
Hora decisiva
Se mantidos, os
interesses e omissões que regem o tratamento da questão indígena –
e sua cobertura pela imprensa - podem vir a ser decisivos em um
futuro muito próximo.
Pois estamos em um
momento em que algumas das piores previsões relativas à construção
da usina de Belo Monte começam a se confirmar – como a ausência
de meios de subsistência para os ex-ribeirinhos deslocados à força
para conjuntos habitacionais periféricos, longe do rio de onde
tiravam seu sustento. Com isso, cresce o receio pelo destino das três
tribos que sobrevivem às margens dos 100 quilômetros de rio que
deixarão de ser navegáveis e terão o volume de peixes
drasticamente reduzido.
Ainda mais ansiedade
desperta a possibilidade de que a PEC 215, que transfere da União
para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas – e
que já foi aprovada, por 27 a zero, pela Comissão Especial de
Demarcação de Terras Indígenas -, venha a ser em breve referendada
pelo Congresso. Dado o conservadorismo do atual parlamento, repleto
de deputados e senadores ruralistas ou com laços com o agronegócio,
afigura-se iminente tal propabilidade, que para lideranças indígenas
e especialistas equivaleria, na prática, à legalização de um
extermínio.
(Segunda versão de
texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa)
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