A
cobertura que os três grandes jornais do país dedicaram ao crime
ambiental da Samarco, cuja devastação teve início em um distrito
de Mariana e alastrou-se por centenas de quilômetros de Minas e do
Espírito Santo, assassinando o Rio Doce, marca um dos pontos mais
baixos da história da imprensa brasileira.
A
performance dos diários, de início meramente protocolar, com
informações insuficientes, em larga medida obtidas de fontes
governamentais ou privadas com interesse direto na minimação do
ecocídio e em sua não-caracterização como crime ambiental, só a
partir do terceiro ou quarto dia passou a ser menos relapsa (mas
ainda longe do aceitável).
Nome
aos bois
Além
disso, prolongou-se, na imprensa em geral, a insistência em
denominar o caso referindo-se a Mariana, cidade histórica onde o
rompimento da barragem se deu, e não a Samarco, a empresa mineradora cujo misto
de negligência, incompetência e ganância o provocou, distorção
de evidentes consequências ideológicas que só recentemente o
Estadão abandonou.
A
TV Globo protagonizou o mais explícito caso de violação da ética
jornalística na cobertura do caso, ao ter um de seus cinegrafistas
flagrado desligando a câmera quando um morador de Mariana passava a
elencar dados sobre a culpabilidade da Samarco. Além disso, a
revista Época, publicada pelo grupo Globo, trocou no último momento
a capa que daria sobre o caso da Samarco por outra sobre os atentados
em Paris – decisão que suscita polêmica, mas que sem dúvida revela ser falsa a alegação das
principais revistas semanais de que, na semana anterior, não
destacaram em capa a devastação ambiental que assolava Minas porque
não teria havido tempo hábil entre sua deflagração e o tempo necessário
à produção de capas.
Protagonismo das redes
Paradoxalmente,
o jornal O Globo foi o menos pior dos grandes “jornalões”, capaz
de ao menos levantar alguns aspectos relevantes em relação ao
evento, enquanto o Estadão e,
mais ainda, a Folha de
S. Paulo
praticaram um antijornalismo, que mal disfarçava o interesse em
esconder o tamanho dos danos e a culpabilidade da empresa, temas que
desde os primeiros momentos
eram dimensionados e repercutidos com intensidade nas redes sociais.
Estas,
aliás, tornaram-se o principal meio de informação e análise
embasada sobre a catástrofe, dando de goleada na na mídia. No
Facebook, sobretudo, cientistas anteciparam, com alto grau
de acerto, a abrangência do desastre e seus efeitos sobre a população; advogados e procuradores desvelaram com
precisão tanto a estratégia de minimação de danos dos advogados
da empresa quanto o teor e o timing da ação do Ministério Público;
ambientalistas predisseram o processo de “cimentação” do leito
do Rio Doce e a mortandade de sua biosfera; biólogos marinhos
forneceram projeções baseadas em modelos científicos acerca dos
danos que a lama tóxica deverá causar ao chegar ao mar (afetando
por décadas nutrientes da cadeia alimentar de 10.00km2 do Atlântico
Sul e de três unidades de conservação marinha).
Tentativa de controle da informação
Também
a inacreditável defesa prévia que o governador Fernando Pimentel
(PT/MG) fez da mineradora Samarco e o fato de se dirigir à população
do interior das instalações da empresa - onde funcionou, longe das
vistas de moradores e da mídia, o Centro de Operações e Buscas
responsável pelo socorro - tiveram a gravidade de sua significação
analisadas com rigor, verve e com uma contundência que a imprensa
ficou devendo ao leitor.
Ainda
mais importante, merece ser destacado que, nas redes sociais, o drama
da destruição de vidas humanas, animais e ecossistemas foi
retratado direto da fonte, com expressão de subjetividade, protesto
e indignação (e não com a dramaticidade direcionada e lacrimosa da
cobertura à la TV Globo, em que o sofrimento das vítimas serve ao
sentimentalismo piedoso, e não ao questionamento de culpados e modos
de compensação).
Para
além da crise
É
evidente que, em meio a tal produção, difundiu-se muita boataria –
e algumas bolas foras - mas, por um lado, nas redes sociais, há de
se adotar critérios para selecionar perfis de especialistas e
pessoas criteriosas (reconhecê-las é mais fácil do que se pensa);
e, por outro, de se utilizar os meios que a própria internet oferece
para checar suas informações. O saldo, no caso em questão, foi
amplamente positivo.
Há
de se reconhecer, porém, que a imprensa não tem – nem deve ter -
a mesma velocidade ou o mesmo direito à proporção de erros das
redes sociais. Por outro lado, isso não pode servir de desculpa para
uma cobertura preguiçosa, omissa e não raro tendenciosa como a que,
com raríssimas exceções – como a coluna de Míriam Leitão, um
oásis de informação especializada –, fez do maior desastre
ambiental da história do país.
Sem desculpas
Sobretudo
porque, mesmo com as redações reduzidas e em plena crise do setor -
e respeitado o tempo de produção do jornalismo diário - os jornais
ainda têm recursos materiais, tecnológicos e humanos para produzir
matérias e análises informadas e diversificadas - inclusive com o
auxílio das novas tecnologias -, ainda mais sobre um evento que
acontece na própria região Sudeste.
Ao
falhar de forma flagrante em fornecer aos leitores um retrato
condizente de um crime ambiental de grandes proporções, que afeta
diretamente dois estados e centenas de milhares de pessoas, o
jornalismo não deixa apenas de corresponder, uma vez mais, ao
dístico de inspiração iluminista que clama para si, mas deixa a
impressão – justa ou não - de que sua dependência comercial do
grande capital, representado no caso pela joint venture internacional
Vale/BHP Billion, fala mais alto do que o compromisso cívico que,
com seu estímulo, alguns teimam em lhe atribuir.
Fatores
principais
Por
seu lado, embora a internet seja frequentemente acusada de ser um
meio permeado pelo radicalismo e pelo acirrado maniqueísmo político,
as redes sociais conseguiram – de uma maneira que a imprensa foi
incapaz - estabelecer, além da culpabilidade da Samarco, alguns aspectos importantes e contraditórios que
ensejaram e tiveram papel determinante para a tragédia da Samarco.
Tais como:
- As ligações da Vale e da Samarco com políticos de quase todos os partidos, para cujas campanhas deram volumosas contribuições, e o grau de indistinção entre público e privado que marca uma série de empreendimentos envolvendo as empresas, nos âmbitos estadual e federal;
- Os efeitos deletérios que a afoita privatização da Vale, em um cenário de desmonte do Estado e de ineficiência regulatória, legou ao processo, debitados na conta da presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP);
- O agravamento de tais deficiências em um modelo que, sem abrir mão da privatização, a combina contraditoriamente a uma política arcaica de desenvolvimento, em que as licenças ambientais não passam de empecilhos a ser “desenrolados” com a maior rapidez possível, características distintivas da administração petista que há 13 longos governa o Brasil – período mais do que suficiente para atenuar, ou mesmo reverter, o que rotula como “herança maldita” do governo anterior;
- A leniência na concessão de licenças ambientais e nas atividades de fiscalização e controle em âmbito estadual, irresponsabilidades divididas entre o tucano Aécio Neves (PSDB/MG) e o citado Pimentel.
A
tudo isso soma-se a atuação deplorável da presidente Dilma Russeff
(PT/RS) ante a tragédia, seu discurso titubeante, sua omissão no
envio de ajuda material e humana, sua inacreditavelmente
desrespeitosa demora de uma semana em visitar a região atingida,
conduta que foi retratada e analisada nas redes sociais com a devida
indignação – a qual a mídia, embora frequentemente acusada de
“golpista”, preferiu atenuar ou mesmo ignorar.
Arcaísmos
O
sofrível desempenho da imprensa na cobertura da tragédia de Mariana
preocupa e constrange, mas não surpreende. Assim como acontece com
editorias como Saúde ou Ciência, o tratamento da temática
ambiental tem sido marcado, há tempos, por deficiência e omissão.
Trata-se
de uma lacuna e um anacronismo cuja gravidade cresce em proporção à
importância que o ambientalismo recebe – ou deveria receber –
nas sociedades contemporâneas, numa dinâmica que determina se será
dificultada ou facilitada a ocorrência de tragédias ambientais
perfeitamente evitáveis - como a perpetrada pela Samarco.
(Imagem retirada daqui)
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