O sempre pertinente Altamiro Borges resume o descalabro em um belo post. Nos próximos parágrafos vamos aprofundar análises especialmente sobre a edição da Folha de São Paulo do dia seguinte ao gesto republicano de Joaquim Barbosa, edição esta também histórica, porém em sentido inverso, pois marca o momento em que o “jornalismo” praticado pelo diário atingiu, como um todo e em diversos quesitos, o ponto de escárnio.
Começa na capa, onde a foto de um sorridente Gilmar Mendes, ao lado de Michel Temer, encima, entre outras, a chamada da matéria intitulada: “Após discussão, presidente do STF nega crise institucional”. Se havia dúvidas quanto à posição que diário dos Frias assumiria, a capa fornece as pistas necessárias para dissipá-las.
Editorial tendencioso
Mas é o editorial intitulado “Altercação no STF” quem as dirime definitivamente. Eis a abertura: “O ministro Joaquim Barbosa excedeu-se na áspera discussão travada anteontem com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Não se justificam os argumentos "ad hominem" e a linguagem desabrida empregada (...)”. Ao contrário do que manda a norma da redação de editoriais, não há ponderação ou busca pelo equilíbrio argumentativo, analisando as razões e desrazões dos dois lados; a contextualização se resume à recriação manipulada da discussão, como se de um rompante de momento se tratasse, sem nenhuma alusão às atitudes pregressas de Mendes e ao ânimo do Judiciário e da opinião pública em relação a elas.
Após uma descrição um tanto minuciosa do diálogo que precedeu o momento mais crítico da discussão, o editorial prossegue: “Foi no ato seguinte, entretanto, que o ministro Barbosa abandonou a compostura e rompeu de vez o protocolo. Acusou Mendes de estar ‘destruindo a Justiça deste país’ e, num rompante descabido, afirmou que o presidente do tribunal não falava, ali, ‘com seus capangas de Mato Grosso’”. Ou seja, Barbosa, segundo a Folha, foi quem perdeu a compostura - e, de acordo com o editorial, por um motivo banal, já que o "objeto do debate" foi tão-somente "uma lei paraense".
Não deixa de ser curioso notar que em relação ao ponto que articulistas do Observatório da Imprensa que de forma alguma se caracterizam pelo radicalismo, como Carlos Brickman e Luciano Martins Costa, apontaram como a referência que mais deveria interessar à imprensa no episódio – os tais capangas matogrossenses – o editorial se limita a criticar Barbosa pelo “rompante descabido” de mencioná-lo, sem que o jornal demonstre nenhum espanto ou interesse em investigar a denúncia implícita.
Apesar de todos essas distorções, o que chama ainda mais a atenção no editorial são suas omissões: nenhuma palavra sobre o mal-estar na sociedade e no próprio ambiente jurídico causado por decisões anteriores de Mendes – notadamente o segundo habeas corpus a Daniel Dantas -, nem sobre sua exposição midiática, diretamente mencionada por Joaquim Barbosa durante a discussão, ao afirmar que o presidente do STF deveria sair às ruas (único trecho da discussão não reproduzido pelo editorial, numa clara manipulação para omitir tanto as razões pregressas que motivaram a discussão quanto os indícios sobre a posição da opinião pública). Depois disso, seria ingênuo imaginar que o jornal mencionasse uma palavra sobre as suspeitíssimas ligações trabalhistas entre seis dos juizes do STF e o instituto educacional de propriedade de Mendes. Se isso é jornalismo, eu sou o Pato Donald.
Estratégia anti-Barbosa se delineia
É importante prestar atenção à estratégia empregada pelo editorial, porque, ao que tudo indica, ela será repetida por outros veículos de mídia. Ela inclui o desprezo pela opinião pública, mas seu conceito-chave é a descontextualização, pois esvaziando o ato de Barbosa de qualquer motivação anterior que a justifique, o que se tem é um ministro do mais alto tribunal exaltado e muito nervoso em meio a um debate corriqueiro sobre questiúnculas jurídicas – quais mesmo? Acrescente-se o fator racial e o fato de o ministro ter sido indicado por Lula e o potencial de exploração sensacionalista do caso - contra o ministro - cresce consideravelmente.
Demonstrativo dessa estratégia, o caderno Brasil apresenta longa matéria, assinada por Andréa Michael e Felipe Seligman, que ao final alega que “A Folha apurou que a intenção do ministro era sinalizar para Mendes, publicamente, que não aceitava ser tratado como um subalterno”. Ou seja, desprezando todo um contexto muito mais amplo e de motivações e consequências muito mais sérias, tenta tornar pessoal a questão, pintando, ainda, o ministro Joaquim Barbosa como um complexado rancoroso motivado pelo ego ferido.
Cantanhêde se supera
Tentanto afetar isenção mas pontuando seu artigo de insinuações e maledicências, Eliane Cantanhêde produz um texto cujas manipulações só não se evidenciam para um leitor desfamiliarizado com o contexto do caso em questão. Ela parte de comparações entre Mendes e Barbosa, qualificando o primeiro, entre aspas, de “líder da oposição” e o segundo, idem, de o “da cota do Lula”, como se a atuação de Barbosa no caso do “mensalão” não esvaziasse de sentido ou ao menos relativizasse consideravelmente a acusação melíflua - e como se, apenas por ocuparem momentaneamente pólos antagônicos, se equivalessem em termos de projeção de mídia e poder e Barbosa não tenha sido, até o episódio da discussão no STF, apenas mais um dos sete ministros indicados ao STF pelo atual Presidente da República.
Em seguida, alegadamente vocalizando terceiros, exalta Mendes (que teria sido, segundo ele mesmo, primeiro aluno da classe) enquanto denigre Barbosa, tornando público a fofoca segundo a qual ele esteve “entre os últimos da turma” e que, sussurra-se “entre os gabinetes”, seria o “agente do MP” no Supremo. Para ela, Mendes defende “os clássicos do direito” e Barbosa, “uma certa popularização, em favor de uma ‘Justiça de resultados’”. Não é a simplificação grosseira e malandra - o clássico versus o populista, com toda a carga pejorativa que a denominação carrega - que acabou de cometer que a preocupa, mas o custo que ser “menos camarada com os poderosos [como, segundo ela, propõe Barbosa] poderia ter”. Não, você não leu errado, é isso mesmo, a preocupação é com o custo de a Justiça ser menos camarada com os poderosos...
Para encerrar, jornalista ciosa que é (cadê o acento de ironia?), reconhece que Mendes “é apontado como arrogante” e que se expõe demais na mídia, para então disparar, afirmativamente e sem atribuir as palavras a outrem: “Barbosa tem uma personalidade agressiva, a ponto de fazer inimigos entre seus pares”. Lá no finalzinho menciona o julgamento do "mensalão", mas só para, melíflua uma vez mais, se referir à troca de emails entre os juízes (tornada pública à época). Da atuação de Barbosa no caso, necas, mesmo porque tornaria insustentável parte de suas insinuações.
Sem os dois lados da notícia
Assinalando que pulo a coluna de Fernando Gabeira porque minha paciência com hipócritas encontra-se esgotada, resta o caderno Brasil, cuja cobertura do caso também prima por distorções. Continua a contrariar as normas do bom jornalismo – e do Manual de Redação – e ouve apenas um dos ministros (ganha uma conta no Opportunity quem adivinhar qual...). O único arremedo de contextualização que oferece é quanto à hiperexposição midiática de Mendes, criticada por um assessor do Planalto. Ouvir a opinião pública, nem pensar, mesmo porque corroboraria a afirmação de Luís Nassif quanto ao “descrédito dos jornalões” causado pela cobertura do affair Gilmar Mendes: “jamais vi um divórcio igual entre a linha dos jornais e o pensamento do leitor”.
No entanto, chama a atenção o seguinte trecho da matéria de Michael e Seligman anteriormente mencionada: “O presidente Lula também tentou minimizar o episódio ontem, mas deixou um recado aos magistrados: que não resolvam diferenças em público. ‘Creio que, quando nós temos determinadas funções, é importante que a gente diga tudo o que quiser nos autos do processo, e não fique dizendo pela imprensa. Mas esse é o pensamento de um leigo, não de um magistrado’”. Fica a dúvida: o recado foi “aos magistrados”, no plural, ou a um certo magistrado?
Merece alusão, também, pela ligação transversa e epifânica com o caso, que há, na edição eletrônica do jornal (na qual se baseiam todas as análises deste artigo), entre as matérias sobre a discussão no STF, uma que anuncia os resultados (sic) do relatório da “CPI dos Grampos”, que “livra Lacerda, Dantas e Protógenes”. Repare na ordem em que os nomes são apresentados: significativamente, o nome de Dantas aparece após o de Lacerda e antes do de Protógenes, e, mais importante, como se se tratasse de réus, todos eles.
Apesar de todos essas distorções, o que chama ainda mais a atenção no editorial são suas omissões: nenhuma palavra sobre o mal-estar na sociedade e no próprio ambiente jurídico causado por decisões anteriores de Mendes – notadamente o segundo habeas corpus a Daniel Dantas -, nem sobre sua exposição midiática, diretamente mencionada por Joaquim Barbosa durante a discussão, ao afirmar que o presidente do STF deveria sair às ruas (único trecho da discussão não reproduzido pelo editorial, numa clara manipulação para omitir tanto as razões pregressas que motivaram a discussão quanto os indícios sobre a posição da opinião pública). Depois disso, seria ingênuo imaginar que o jornal mencionasse uma palavra sobre as suspeitíssimas ligações trabalhistas entre seis dos juizes do STF e o instituto educacional de propriedade de Mendes. Se isso é jornalismo, eu sou o Pato Donald.
Estratégia anti-Barbosa se delineia
É importante prestar atenção à estratégia empregada pelo editorial, porque, ao que tudo indica, ela será repetida por outros veículos de mídia. Ela inclui o desprezo pela opinião pública, mas seu conceito-chave é a descontextualização, pois esvaziando o ato de Barbosa de qualquer motivação anterior que a justifique, o que se tem é um ministro do mais alto tribunal exaltado e muito nervoso em meio a um debate corriqueiro sobre questiúnculas jurídicas – quais mesmo? Acrescente-se o fator racial e o fato de o ministro ter sido indicado por Lula e o potencial de exploração sensacionalista do caso - contra o ministro - cresce consideravelmente.
Demonstrativo dessa estratégia, o caderno Brasil apresenta longa matéria, assinada por Andréa Michael e Felipe Seligman, que ao final alega que “A Folha apurou que a intenção do ministro era sinalizar para Mendes, publicamente, que não aceitava ser tratado como um subalterno”. Ou seja, desprezando todo um contexto muito mais amplo e de motivações e consequências muito mais sérias, tenta tornar pessoal a questão, pintando, ainda, o ministro Joaquim Barbosa como um complexado rancoroso motivado pelo ego ferido.
Cantanhêde se supera
Tentanto afetar isenção mas pontuando seu artigo de insinuações e maledicências, Eliane Cantanhêde produz um texto cujas manipulações só não se evidenciam para um leitor desfamiliarizado com o contexto do caso em questão. Ela parte de comparações entre Mendes e Barbosa, qualificando o primeiro, entre aspas, de “líder da oposição” e o segundo, idem, de o “da cota do Lula”, como se a atuação de Barbosa no caso do “mensalão” não esvaziasse de sentido ou ao menos relativizasse consideravelmente a acusação melíflua - e como se, apenas por ocuparem momentaneamente pólos antagônicos, se equivalessem em termos de projeção de mídia e poder e Barbosa não tenha sido, até o episódio da discussão no STF, apenas mais um dos sete ministros indicados ao STF pelo atual Presidente da República.
Em seguida, alegadamente vocalizando terceiros, exalta Mendes (que teria sido, segundo ele mesmo, primeiro aluno da classe) enquanto denigre Barbosa, tornando público a fofoca segundo a qual ele esteve “entre os últimos da turma” e que, sussurra-se “entre os gabinetes”, seria o “agente do MP” no Supremo. Para ela, Mendes defende “os clássicos do direito” e Barbosa, “uma certa popularização, em favor de uma ‘Justiça de resultados’”. Não é a simplificação grosseira e malandra - o clássico versus o populista, com toda a carga pejorativa que a denominação carrega - que acabou de cometer que a preocupa, mas o custo que ser “menos camarada com os poderosos [como, segundo ela, propõe Barbosa] poderia ter”. Não, você não leu errado, é isso mesmo, a preocupação é com o custo de a Justiça ser menos camarada com os poderosos...
Para encerrar, jornalista ciosa que é (cadê o acento de ironia?), reconhece que Mendes “é apontado como arrogante” e que se expõe demais na mídia, para então disparar, afirmativamente e sem atribuir as palavras a outrem: “Barbosa tem uma personalidade agressiva, a ponto de fazer inimigos entre seus pares”. Lá no finalzinho menciona o julgamento do "mensalão", mas só para, melíflua uma vez mais, se referir à troca de emails entre os juízes (tornada pública à época). Da atuação de Barbosa no caso, necas, mesmo porque tornaria insustentável parte de suas insinuações.
Sem os dois lados da notícia
Assinalando que pulo a coluna de Fernando Gabeira porque minha paciência com hipócritas encontra-se esgotada, resta o caderno Brasil, cuja cobertura do caso também prima por distorções. Continua a contrariar as normas do bom jornalismo – e do Manual de Redação – e ouve apenas um dos ministros (ganha uma conta no Opportunity quem adivinhar qual...). O único arremedo de contextualização que oferece é quanto à hiperexposição midiática de Mendes, criticada por um assessor do Planalto. Ouvir a opinião pública, nem pensar, mesmo porque corroboraria a afirmação de Luís Nassif quanto ao “descrédito dos jornalões” causado pela cobertura do affair Gilmar Mendes: “jamais vi um divórcio igual entre a linha dos jornais e o pensamento do leitor”.
No entanto, chama a atenção o seguinte trecho da matéria de Michael e Seligman anteriormente mencionada: “O presidente Lula também tentou minimizar o episódio ontem, mas deixou um recado aos magistrados: que não resolvam diferenças em público. ‘Creio que, quando nós temos determinadas funções, é importante que a gente diga tudo o que quiser nos autos do processo, e não fique dizendo pela imprensa. Mas esse é o pensamento de um leigo, não de um magistrado’”. Fica a dúvida: o recado foi “aos magistrados”, no plural, ou a um certo magistrado?
Merece alusão, também, pela ligação transversa e epifânica com o caso, que há, na edição eletrônica do jornal (na qual se baseiam todas as análises deste artigo), entre as matérias sobre a discussão no STF, uma que anuncia os resultados (sic) do relatório da “CPI dos Grampos”, que “livra Lacerda, Dantas e Protógenes”. Repare na ordem em que os nomes são apresentados: significativamente, o nome de Dantas aparece após o de Lacerda e antes do de Protógenes, e, mais importante, como se se tratasse de réus, todos eles.
Por fim, há um texto avulso de opinião do quase sempre comedido Frederico Vasconcelos que, mais uma vez equilibrado, distoaria totalmente da linha do jornal, não fosse o título que recebeu e que absolutamente não condiz com o conteúdo da análise: “Credibilidade versus populismo”. Você já adivinhou quem a pessoa responsável pelo título julga ser digno de crédito e quem seria o populista, pois não?
E, tudo indica, essa será a toada seguida não só pelos jornalões mas pela mídia em geral. De total desrespeito pelos fatos, pela verdade e pela opinião pública, combinando descontextualização com acusações de "populismo jurídico", o que quer que isso queira dizer.
Tudo somado, só resta uma conclusão: atingiu-se o estopim, não dá mais: precisamos de uma nova mídia, urgente.
E, tudo indica, essa será a toada seguida não só pelos jornalões mas pela mídia em geral. De total desrespeito pelos fatos, pela verdade e pela opinião pública, combinando descontextualização com acusações de "populismo jurídico", o que quer que isso queira dizer.
Tudo somado, só resta uma conclusão: atingiu-se o estopim, não dá mais: precisamos de uma nova mídia, urgente.
4 comentários:
Seria icônico eu dizer "bravo" às suas palavras, por isso penso ser mais cabível manifestar:
Amén!
Mauricio,
Deus do céu, não sei como você aguentou ler essa tralha quase toda. Eu, pessoalmente, não consigo e tenho severas dificuldades em exprimir algo que traduza por completo a boçalidade que a Folha de São Paulo se tornou nos últimos tempos, em especial do início do ano para cá.
Sem dúvida, a Folha esse ano conseguiu ser mais bisonha que a Veja. O que é engraçado sobre o caso Barbosa, é que logo quando isso aconteceu e o Nassif postou no blog dele, dezenas de leitores já insinuavam o tipo de "cobertura" que seria feita no outro dia...dito e feito, além de tosca a Folha se tornou previsível a ponto de ser tediosa. Ditabranda, ficha falsa a cobertura do caso do STF, triste, triste...
Ademais, Cantanhêde menosprezando o Ministro Barbosa, um jurista com pós-graduação em Paris II, é o fim da picada - e ao mesmo tempo é o retrato da geração de jornalistas a qual ela pertence, que entre perder um salário gigantesco e praticar jornalismo de quinta, preferiu sem piscar, em sua maioria, a segunda.
Muito obrigado, Edu!
Pois é, Hugo, é preciso muito estõmago para ler (e, no caso, em nome de uma análise justa, reler várias vezes) tudo isso. Eu AINDA estou perplexo: para quem conheceu a Folha de fins dos 80/início dos 90 é estarrecedor e triste constatar no que o jornal se transformou. Um abraço.
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