“Qual é hoje a vocação maior do pensamento brasileiro? O caminho a evitar é o percorrido pelas ciências sociais e pelas humanidades nos países do Atlântico Norte. Nas ciências sociais, a começar por economia, prevalece lá a racionalização do estabelecido: explicar o que existe de maneira a confirmar a necessidade, a naturalidade ou a superioridade das instituições estabelecidas e das soluções triunfantes (...) Nas humanidades, a fuga da vida prática: divagações e aventuras no campo da subjetividade, desligadas do enfrentamento da sociedade como ela é. (...) No Brasil, estamos, em matéria de alta cultura, a reboque disso (...) Para compreender nossa experiência nacional, temos de executar obra de pensamento de valor universal” (Roberto Mangabeira Unger, “A inteligência brasileira”, Folha de São Paulo, pag. A2, 20/03/2007).
No texto acima, uma das mais contundentes análises acerca dos descaminhos do pensamento acadêmico/cultural brasileiro e de suas relações com a “metrópole” publicada na mídia nacional, é paradoxal - porém altamente revelador - que a perspectiva adotada pelo colunista advenha de um profissional que ocupou, por décadas, uma cadeira de professor numa das mais bem-conceituadas universidades norteamericanas (e do mundo), Harvard. Mangabeira Unger tem, portanto, o álibi de estar isento de acusações de antiamericanismo. Tornadas um anacronismo impensável num cenário midiático hegemonicamente neoliberal, as idéias que expõe no artigo, não receosas de apostarem na originalidade e na necessidade de independência do pensamento brasileiro, tenderiam, entretanto, a ser execradas se cometidas por um incauto jornalista ou acadêmico nativo (isso na eventualidade de, com opiniões tão “retrógradas”, ser-lhe concedido espaço na imprensa ou nas editorias acadêmicas).
A universidade pública brasileira tem sido, a despeito de todas as dificuldades econômicas, dos muitos processos viciados de recrutamento de professores e de pós-graduandos e de algumas mazelas herdadas da ditadura - e não erradicadas em duas décadas de democracia -, um espaço de debate democrático, de formação de cidadania e de produção de conhecimento de alto nivel, um dos poucos bastiões de vida inteligente em um país no qual o nível do debate cultural encontra-se há tempos em grave crise - para a qual muito contribui a "grande mídia", notadamente a televisiva.
No entanto, o modelo estrutural adotado para o gerenciamento da universidade no Brasil - baseado em quantificação sistemática e qualificação “ranqueada” da produção acadêmica - tem sido importado e disseminado de forma acrítica, aí incluídos os critérios valorativos que regem tal ranking e a indistinção com que vêm sendo aplicados.
O procedimento de naturalização da importação de tais critérios e das práticas por eles determinados, ambos forjados no âmbito da universidade norteamericana e aos quais a academia brasileira voluntariamente se submete, significa o endosso (do colonizado) a um exitoso processo de imperialismo cultural, o qual, como apontam Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant:
“Repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais (...) Hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro” (“Sobre as artimanhas da razão imperialista”, 11).
"Naturalizada" pela importação massiva e acrítica de qualquer lixo audiovisual produzido no Atlântico Norte (é precisamente o caso da série cuja fotografia encima este post), colabora para a escassez de debates acerca de tais temas a bem-sucedida operação discursiva neoliberal que promove uma oposição maniqueísta entre globalismo e nacionalismo, caracterizada pela fixidez, em que o primeiro termo tende a ser associado a valores como liberdade e pluralismo, e o segundo a anacronismo e obscurantismo - quando não, em flagrante distorção descontextualizada, a certas tendências políticas que atingiram seu ápice na Europa dos anos 1930 e 1940.
O dado objetivo a se considerar é que o atual desprezo pelas ligações entre produção de conhecimento e imperialismo - garantido pela manutenção da desqualificação a priori das críticas nas bases mencionadas no parágrafo anterior - pode vir a ser custoso para o futuro da academia e da cultura do país.
6 comentários:
Maurício,
O Mangabeira é um sujeito bastante controvertido, mas em muitos momentos ele fala umas coisas simplesmente brilhantes; quando ele coloca que em muitos cursos universitários "prevalece lá a racionalização do estabelecido" não poderia estar mais certo. Concordo com ele sobre o exemplo dos cursos de economia pelo país, tirando algumas exceções, ocorre isso daí mesmo, uma cópia das escolas americanas.
Por outro lado, o Direito também faz isso, mas não copia os americanos, afinal, o nosso sistema jurídico - não sei se feliz ou infelizmente - não é o mesmo que o deles, mas sim o europeu continental. No entanto, do mesmo jeito que acontece na Economia, só que por vias diferentes, ficamos lá apenas racionalizando o status quo. Sobra doutrinação e falta crítica - e quando ela existe é tão rasa que é exequível.
É como se ao verificar a queda de uma tempestade, as pessoas em vez de se perguntarem porque isso aconteceu, simplesmente buscassem explicações para afirmarem que isso tinha de acontecer. É tão sectário, tão medieval, tão dogmático.
Quanto aos filmes estadunidenes, concordo plenamente, eu também não quero deixar de ver os bons filmes daquele país, mas nada justifica o fato de que nos é empurrado goela abaixo desde os grandes filmes daquele ianques até as suas piores e mais horrendas películas. Afinal, muitas vezes, bons filmes europeus sequer passam por aqui. É um entreguismo sem limites isso que acontece por aqui.
Ah, sim, o Direito não copia os norteamericanos - no conteúdo. Tampouco a Filosofia o faz (afinal, "só é possível filosofar em alemão", embora alguns teimosos insistam em fazê-lo em francês); na Sociologia eles também são minorítários.
Só que todas essas disciplinas estão sujeitas aos mesmos critérios acadêmicos, determinados aqui pelas agências de fomento e forjados nos EUA. E, não importa se você é formado em Direito, Cinema, Engenharia ou Fisioterapia: esse critério é padrão, estanque; avalia não só todas as discipinas sob o mesmo critério indistinto, mas prioriza publicações internacionais... majoritariamente em inglês.
Então, para seguir uma carreira acadêmica, mesmo que você vá lecionar Literatura Brasileira, você vai ser constantemente avaliado, no mestrado, no doutorado, no pós-dutorado, na livre-docência, e no restinho de sua docência, por critérios avaliativos forjados em outro país, em outra cultura. Pergunto: por quê?
De fato, Mauricio, eu acabei pensando mais no conteúdo do que no recipiente. Quanto a isso, penso que é uma decorrência meio natural do fato de também copiarmos o modelo de produção deles; a velha ideia da linha de montagem, que se mantém constante no conteúdo, apesar de ter sofrido algumas moficações tópicas na forma que se materializa.
Veja você que isso está acontecendo, pasme, na própria França. Tenho um amigo que está fazendo intercâmbio em Sorbonne e eles estão em pé de guerra lá: Sarkô pretende inserir um modelo quantitativo de avaliação dos docentes.
Pode ser na França, mas a direita ecoa algo não muito diferente do que Alckimin ecoou aqui: A ideia tacanha de que os problemas se resolvem administrando as coisas como uma "empresa" - e uma "empresa" capitalista, diga-se.
Tudo se tornar fordificável: Desde o Estado até as Universidades num processo que vai desde a administração até o próprio conteúdo; a Universidade se torna um mero instrumento de produção técnica avançado e a lhe é extirpado o caráter de ser núcleo de pensamento político - afinal, o tudo já está pensado...
Isso, claro, sem esquecer o que Serra tentou fazer com a USP aqui.
Bem lembrado, a Sorbonne tá em pé-de-guerra por causa das mudanças na lei (propuseram até o boicote ao Le Monde, num sinal que também no setor midiático as coisas estão ficando pretas por lá). E as administrações peesedebistas a-do-ram esse modelo.
Mas eu acho uma lástima e um desperdício, ainda mais num país com a diversidade cultural e a capacidade de improvisação do Brasil.
Maurício,
Muito bom o texto. A relação universidade/imperialismo nem sempre é percebida e analisada no meio acadêmico.
Aqui nos EUA, mesmo em ambientes democráticos e críticos, poucas vezes vi professores e alunos discutindo isso. Aqui um registro pessoal: quantos amigos meus criticam o imperialismo americano, mas, tendo nascido aqui, pouco se importam com o que acontece no resto do mundo. Pode-se ler autores franceses, alemães, até mesmo do "terceiro-mundo". Mas esses autores precisam, antes, se inserir no debate americano (e escrever em inglês, é claro). C'est la vie!
Nem me fale, Raphael. Senti na pele o imperialismo acadêmico norteamericano. Cheguei a ouvir de um professora que eu "deveria aprender não apenas a me expressar como um americano, mas a pensar como um americano". Se isso não é imperialismo cultural, não sei o que o seja.
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