O “Poetinha”, como era carinhosamente apelidado, Vinicius de Moraes tende a ser naturalmente associado à poesia, seja como autor de sonetos (formato que inicialmente preferiu) e de outras modalidades de poemas ou como letrista de algumas das canções mais impregnadas de lirismo na música brasileira.
A proeminência da poesia em sua produção naturalmente relegou a um plano inferior o Vinicius prosador, que também é de alto calibre. É fato que alguma visibilidade foi dispensada ao autor de crônicas, embora ele jamais chegasse a se tornar especialista no formato, como um Drummond – que, trabalhando na imprensa diária, assina mais de 500 crônicas -, ou dele tenha se aproximado respeitando strictu sensu as características do gênero. O ritmo insano e a obediência a rígidos padrões formais não combinariam com o espírito livre de Vinicius - segundo o mesmo Drummond, "O único poeta que viveu como poeta".
Sua produção bibliográfica sob tal rubrica varia de 1 a 4 títulos, dependendo da fonte consultada, embora o único livro que publicou em vida que realmente autorize tal classificação seja Para uma menina com uma flor (1966); os outros três apresentam um híbrido de poesia e crônica, com as características formais da primeira estruturando um texto em que o humor leve, a temática do cotidiano e a forma coloquial de se dirigir ao leitor remetem à segunda. É o caso de textos que viraram canções, como "Para viver um grande amor", título de um dos livros mencionados.
Essa tendência a produzir híbridos de poesia e crônica não se restringe, no entanto, a tais publicações: tendo evidenciado-se, anteriormente, em algumas de suas criações poéticas, como na “Balada das duas mocinhas de Botafogo” (com tantas potencialidades narrativas que até virou filme) e em “Mensagem a Rubem Braga" – poema pouco conhecido e que, de toda a produção de Vinicius, é um dos favoritos deste blogueiro, pela abordagem lírica das temáticas do saudosismo e da amizade e pela evocação de tardes boêmias no Rio de Janeiro de então.
Mas é em alguns dos textos avulsos escritos nas contracapas de LPs, nas orelhas de livros ou em artigos avulsos frutos de vontade criadora e inspiração, trazidos à luz por vontade própria, que o talento do Vinicius prosador se apresenta de forma mais desenvolta, livre das amarras dos gêneros literários. Confira abaixo, em texto (retirado deste site) escrito em meio à agitação de julho de 1968 e dedicado ao grande compositor, cronista, jornalista, locutor esportivo, homem do rádio, humorista e figuraça Antônio Maria (Recife, 1921 - Rio de Janeiro, 1964).
Oração para Antônio Maria, pecador e mártir
"Nós saíamos os dois do "Vogue", e depois de deixar Aracy no táxi que a levava ao seu subúrbio, seguíamos de carro até o Leblon, às vezes acompanhando a matilha madrugadora de vira-latas a transitar entre as calçadas do Jardim de Alá; havia sempre um que parava para fazer pipi, o que provocava o reflexo dos outros, e era aquela mijação feliz — que eu nunca vi raça de bicho mais contente da vida que vira-lata carioca ao nascer do Sol. Parecia, mal comparando, uma fileira de lingüiças semoventes, uma a cheirar o rabinho da outra.
Você ria uma grande gargalhada, contente com o seu Cadillac velho, com a explosão da aurora no mar, com os vira-latas transeuntes e com seu novo amigo e poeta. E depois de passar pela casa de Caymmi, para ver se o baiano ainda ralentava a noite, acabávamos nos Pescadores enfrentando um filé com fritas, ou uns ovos com presunto — os melhores de Copacabana, porque eram feitos para a nossa grande fome. O pão era fresco e a cerveja bem gelada. Depois você me deixava em casa, eu dilacerado de saudades de tudo: de você, das conversas na boate amiga, onde dois barões, von Schiller e von Stuckart, disputavam em carinho e gentileza. E sobretudo da mulher amada ainda não tida. Você, maciste ao volante, cantava a marcha que tinha feito para a minha infinita dor-de-corno:
É muito tarde pra esperar por ela
Ela não vem ouvir a tua voz
Esquece, amigo porque a vida é bela
A noite é grande e cabe todos nós...
Um elo forte e viril se fizera entre nossas almas, e nós passamos a ser imprescindíveis um ao outro. A noite — que esperança! — não era grande, era pequena para a nossa gula de vivê-la em toda a sua plenitude. Tudo passava tão rápido, nós olhávamos as moças dançando, Aracy cantava, surgia a figura amiga de Fernando Ferreira, de repente a porta da boate deixava filtrar a luz da manhã. "Ele", como dizia Américo Marques da Costa, tinha despontado. Mais um dia, mais uma morte. Muitas mortes morremos nós, meu Maria, antes que a sua acontecesse para deixar-me mais só vivendo as minhas.
Tantos já se foram, atraídos pela Grande Noite... Evaldo Rui, Bicudo, Stuckart, Waldemarzinho, Louis Cole, Alzirinha, Mauro, Dolores, Ozorinho, Ismael Filho, Ari... Mas em compensação ai estão Paulinho Soledade e Carlinhos Niemeyer, respirando por um fole só, mas cada dia fazendo mais viração; Verinha, esse amor de Verinha, uma graça total, a nossa boa Araça, rainha das vagotônicas, e o querido Rinaldinho, que neste particular nada lhe fica a dever, ele e sua gargalhada que o rádio silenciou. E de vez em quando ainda acontece uma grávida, em geral moça do Norte. Porque a verdade, meu Maria, é que depois da pílula, moça carioca quase não muda mais de silhueta.
Às vezes eu fico pensando. Não sei se você gostaria de estar vivo agora, meu Maria, depois de 1964. Tudo piorou muito, o governo, o meu caráter, a música. Agora só se faz música para Festival e perdeu-se aquela criatividade boa e gratuita da década de 50. Todo mundo faz música com objetivo: comprar apartamento, ter um carrinho, ganhar popularidade, dobrar o cachê, vencer Festival, namorar as moças, bater papo furado. Isso não quer dizer que os caras não sejam ótimos compositores: eles o são. Mas tudo é feito num espírito muito toma-lá-da-cá, cada-um-por-si-e-Deus-por-todos. Assim, a meu ver, perde a graça. Aliás, não é culpa deles. Em absoluto. É o "esquema", como está em moda falar. Eles têm que estar na onda, senão não tem apartamento, não tem carro, não tem cachê, não tem Festival, o papo micha e as moças não dão. Ficam, por assim dizer, marginalizados, e aí nem o "Globo" nem a "Record" querem nada com os infelizes. Em resumo, meu Maria, não se perdeu a música; perdeu-se a sua dignidade.
Mas por um motivo eu sei que você gostaria de estar vivo: as moças. Elas estão, meu Maria, cada dia mais lindas e esportivas, havendo mesmo uns espécimes de se espetar na parede com alfinete. E acho que você iria gostar do "Antonio's", um restaurante novo do Leblon onde todo mundo vai, e tem de certo modo o espírito do velho "Maxim's" dos anos 51/53.De vivo mesmo, meu bom Maria, há Oscar Niemeyer e Di Cavalcanti, certamente os dois maiores homens do atual Brasil. Di está, nos seus 70, a coisa mais jovem, trêfega, inteligente e lírica do mundo, pintando cada dia mais lindo e batendo o melhor papo da República. E Oscar então, desse nem se fala. Elevou-se muito acima de todos, pelo gênio, pela consciência política, pela compreensão humana, pela simplicidade autêntica.E há os estudantes. Estão maravilhosos, e dando lição de cultura aos pais e professores. Saem à rua como um fogo que se alastra, fazendo comícios relâmpagos, topando as paradas com a polícia e conseguindo unir todas as camadas da população, com exceção dos milicos. Outro dia nós saímos em passeata cívica, e éramos 100.000 na Avenida Rio Branco: estudantes, intelectuais, clero, donas de casa, protegidos por um extraordinário esquema de segurança bolado pelos próprios garotos. Uma beleza. Se alguma coisa de bom tem que sair deste país, vai ser à base do novo movimento estudantil.
E, naturalmente, Chico Buarque de Holanda."
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