Os textos deste blog estão sob licença

Creative Commons License

sábado, 7 de março de 2009

Amor e Globalização em Hong Kong


Com o advento da internet em alta velocidade e dos sites de troca de arquivos, vale a pena abordar filmes que, mesmo dificilmente encontráveis no Brasil pelos canais usuais, podem eventualmente ser conhecidos através da rede.
Este post focaliza um dos grandes filmes realizados no continente asiático na última década. Conrades: Almost a Love Story (Tian mi mi, Peter Chan, Hong Kong, 1996) é, ao mesmo tempo, uma dos primeiros obras cinematográficas a tratar com propriedade o então pulsante fenômeno da globalização e uma bela, conturbada e nada piegas história de amor. Foi concebido, ainda, como ode a uma certa Hong Kong – cosmopolita, liberal, festiva – que, prestes a ser incorporada pela China (em 1997) estava sob risco, de acordo com a percepção vigente à época, de desaparecer.
O filme começa em 1986, com XiaoJun Lin (Leon Lai) chegando a Hong Kong. “Caipira” do interior da China, deslumbrado pela metrópole, ele vivencia o preconceito contra os chineses – sobretudo contra aqueles que, como ele, só falam mandarim numa ciade em que o idioma predominante é o cantonês. Sobrevive em subempregos, escrevendo cartas para a namorada que deixou no continente e morando no bordel de sua tia, uma velha prostituta que afirma ter sido amante de Willian Holden.
A menção ao astro de Sunset Boulevard (Billy Wilder, USA, 1950) é o primeiro de uma série de referenciais internacionais que perpassam a narrativa. Numa lanchonete da rede McDonalds, Lin encontra Leon Lai (Maggie Cheung, grande atriz e uma das divas do cinema chinês), garota arrivista que, visando lucro pessoal, o convence a estudar ingês na escola em que trabalha: “aprendendo cantonês você encontra emprego em Hong Kong; aprendendo inglês você pode trabalhar em qualquer lugar do mundo.” Ao vocalizar uma das idéias-chave da então nova ordem econômica mundial, o filme dá sentido às referências internacionais, evidenciando a globalização como um de seus temas-chave. O caráter multinacional da narrativa é enfatizado, ainda, através de menções ao Japão, Oriente Médio, Estados Unidos e Austrália (na figura do professor de inglês vivido por Chistopher Doyle, diretor de fotografia de obras-primas de Wong Kar-Wai, cujo ortodoxo método de ensino inclui frases como "Jump, your son of a bitch, jump!").
Contrapostos à imagem da velha bicicleta que Lin usa para trabalhar, símbolos da então nova cultura global reforçam tal significação: comunicação através de pagers, jogos da liga NBA, cartões de crédito. É através de uma máquina ATM, com os protagonistas vistos a partir de uma câmera subjetiva no interior da máquina, que são descritos seus altos e baixos financeiros – como quando acabam vítimas da nova economia global por ocasião da crise cambial que abalou a Ásia no período.
Numa seqüência-síntese da posição que Lin e Lai ocupam nessa nova ordem, os dois são vistos a partir do lado de fora de uma janela da filial do McDonalds em que trabalham. Falidos após um fracassado investimento comercial, ela limpa o vidro enquanto ele fala, como se estivessem em uma vitrine, tendo ao fundo, desolada ironia, uma imagem fora de foco do palhaço Ronald McDonald.

Tanto a trilha sonora - propositadamente cheesy, com aquele tecladinho bem anos 80 tornado ainda mais brega por arranjos de cordas açucarados - quanto as músicas interpretadas, na trama, por Teresa Tang, ícone de cantora popular na China nos anos 70, têm uma importância fundamental no desenrolar da trama, para a qual adicionam comentários ora cômicos, ora sentimentais. Além disso, é através de uma malfadada tentativa de aproveitar o sucesso de Tang, revendendo seus velhos discos, que os dois protagonistas se unem em sociedade.
O companheirismo nos momentos de baixa os aproxima ainda mais e os leva ao envolvimento amoroso. A partir do momento em que a relação se consome, a trama passa a avançar em sucessivas elipses (1986, 1990, 1993, 1995), a fluência narrativa valorizada pelo domínio da mise en scène, com nostalgia e paixão ilustrados por um padrão cromático em que o predomiante azul cobalto é por vezes oposto ao vermelho sangue, além da utilização de uma decupagem sempre meticulosa, com um uso primoroso do close-up resultando em um dos beijos mais bem filmados da história do cinema
O agravamento da situação econômica de Lai - que passa a trabalhar como garota de programa e torna-se amante de um membro da Yakuza - e a chegada da namoradinha de XiaoJun provocam separações e reencontros. Expressão da lógica do trabalho numa economia globalizada, as personagens se deslocam, ao longo da narrativa, entre China, Taiwan, Hong Kong e Nova Iorque, palco do grand finale. Um filmaço,para ver e rever.

Nenhum comentário: