- Brincando nos
campos do Senhor (1991) talvez seja o melhor filme já feito
sobre a Amazônia, ao lado de Iracema, uma transa amazônica
(1974), de Bodanzky e Senna. Apesar de sua exuberância narrativa e
da grande atuação dos atores - uma constante nos filmes de Babenco
- foi massacrado numa campanha de indisfarçável tom xenofóbico que
uniu crítica e cineastas brasileiros. Mas revê-lo hoje, no
pós-Armageddon de Belo Monte, é não só uma oportunidade de
reconhecer-lhe os méritos estéticos, mas seu caráter
prenunciatório, tanto em relação à questão amazônica quanto à
preponderância da influência religiosa na política.
- Gosto muito de quase
todos os filmes de Babenco, mas, para mim, a obra-prima, que fala
tanto à razão quanto ao coração é Pixote, A Lei do Mais Fraco
(1980), um filme-denúncia sobre um grave problema social, um marco
internacional na representação da infância. e um dos raros
momentos, depois dos anos 1960, em que o cinema latino-americano foi
capaz de causar um debate de grandes proporções, influenciando
inclusive a formatação de políticas para a juventude - ECA,
sobretudo.
- Uma obra sobre o
“esmagamento da fantasia infantil pela inflexibilidade dos
adultos”, como definiu Ely Azeredo, decano da crítica
cinematográfica, para quem Pixote é um filme “Universal em
sua dor (...) por dar a visão de uma espécie de genocídio
espiritual ainda mais brutal que as agressões físicas dos guardiões
dos laboratórios e os assassinatos providenciais cometidos pela
polícia".
- Em uma sala de aula,
a professora escreve na lousa, ao passo em que soletra em voz alta:
- “A ter-ra é re-don-da co-mo u-ma la-ran-ja” – enquanto isso, em sua carteira, Pixote cochila.
Combinando paciência e
energia, a mestra se aproxima, procurando incentivar o garoto a se
concentrar e escrever. À medida que procura despertar seu interesse,
o que era – para Pixote e para o espectador – uma aula modorrenta
sobre um tema banal transforma-se em uma profunda experiência do
saber. O espectador é envolvido tal qual o garoto, que aos poucos
sai de sua letargia. Babenco radicaliza, para tal, um procedimento
consagrado do cinema clássico: a trilha sonora melodramática
invadindo paulatinamente a cena, enquanto a câmera “fecha”, em
zoom, do plano de conjunto de Pixote e da professora para um
close fechadíssimo e longo do rosto de Pixote, enlevado pelo
aprendizado. O grande professor e pesquisador de cinema João Luiz
Vieira considera a sequência "um dos mais sublimes momentos do
cinema brasileiro moderno".
- Babenco era odiado
por setores do cinema brasileiro, um pouco por pura xenofobia e
preconceito contra argentinos, outra tanto porque, do ponto de vista
formal, seu cinema, embora longe do convencional, mesclava elementos
hollywoodianos à influência neorrealista, destoando da estética
(pós)cinemanovista; mas, sobretudo, por inveja, por que Babenco não
só conseguia fazer filmes brilhantes, mas que, com frequência,
abordavam com mais urgência e vigor aspectos terríveis da realidade
brasileira.
- Os filmes de Babenco,
praticamente sem exceção, envelheceram muito bem. Já falamos sobre
a aualidade de Brincando nos tempos do Senhor. Como observou o
crítico Inácio Araújo, Pixote, ante o agravamento da
questão da infância, cresceu com o tempo - como dado extra que o
assassinato do ator principal pela PM revalidou, de forma macabra, a
denúncia que o filme perfaz. Ironweed e O beijo da mulher
aranha, são, a um tempo, case studies para a adaptação
literária ao cinema e para a direçaõ de atores. Lúcio Flávio,
passageiro da agonia, além de manter-se - ao contrário da
maioria de seus contemporâneos - como um retrato contundente da
ditadura, segue, ainda hoje, como um comentário amargo sobre a ação
dos esquadrões da morte, fardados ou não.
- A relação ambígua
de Babenco tanto com o Brasil quanto com a Argentina, se por um lado
acabou por torná-lo uma espécie de pária, por outro permitiu-lhe
assumir um distanciamento crítico em relação aos dois países, com
notáveis benefícios em sua obra. Se, em termos de tematização de
realidades sociais, o Brasil se beneficiou mais com tal dinâmica,
por outro lado a Argentina, embora por muito tempo ele a renegasse,
permaneceu como uma pendência sentimental e psicológica. "Y
aunque no quise el regreso/siempre si vulve al primer amor", diz
a letra do tango: O passado (2007), o belísimo filme em que
retorna à Buenos Aires de sua juventude, exorcisa tal fantasma,
preparando o acerto de contas com a vida, o qual teria lugar no
crepuscular Meu amigo hindu (2015).
- Babenco viveu
intensamente a vida e a arte, seja como o outsider que, no
melhor espírito 1968, colocou uma mochila nas costas e foi explorar
o mundo, seja como o cineasta que, de assistente de diretores
europeus, se transformou em um realizador corajoso, polêmico, capaz de
grandes e arriscados mergulhos. Tal atitude evidentemente não o
salvaguardou de períodos limítrofes, de grandes crises, de
ostracismo; mas, por outro lado, fez florescer um punhado de filmes
viscerais e inesquecíveis, que compõem uma obra única, com
assinatura pessoal, e que serão vistos, saudados e comentados por
muitas gerações.
(Still de Marília Pêra e Fernando Ramos da Silva retirado daqui)
2 comentários:
Muito boa tua análise, adorei. Concordo com a importância de Brincando nos Campos do Senhor, aliás tenho parecido louca lembrando desse filme sempre que citam os outros. Agora preciso rever Pixote.
Obrigado, Tina. Quem viu "brincando nos campos do Senhor" com olhos desprovidos de preconceitos não o esquece...
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