Vem
causando apreensão em diversos setores da sociedade a possibilidade
de aprovação do PL 867/2015 - "Programa Escola sem Partido"
-, o qual, a pretexto de coibir uma vagamente definida doutrinação
ideológica nas escolas traz embutidas graves ameaças à liberdade
de expressão, à atuação profissional de professores e à formação
educacional das novas gerações.
De autoria do controverso senador Magno Malta (PR/ES), envolvido em nada menos que quatro grandes escândalos de corrupção ao longo de sua carreira política - inclusive um atual -, o projeto, patrocinado por alguns dos setores mais retrógrados da sociedade, seria a consolidação, no âmbito federal, de legislações semelhantes que, a despeito de serem consideradas inconstitucionais pela ampla maioria da comunidade jurídica, já tramitam nos âmbitos estaduais (tendo uma delas sido transformada em lei em Alagoas).
Currículos
manipulados
Trata-se,
na prática, de um projeto que visa cercear justamente aquilo que
alega defender - "a liberdade de consciência", "o
pluralismo de ideias", a"liberdade de ensinar", numa
tentativa de fazer com que a ação de professores abdique de
qualquer viés crítico e se limite estritamente à reprodução
acrítica de conteúdos curriculares - os quais são por ora
desconhecidos, e só virão a ser definidos em anexo de lei. Tal
correlação entre engessamento do ensino a um cânone curricular e
atribuição da definição curricular aos legisladores permitiria um
alto grau de manipulação ideológica dos conteúdos educacionais.
Em
decorrência, um dos aspectos mais controversos do projeto é sua
tendência a coibir o contraditório e o contra-hegemônico,
naturalizando e legitimando discursos que validam as relações
sociais de poder e as assimetrias a elas inerentes - como, para ficar
em dois exemplos óbvios, se a legitimação teórica do capitalismo
e dos códigos morais vigentes não fossem, elas próprias, operações
de teor ideológico e não significassem também doutrinação e
"tomada de partido".
Vícios
de origem
A
dinâmica acima descrita evidencia, ainda, o tendenciosismo
ideológico que impregna o próprio projeto, cujos defensores, em
sua ampla maioria, não hesitam em elencar como justificativa
principal a "proibição da doutrinação esquerdista", um
vício de origem que, ao mirar apenas em um pólo do arco
político-ideológico - nada dizendo sobre a doutrinação passível
de ser feita pelas forças situadas na outra ponta de tal espectro (e
alhures) -, explicita os objetivos marcadamente ideológicos e
partidários de um projeto travestido de luta contra o doutrinamento
ideológico.
Tal
vício de origem não só conspurca o Escola sem Partido, como
escamoteia - ao mesmo tempo em que isenta - formas hoje recorrentes
de doutrinação no campo educacional brasileiro, notadamente aquelas
de caráter religiosos (registre-se que o senador Magno Malta é
pastor evangélico). Antes restritas a escolas
associadas a entidades confessionais, estas hoje se espalharam, de
forma generalizada, pela arena educacional, tanto pela crescente
confusão e indistinção entre educação e doutrinamento religioso
em templos, organizações não governamentais e centros tradicionais
de ensino, quanto através de professores que confundem
deliberadamente o púlpito com a sala de aula - um fenômeno do qual
nem as melhores universidades do país estão isentas.
Falso
combate à doutrinação
Como
o exemplo acima evidencia, é real a possibilidade de ocorrência de
doutrinação indevida no meio educacional. Parece-nos justo supor
que tal problema se estenda também à seara política, à esquerda,
à direita, ao centro, em relação a questões de gênero sexual,
contra ou a favor do aborto, da legalização da maconha, da
admissibilidade do aquecimento da Terra, etc. Admitamos, a título de
raciocínio, que, se professores bem-intencionados são maioria,
seria negligência ignorar que também há nas salas de aula um
número não desprezível de militantes mais interessados em propagar
suas causas do que em educar. Isso admitido, duas questões se
colocam:
1) Na era da comunicação digital e das redes sociais - em que até estudantes secundaristas se emponderaram e são protagonistas de suas lutas -, será realmente preciso recorrer a uma legislação draconiana, imposta de cima pra baixo, que tem tudo para instaurar um clima de vigilantismo e cerceamento da liberdade de expressão para impedir tais excessos, ou haveria formas mais democráticas, autogestadas e coletivas de fazê-lo?
1) Na era da comunicação digital e das redes sociais - em que até estudantes secundaristas se emponderaram e são protagonistas de suas lutas -, será realmente preciso recorrer a uma legislação draconiana, imposta de cima pra baixo, que tem tudo para instaurar um clima de vigilantismo e cerceamento da liberdade de expressão para impedir tais excessos, ou haveria formas mais democráticas, autogestadas e coletivas de fazê-lo?
2)
O projeto Escola sem Partido tem efetivamente condições de
estabelecer, em bases claras e inequívocas, parâmetros legais que
coíbam a doutrinação nas escolas, sem afrontar o princípio
constitucional da liberdade de expressão, incorrer em censura, beneficiar este ou aquele
estrato político-ideológico, cercear a atuação pedagógica e
didática dos professores ou prejudicar a formação intelectual e
crítica dos estudantes?
Critérios
subjetivos
A
julgar pelo grau de indefinição e de subjetividade interpretativa
inerente a tal legislação, o qual compromete não só a
identificação das transgressões, mas, assim, a justeza das
punições, a resposta à segunda questão é negativa. Pois o PL
867/2015 , ora em discussão na Comissão de Educação da Câmara.
determina, por exemplo, em seu artigo terceiro:
“São
vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização
de atividades que possam estar em conflito com as convicções
religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes."
Ora,
como determinar, de forma objetiva, o que é doutrinação e o que é
problematização e estímulo ao criticismo? Como auferir as
convicções religiosas e morais de cada indivíduo em uma classe com
dezenas de estudantes, de forma a não ofendê-las? Quem terá
capacidade e critério para julgar, de forma isenta, tais eventuais
transgressões?
Supressão
do senso crítico
São
perguntas meramente retóricas, posto que não há resposta possível
a elas, ao menos se não se quer incorrer em arbitrariedades
subjetivas que contrariam, de forma frontal, a impessoalidade e a
objetividade jurídicas requeridas pelo Estado Democrático de
Direito, especificamente o princípio constitucional da liberdade de
expressão e o artigo 206 da Constituição, que assegura o direito à
liberdade de aprendizagem e difusão do conhecimento.
Não
é preciso um grande esforço intelectual para se aperceber que,
assim, o projeto não só reprime, mas almeja suprimir o pensamento
crítico e contestatório, impregnando as relações educacionais de
uma mentalidade passiva e conformista. Para piorar, as denúncias
contra eventuais transgressões da lei seriam recebidas por via
anônima, o que permitiria toda sorte de manipulações e retaliações
por parte de estudantes contrariados ou mal-intencionados.
Sutilezas
educacionais
Como
bem sabem os professores e profissionais da educação, o ensino não
se restringe à exposição de conteúdos. É preciso não só
problematizá-los e debatê-los los sob prismas variados, mas, muitas
vezes, fazer uso de técnicas de provocação e contraposição
crítica de posições, de modo não só a oferecer aos estudantes
uma visão complexa e multifacetada do tema em questão, mas a
incentivá-los a participar do debate, e sem receio de emitirem as
próprias opiniões, por mais estapafúrdias ou radicais que estas se
lhes pareçam.
Pois, nas palavras do professor e historiador Luiz Antonio Simas, em ótimo texto em seu blog:
Pois, nas palavras do professor e historiador Luiz Antonio Simas, em ótimo texto em seu blog:
"Não existe escola democrática sem a ideia de negociação permanente. A escola sem conflitos é uma instituição defunta. Neste sentido, a interação nas escolas se estabelece, entre conflitos e consensos, entre pessoas com visões de mundo e culturas diferentes que se posicionam."
Ameaça
e reação
Portanto, para que exerça suas funções com
plenitude, é imprescindível que se conceda ao professor uma ampla
liberdade de ação - inclusive para assumir posições e atitudes
polêmicas e provocativas. A relação professor-alunos é complexa
e, mesmo se desenvolvida em altos padrões de profissionalismo,
repleta de sutilezas comunicacionais, interativas, psicológicas e
mesmo afetivas. Querer engessá-la em um código de conduta moralista
é não só inaceitável do ponto de vista das liberdades tanto
individuais quanto coletivas (neste caso, porque os alunos serão os
mais afetados), mas sob o prisma educacional strictu sensu. Pois,
além de tornar o ensino mais maçante do ponto de vista didático,
retirar-lhe-ia sua essência dialética, atrofiando o estímulo ao
desenvolvimento do senso crítico dos alunos e alunas e
transformando-o em mero reprodução insossa de conteúdos.Tudo somado, o "Escola sem Partido", constitui uma gravíssima ameaça à Educação no Brasil,. Trata-e de uma iniciativa que se dá no bojo do recrudescimento feroz, no país, de um conservadorismo preconceituoso, dogmático e não apenas inculto, mas avesso à cultura e à Educação. Como tal, é marcada por um macartismo extemporâneo, retrógrado e francamente em desacordo com o avanço dos direitos na democracia brasileira, a qual retrocederá ainda mais - e de forma indelével - se essa excrescência legislativa vier a ser aprovada.
Serviço:
o PL 163/2016 ("Programa Escola sem Partido") encontra-se
aberto para consulta pública no site do Senado, podendo os cidadãos
pronunciarem-se contra ou a favor. Por enquanto, o placar, revertendo
a tendência inicial, aponta uma ligeira vantagem dos que são
contra o projeto.
Post atualizado em 20/07/2016.
(Imagem retirada daqui)
2 comentários:
Obrigada pelos esclarecimentos! O assunto é muito grave e tem tido pouca repercussão. Abs,
Obrigado, Monix. Infelizmente, a sociedade não está a par da gravidade do projeto e dos riscos que ele traz. Abs.
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