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domingo, 25 de outubro de 2015

Mídia golpista? O mito do PIG em questão


No decorrer da era petista, o modo recorrente como o jornalismo midiático desviou-se de suas funções, incorrendo em demarcado partidarismo, consolidou, em setores do público, a imagem de uma pronunciada oposição entre mídia e governo.



Além de corroborada pela presidente da Associação Nacional de jornais, Maria Judith Brito –para quem os “meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país” -, tal oposição foi ratificada, entre tantos outros feitos notáveis da mídia brasileira, pela transformação editorial da revista Veja em porta-voz do neoconservadorismo a la Fox News; pela adoção, pelos principais órgãos escritos e televisivos, de um mesmo e restrito time de comentaristas políticos raivosamente antipetistas; pela repetida transgressão de princípios basilares da ética jornalistica, culminando com a publicação, na capa de uma edição dominical da Folha de S. Paulo, da ficha policial falsa da então candidata Dilma Rousseff.



A animosidade de grande parte da mídia para com o petismo é, portanto, sobejamente conhecida (mas isso não impediu que o PT elegesse quatro presidentes em seguida e, de quebra, o prefeito da maior cidade do país, o que muito nos diz sobre o real poder da mídia).







Reação irônica

Tal comportamento, inserido em um quadro geral no qual o setor de comunicação reflete as assimetrias socioeconômicas do país, excessivamente concentrado numa plutocracia familiar e eivado de vícios clientelistas, acirrou ainda mais os ânimos. Por sua vez, os meios petistas de comunicação, concentrados na internet, reagiram elegendo a mídia corporativa como inimigo preferencial, a ela referindo-se com o uso de uma sigla tão sarcástica quanto pregnante: "PIG" [Partido da Imprensa Golpista].



A principio uma reação bem-humorada e denunciadora dos desvios de função do jornalismo midiático, tal estratégia, entretanto, ao tornar-se a norma repetida ad eternum, foi perdendo o seu poder de choque e, ao fornecer um sempre mesmo diagnóstico negativo a priori, anteposto ao exame analítico do objeto caso a caso, acabou relativizando ou mesmo anulando a própria crítica que intenta perfazer.







Omissão e apoio

Ainda mais porque o exame cotidiano e criterioso da mídia nacional, sobretudo a partir da ascensão de Dilma Rousseff ao poder, tende a revelar padrões não binários e muito menos maniqueístas do que a generalização peremptória que o rótulo “PIG” implica.



Se não vejamos: visto a partir da esquerda, um dos maiores erros estratégicos do petismo foi não construir sua própria narrativa, deixando-se aprisionar por um sistema de valores ditado justamente pela mídia e pelo mercado. Enquanto a economia "ia bem" (segundo tal quadro valorativo) funcionou, e os militantes e entusiastas petistas vibravam como torcidas de futebol a cada divulgação de índice econômico, a cada afago de porta-vozes do mercado, a fossem estes agências de classificação de riscos, colunistas da imprensa ou a The Economist - entes hoje execrados.



E como se comportou, de maneira geral, a mídia ante as sucessivas privatizações - “concessões”, na novilíngua petista – de aeroportos, rodovias e do Pré-Sal levadas a cabo pelo atual governo? Qual abordagem predominou ante o recente corte de direitos trabalhistas e previdenciários efetuados por um governo que, na campanha eleitoral, comprometeu-se a não alterar tais direitos “nem que a vaca tussa”? Por quantas vezes noticiou e expressou sua desaprovação ao genocídio indígena e à inação do governo? Como tem reagido ao fato de que os índices de reforma agrária do governo Dilma são menores do que os de FHC? Com que frequência e destaque tem retratado o processo de sucateamento do Ensino Superior ora em curso, que se expande quantitativamente mas sem a correspondente evolução qualitativa em relação a salários, plano de carreira e condições de trabalho de professores e de funcionários, além de laboratórios, salas de aula e bibliotecas insuficientes e por vezes improvisadas?





Por novos modelos

A resposta a estas questões denota, de forma clara, que a ação midiática não se dá exclusivamente nos moldes da reatividade negativa, como quer o governismo. Quando lhe convém, adota posturas que variam da omissão cúmplice ao endosso de medidas governamentais, mesmo quando elas tendem ser prejudiciais ao interesse da maioria do povo. Evidencia-se, assim, a impropriedade de se utilizar um mote totalitário e generalista para carimbá-la de antemão como instituição golpista. Mais sentido faria um modelo analítico que fosse além do binarismo mídia-governo e atentasse para as relações entre a notícia e os interesses classistas, econômicos e ideológicos da mídia.



O rótulo “PIG”vem há tempos servindo como desculpa multiuso e cortina de fumaça a justificar e impedir a análise dos erros das administrações petistas, o que acabou gerando um alto custo ao pais, por impedir ou retardar a perpcepção da crise em gestação e de sua gravidade. Em última análise – e ao contrário do que o petismo apregoa – se, durante a campanha elitoral, a mídia tivesse cumprido o seu papel com um mínimo de rigor, denunciando a real situação da economia brasileira país, Dilma Rousseff jamais teria se reelegido. A mídia que o governismo denuncia como golpista foi, nas verdade, gravemente omissa – e para benefício do próprio petismo.







O caso das agências de rating

Mas, para além do atípico período de campanha eleitoral, poucos episódios políticos recentes têm ilustrado com tanta propriedade a falsidade da dicotomia mídia versus governo do que a cobertura que vem sendo dispensada ao ajuste fiscal. A atuação midiática, que já se mostrava há tempos longe do estereótipo projetado pelo governismo, passou a deste distoar ainda mais com o anúncio do rebaixamento da nota do Brasil, primeiro pela agência de risco Standard & Poor's, depois pela Moody's, com a decorrente perda do grau de investimento.



O que se assistiu no noticiário, de forma geral, não foi, de modo algum, a algo que se assemelhasse a uma reação revanchista, de criticismo desmedido ou raivosa – pelo contrário, grande parte da imprensa e da mídia televisiva do país pareceu desde então engajada em uma espécie de “campanha cívica” pelo ajuste fiscal. A qual dá mostras de incluir um esforço extra para popularizar e “tornar simpático” o reservado Joaquim Levy e para transformar o aumento de impostos em um leve esforço individual pelo bem do país. Que ”PIG” bonzinho...







Levy na Globo

O deslanche de tal campanha se deu na mesma quarta-feira em que a nota do Brasil fora rebaixada pela primeira vez, com uma entrevista ao vivo do ministro ao Jornal da Globo, logo após o futebol. Precedida por uma daquelas simplificações que envergonham o jornalismo econômico – com os apresentadores afirmando que o rebaixamento da nota do país corresponderia, para o cidadão, a ficar com o “nome sujo” na praça – a entrevista serviu, sobretudo, para o ministro vender o seu peixe.



Aludiu à dificuldade de fazer cortes na Saúde e na Educação, omitindo que este ano já os fizera, e de forma significativa (são as duas áreas mais recortadas por sua famosa tesoura) e chegou a cometer platitudes como “a baixa popularidade nos dá uma oportunidade para aumentá-la”, sem ser questionado pelos entrevistadores.



Uma comparação da entrevista de Levy com aquelas feitas com candidatos à Presidência a cada eleição pelo mesmo Jornal da Globo dá a ideia precisa do comportamento de um atipicamente cordato e pouco incisivo Waack e de uma protocolar Christiane Pelajo como inquisidores: nenhuma interrupção, nenhuma insistência, nenhuma contestação às afirmações e supostos dados apresentados - apenas um repertório de perguntas para que o entrevistado dissertasse à vontade. Contraposto, por exemplo, ao bombardeio verbal de Ana Paula Padrão e Franklin Martins contra Anthony Garotinho, foi um passeio no parque.







Campanha “cívica”

No dia seguinte ficou claro que não se tratava de um ato isolado: excetuada a maioria dos colunistas de opinião, o que se leu e viu, na imprensa e no restante da mídia, foi uma verdadeira operação de marketing governista. E com Levy onipresente, com sua fala mansa e pontuada de diminutivos repetida nas manchetes e programas, como um mantra de convencimento coletivo, expressando a “certeza de que todo mundo está disposto” a pagar “um pouquinho mais de imposto para o Brasil ser reconhecido como um país forte”.



Não é este o espaço apropriado para o debate acerca da atual questão dos impostos no Brasil [já o esbocei em outra ocasião], tampouco de desenvolver análises sobre a irônica contradição de um economista formado na Escola de Chicago e tido como neoliberal ortodoxo tornar-se publicamente conhecido por defender aumento de impostos. No âmbito deste artigo, importa, em primeiro lugar, assinalar que tais dados denotam o quanto, no caso em questão, o comportamento da mídia em relação a Levy - e ao governo que ele representa - contradiz frontalmente a oposição binária e automática entre este e aquela que as hordas governistas vivem a bradar e o emprego generalizado do termo “PIG” presume.







Razões do alinhamento

Em segundo lugar, faz-se necessário examinar as as razões pelas quais a a mídia, neste caso, contraria uma alegada ojeriza ao governo Dilma e se torna sua parceira em uma espécie de movimento em prol da colaboração de todos para o ajuste fiscal. Uma hipótese provável é que, ao endossar o aumento generalizado de impostos preconizado por Levy, os grupos de mídia estariam expressando, uma vez mais, a posição dos setores da elite que repelem medidas como a taxação efetiva de fortunas ou de transações que afetem o rentismo.



Desta forma, o jornalismo, que historicamente alardeia para si o dever iluminista de informar ao povo, prefere cometer um grave desvio de função e associa-se ao governo petista numa operação cuja própria natureza classista é dissimulada e que visa promover a transferência do ônus da crise para os cidadãos. Assim se explica o quase unânime endosso midiático ao pragmatismo de Levy, cujo discurso coletivista aparentemente simples oculta uma engenhosa fórmula para manter os lucros do mercado financeiro e das classes mais abastadas ao abrigo da crise, ao passo que faz a população arcar não só com o ônus cotidiano desta, mas com o cumprimento das metas que o mercado impôs para superá-la.







Questões em aberto

Tudo somado, resta a pergunta: como acusar de golpista uma mídia empenhada em uma operação para convencer a população a se sacrificar ainda mais, pagando impostos ainda maiores, para que o governo Dilma Rousseff - o qual alegadamente odeia – tente cobrir o rombo de R$50 bilhões que, pela própria incompetência, legou ao país?



Ou, posto de outra forma: quando será que aqueles que acreditam no mito do “PIG” vão demorar para se aperceber de que não há porque a mídia ser golpista contra um governo que, em plena crise, pune trabalhadores e aposentados enquanto preserva o mercado financeiro e as grandes fortunas?






Segunda versão de artigo publicado originalmente no Observatório daImprensa.

(Imagem retirada daqui)

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