No
decorrer da era petista, o modo recorrente como o jornalismo
midiático desviou-se de suas funções, incorrendo em demarcado
partidarismo, consolidou, em setores do público, a imagem de uma
pronunciada oposição entre mídia e governo.
Além
de corroborada pela presidente da Associação Nacional de jornais,
Maria Judith Brito –para quem os “meios de comunicação estão
fazendo de fato a posição oposicionista deste país” -, tal
oposição foi ratificada, entre tantos outros feitos notáveis da
mídia brasileira, pela transformação editorial da revista Veja em
porta-voz do neoconservadorismo a la Fox News; pela adoção, pelos
principais órgãos escritos e televisivos, de um mesmo e restrito
time de comentaristas políticos raivosamente antipetistas; pela
repetida transgressão de princípios basilares da ética
jornalistica, culminando com a publicação, na capa de uma edição
dominical da Folha de S. Paulo, da ficha policial falsa da então
candidata Dilma Rousseff.
A
animosidade de grande parte da mídia para com o petismo é,
portanto, sobejamente conhecida (mas isso não impediu que o PT
elegesse quatro presidentes em seguida e, de quebra, o prefeito da
maior cidade do país, o que muito nos diz sobre o real poder da mídia).
Reação
irônica
Tal
comportamento, inserido em um quadro geral no qual o setor de
comunicação reflete as assimetrias socioeconômicas do país,
excessivamente concentrado numa plutocracia familiar e eivado de
vícios clientelistas, acirrou ainda mais os ânimos. Por sua vez, os
meios petistas de comunicação, concentrados na internet, reagiram
elegendo a mídia corporativa como inimigo preferencial, a ela
referindo-se com o uso de uma sigla tão sarcástica quanto
pregnante: "PIG" [Partido da Imprensa Golpista].
A
principio uma reação bem-humorada e denunciadora dos desvios de
função do jornalismo midiático, tal estratégia, entretanto, ao
tornar-se a norma repetida ad eternum, foi perdendo o seu poder de
choque e, ao fornecer um sempre mesmo diagnóstico negativo a priori,
anteposto ao exame analítico do objeto caso a caso, acabou
relativizando ou mesmo anulando a própria crítica que intenta
perfazer.
Omissão
e apoio
Ainda
mais porque o exame cotidiano e criterioso da mídia nacional,
sobretudo a partir da ascensão de Dilma Rousseff ao poder, tende a
revelar padrões não binários e muito menos maniqueístas do que a
generalização peremptória que o rótulo “PIG” implica.
Se
não vejamos: visto a partir da esquerda, um dos maiores erros
estratégicos do petismo foi não construir sua própria narrativa,
deixando-se aprisionar por um sistema de valores ditado justamente
pela mídia e pelo mercado. Enquanto a economia "ia bem"
(segundo tal quadro valorativo) funcionou, e os militantes e
entusiastas petistas vibravam como torcidas de futebol a cada
divulgação de índice econômico, a cada afago de porta-vozes do
mercado, a fossem estes agências de classificação de riscos,
colunistas da imprensa ou a The Economist - entes hoje execrados.
E
como se comportou, de maneira geral, a mídia ante as sucessivas
privatizações - “concessões”, na novilíngua petista – de
aeroportos, rodovias e do Pré-Sal levadas a cabo pelo atual governo?
Qual abordagem predominou ante o recente corte de direitos
trabalhistas e previdenciários efetuados por um governo que, na
campanha eleitoral, comprometeu-se a não alterar tais direitos “nem
que a vaca tussa”? Por quantas vezes noticiou e expressou sua
desaprovação ao genocídio indígena e à inação do governo? Como
tem reagido ao fato de que os índices de reforma agrária do governo
Dilma são menores do que os de FHC? Com que frequência e destaque
tem retratado o processo de sucateamento do Ensino Superior ora em
curso, que se expande quantitativamente mas sem a correspondente
evolução qualitativa em relação a salários, plano de carreira e
condições de trabalho de professores e de funcionários, além de
laboratórios, salas de aula e bibliotecas insuficientes e por vezes
improvisadas?
Por
novos modelos
A
resposta a estas questões denota, de forma clara, que a ação
midiática não se dá exclusivamente nos moldes da reatividade
negativa, como quer o governismo. Quando lhe convém, adota posturas
que variam da omissão cúmplice ao endosso de medidas
governamentais, mesmo quando elas tendem ser prejudiciais ao
interesse da maioria do povo. Evidencia-se, assim, a impropriedade de
se utilizar um mote totalitário e generalista para carimbá-la de
antemão como instituição golpista. Mais sentido faria um modelo
analítico que fosse além do binarismo mídia-governo e atentasse
para as relações entre a notícia e os interesses classistas,
econômicos e ideológicos da mídia.
O
rótulo “PIG”vem há tempos servindo como desculpa multiuso e
cortina de fumaça a justificar e impedir a análise dos erros das
administrações petistas, o que acabou gerando um alto custo ao
pais, por impedir ou retardar a perpcepção da crise em gestação e
de sua gravidade. Em última análise – e ao contrário do que o
petismo apregoa – se, durante a campanha elitoral, a mídia tivesse
cumprido o seu papel com um mínimo de rigor, denunciando a real
situação da economia brasileira país, Dilma Rousseff jamais teria
se reelegido. A mídia que o governismo denuncia como golpista foi,
nas verdade, gravemente omissa – e para benefício do próprio
petismo.
O caso das agências de rating
Mas,
para além do atípico período de campanha eleitoral, poucos
episódios políticos recentes têm ilustrado com tanta propriedade a
falsidade da dicotomia mídia versus governo do que a cobertura que
vem sendo dispensada ao ajuste fiscal. A atuação midiática, que já
se mostrava há tempos longe do estereótipo projetado pelo
governismo, passou a deste distoar ainda mais com o anúncio do
rebaixamento da nota do Brasil, primeiro pela agência de risco
Standard & Poor's, depois pela Moody's, com a decorrente
perda do grau de investimento.
O
que se assistiu no noticiário, de forma geral, não foi, de modo
algum, a algo que se assemelhasse a uma reação revanchista, de
criticismo desmedido ou raivosa – pelo contrário, grande parte da
imprensa e da mídia televisiva do país pareceu desde então
engajada em uma espécie de “campanha cívica” pelo ajuste
fiscal. A qual dá mostras de incluir um esforço extra para
popularizar e “tornar simpático” o reservado Joaquim Levy e para
transformar o aumento de impostos em um leve esforço individual pelo
bem do país. Que ”PIG” bonzinho...
Levy
na Globo
O
deslanche de tal campanha se deu na mesma quarta-feira em que a nota
do Brasil fora rebaixada pela primeira vez, com uma entrevista ao
vivo do ministro ao Jornal da Globo, logo após o futebol. Precedida
por uma daquelas simplificações que envergonham o jornalismo
econômico – com os apresentadores afirmando que o rebaixamento da
nota do país corresponderia, para o cidadão, a ficar com o “nome
sujo” na praça – a entrevista serviu, sobretudo, para o ministro
vender o seu peixe.
Aludiu
à dificuldade de fazer cortes na Saúde e na Educação, omitindo
que este ano já os fizera, e de forma significativa (são as duas
áreas mais recortadas por sua famosa tesoura) e chegou a cometer
platitudes como “a baixa popularidade nos dá uma oportunidade para
aumentá-la”, sem ser questionado pelos entrevistadores.
Uma
comparação da entrevista de Levy com aquelas feitas com candidatos
à Presidência a cada eleição pelo mesmo Jornal da Globo dá a
ideia precisa do comportamento de um atipicamente cordato e pouco
incisivo Waack e de uma protocolar Christiane Pelajo como
inquisidores: nenhuma interrupção, nenhuma insistência, nenhuma
contestação às afirmações e supostos dados apresentados - apenas
um repertório de perguntas para que o entrevistado dissertasse à
vontade. Contraposto, por exemplo, ao bombardeio verbal de Ana Paula
Padrão e Franklin Martins contra Anthony Garotinho, foi um passeio
no parque.
Campanha
“cívica”
No
dia seguinte ficou claro que não se tratava de um ato isolado:
excetuada a maioria dos colunistas de opinião, o que se leu e viu,
na imprensa e no restante da mídia, foi uma verdadeira operação de
marketing governista. E com Levy onipresente, com sua fala mansa e
pontuada de diminutivos repetida nas manchetes e programas, como um
mantra de convencimento coletivo, expressando a “certeza de que
todo mundo está disposto” a pagar “um pouquinho mais de imposto
para o Brasil ser reconhecido como um país forte”.
Não
é este o espaço apropriado para o debate acerca da atual questão
dos impostos no Brasil [já o esbocei em outra ocasião], tampouco de
desenvolver análises sobre a irônica contradição de um economista
formado na Escola de Chicago e tido como neoliberal ortodoxo
tornar-se publicamente conhecido por defender aumento de impostos. No
âmbito deste artigo, importa, em primeiro lugar, assinalar que tais
dados denotam o quanto, no caso em questão, o comportamento da mídia
em relação a Levy - e ao governo que ele representa - contradiz
frontalmente a oposição binária e automática entre este e aquela
que as hordas governistas vivem a bradar e o emprego generalizado do
termo “PIG” presume.
Razões
do alinhamento
Em
segundo lugar, faz-se necessário examinar as as razões pelas quais
a a mídia, neste caso, contraria uma alegada ojeriza ao governo
Dilma e se torna sua parceira em uma espécie de movimento em prol da
colaboração de todos para o ajuste fiscal. Uma hipótese provável
é que, ao endossar o aumento generalizado de impostos preconizado
por Levy, os grupos de mídia estariam expressando, uma vez mais, a
posição dos setores da elite que repelem medidas como a taxação
efetiva de fortunas ou de transações que afetem o rentismo.
Desta
forma, o jornalismo, que historicamente alardeia para si o dever
iluminista de informar ao povo, prefere cometer um grave desvio de
função e associa-se ao governo petista numa operação cuja própria
natureza classista é dissimulada e que visa promover a transferência
do ônus da crise para os cidadãos. Assim se explica o quase unânime
endosso midiático ao pragmatismo de Levy, cujo discurso coletivista
aparentemente simples oculta uma engenhosa fórmula para manter os
lucros do mercado financeiro e das classes mais abastadas ao abrigo
da crise, ao passo que faz a população arcar não só com o ônus
cotidiano desta, mas com o cumprimento das metas que o mercado impôs
para superá-la.
Questões
em aberto
Tudo
somado, resta a pergunta: como acusar de golpista uma mídia
empenhada em uma operação para convencer a população a se
sacrificar ainda mais, pagando impostos ainda maiores, para que o
governo Dilma Rousseff - o qual alegadamente odeia – tente cobrir o
rombo de R$50 bilhões que, pela própria incompetência, legou ao
país?
Ou,
posto de outra forma: quando será que aqueles que acreditam no mito
do “PIG” vão demorar para se aperceber de que não há porque a
mídia ser golpista contra um governo que, em plena crise, pune
trabalhadores e aposentados enquanto preserva o mercado financeiro e
as grandes fortunas?
Segunda
versão de artigo publicado originalmente no Observatório daImprensa.
(Imagem retirada daqui)
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