Há de se lamentar a morte de um ser humano, ainda mais se
pacificamente exercendo o seu ofício, e em condições perigosas.
Manifestar solidariedade com a interrupção abrupta de uma vida aos
49 anos, e com a dor dos familiares e amigos de Santiago Andrade, é,
portanto, prioritário neste momento. Mas a solidariedade e o
respeito ao luto são uma coisa; o sensacionalismo e a exploração
da dor alheia para fins políticos, outra.
Talvez
a maior parte das pessoas que leem este texto nunca tenha ido a uma
manifestação pública do tipo das que vêm acontecendo no Brasil
desde junho do ano passado. São eventos tensos, perpassados pela
possibilidade iminente de violência, onde o risco à integridade
física é real e imprevisível. Por isso mesmo, os profissionais de
imprensa que os cobrem fazem uso de um equipamento de segurança que
inclui capacete e colete à prova de balas. Infelizmente – e por
mais desagradável, neste momento, que seja apontar essa lacuna –,
Santiago não gozava de tais proteções, alegadamente porque a
emissora não as forneceu. Porém, com uma ou outra exceção, na
cobertura midiática e nos tantos artigos plenos de corporativismo
que os analistas têm produzido após a morte do cinegrafista, tal
omissão criminosa tem recebido pouquíssima atenção, talvez por
esta estar quase exclusivamente direcionada ao revanchismo contra os
manifestantes apontados como responsáveis pela tragédia.
Violência
disseminada
O
caráter violento das manifestações, derivado em grande parte do
despreparo e abuso das forças policiais e de estas serem instruídas
por seus superiores a reprimir - e não meramente a acompanhar - tal
exercício constitucional do direito ao protesto, não se evidenciou
a partir da morte de Santiago Andrade. Muito pelo contrário: há
dezenas de jovens feridos com gravidade – inclusive casos de
cegueira por bala de borracha - e flagrantes filmados de violência
policial que incluem espancamentos diversos, uso abusivo de bombas,
spray e gases, além do atropelamento intencional de uma jovem
recém-torturada. Mais revelador: no mesmo dia em que o cinegrafista
da Band foi atingido, outra morte ocorreu em decorrência dos
protestos, mas como não se tratava de um profissional de uma grande
corporação midiática - e sim de um velho jornaleiro, de nome
Tasman Amaral Accioly -, a mídia não se ocupou em lastimá-la.
Essa
indignação seletiva eivada de corporativismo acabou por reunir um
arco inusitado de vozes do espectro politico-midiático, de Mário
Magalhães a Reinaldo Azevedo, passando pelos mais fanáticos
blogueiros governistas e pelos mais famosos apresentadores de
telejornais, numa catarse que mais evidencia do que disfarça o
intuito de criminalizar as manifestações populares, cuja
independência e imprevisibilidade incomoda tanto setores da velha
esquerda – desde órfãos do "partidão" a renitentes
petistas - quanto o conservadorismo, além de atentar contra o
"complexo de Tirébias" e o cerrado corporativismo dos
jornalistas, cuja reação histérica ante a morte de "um dos
seus" contrasta com a passividade resignada com que aceitam as
milhares de mortes de jovens negros e pobres que a repressão
periférica institucionalizada - esta sim, autenticamente fascista –
promove com regularidade diária.
Pesos
e medidas
A
comparação com o pouco caso para com tanta violência pregressa - e
até para com outra morte em contexto de manifestações populares -
evidencia que a reação midiática, inflamada a partir do anúncio
do óbito do cinegrafista, jamais foi a expressão de uma genuína
indignação, cívica ou moral, mas o aproveitamento oportunista de
uma tragédia que, ao contrário das várias anteriores, reúne
quatro características únicas: permite culpabilizar os
manifestantes (e não as forças policiais); está documentada, em
registros videográficos diversos, do início ao fim (não
possibilitando justificar-se como emprego necessário da força, como
de ordinário as forças policiais o fazem); devido ao fato de
registrar um profissional de mídia no exercício de suas atividades,
facilita tanto a mobilização corporativista – de ordinário
enorme entre jornalistas - quanto, de modo geral, a identificação
do homem comum com o falecido (não por acaso, editoriais e colunas
deram repetida ênfase à descrição "trabalhador morto no
cumprimento do dever").
Deflagrado
o show midiático, o que seria uma justificada comoção pela morte
de um valoroso ser humano começou a dar lugar a um show de
oportunismo e manipulação da boa fé da audiência. A aparente
comoção dos apresentadores de telejornal foi tão somente a face
mais visível de uma batalha pela opinião pública, com os atores
políticos disputando um pedaço do cadáver para fazer avançar a
própria agenda política, pois logo ficou claro que aquela era a
oportunidade esperada tanto pelo governismo quanto pela mídia para
criminalizar os protestos, simular a urgência da instauração de
uma legislação antiterrorismo e impor o vigilantismo na internet
via aprovação do projeto do Marco Civil. Já no dia seguinte, o
governo Dilma comandava, a toque de caixa, tais votações. [Graças
aos partidos de esquerda e a um rasgo de sensatez de parte da bancada
petista, a votação do projeto foi adiada em duas semanas, mas
continua na pauta de votações do Senado.]
O
mundo ao avesso
Referindo-se
a esse atual conluio fúnebre entre mídia e "blogueiros e
comentadores de 'esquerda'", Bruno Cava vai ao ponto nodal da
operação discursiva posta em prática:
"Invertendo a relação de causa e efeito, atribuem a responsabilidade sobre a violência para o lado dos manifestantes (é exceção e raridade machucarem alguém), e não na polícia (é regra e modus operandi machucarem muitos, sob ordens superiores). Nesse raciocínio invertido, os não-violentos deveriam cessar a violência para que os violentos de sempre não possam ter mais um pretexto para ser violentos."
Corroborando
a descrição de Cava, a violência aparece nos relatos indignados
que hoje infestam páginas e bites como uma tática voluntariosa e
gratuita dos manifestantes, e não como o que de fato tem sido: uma
medida reativa à violência desproporcionalmente maior,
institucional e ilegal - pois violadora do direito constitucional à
manifestação pública – sofrida.
Fatos
negligenciados
Além disso, a
atmosfera de turba, em que à justificada revolta por uma morte em
tais circunstâncias somam-se sentimentos corporativos, interesses
políticos inconfessos e o desejo de maior liberdade de repressão
por parte do Poder, parece ter impedido que se atentasse para dois
fatos de suma importância:
O
primeiro é que não se tratou, a rigor, de uma tentativa intencional
de assassinato, mas de uma fatalidade. Certamente foi uma imprudência
deixar o rojão aceso no chão – e quem o fez deve arcar com as
consequências legais – mas daí a se falar em homicídio doloso
ou a comparar a irresponsabilidade do ato com o sadismo dos que
deliberadamente prenderam um rapaz nu a um poste - como fez uma
comentadora a quem muito respeito mas de quem neste caso discordo
frontalmente - vai uma distância considerável, que passa pelo
contexto violento inerente ao protesto em questão, pela
imprevisibilidade da trajetória do rojão, pelo caráter aleatório
da ação e, sobretudo, pela ausência de intencionalidade assassina.
O
segundo fato que tem sido negligenciado é que se tratou,
alegadamente, da ação isolada de dois indivíduos – cujo direito
à presunção de inocência tem sido amplamente negligenciado, como
observa o professor Pablo Ortellado. Portanto, sua tipificação
como uma ação criminosa dos Black Blocs não passa de uma
generalização, uma projeção injustificada que, num misto de
wishful thinking e oportunismo, se quer impor aos fatos, à
revelia destes. Achar que os manifestantes vão deixar de reagir
violentamente à violência que sofrem tão somente por exercerem seu
direito ao protesto é ingenuidade, assim como atribuir toda e
qualquer reação a Black Blocs é generalização improcedente.
Bode
expiatório
Mesmo
assim, como seria despropositado culpar, de forma genérica, os
manifestantes pela morte do cinegrafista, a mídia e o governismo na
internet aproveitam a oportunidade para atribuí-la, embora sem prova
alguma, aos Black Blocs, aos quais devotam um ódio figadal tanto por
terem infundido coragem e determinação a muitos manifestantes quanto
pelo caráter errático e agressivamente anticapitalista de sua ação.
Muito se tem escrito sobre esse fenômeno, infelizmente por gente que
não os conhece, não os entende, nunca os estudou e sequer sabe que
denominam tanto um coletivo eventual de manifestantes quanto uma
tática urbana.
Essa
ignorância pode vir a provocar mais violência futura, pois os Black
Blocs são o sintoma e não a doença, a reação do organismo a uma
violência periférica cotidiana, a um brutalismo que transcende o
âmbito da fisicalidade e impregna o inconsciente coletivo. Daí a
identificação que desfrutam em amplos setores da juventude e o ódio
que despertam em quem tem banzo por protestos bem comportados, como o
Poder determina. Não é com a desqualificação a priori , com o
incremento da já inaceitável violência policial ou com a eventual
adoção de eventuais leis de exceção que se vai detê-los. Afinal,
presume-se que estamos numa democracia.
Mudanças essenciais
A
não ser que se aposte em um banho de sangue, a diminuição da
violência nos protestos populares não virá nem através de leis
draconianas nem com a criminalização dos manifestantes, sejam os
dois bodes expiatórios da vez, um punhado de Black Blocs ou milhares
de protestantes. Pois ela passa, em primeiro lugar, pelo diálogo
aberto entre população e governos, item básico das democracias
contemporâneas, mas que tem sido amplamente negligenciado no Brasil.
Demanda, obrigatoriamente, a extinção da polícia militar e sua
substituição por uma força policial profissional treinada, bem
remunerada e orientada a respeitar a Constituição, inclusive no que
tange ao direito à manifestação pública. Por fim, passa pela
equação dos pornográficos índices de violência brasileiros, cuja
reverberação nas passeatas é um pálido reflexo, mas cuja presença
cotidiana na vida da juventude tende a ser introjetada e reproduzida.
Paz sem voz é medo.
3 comentários:
Cara, acho demais os seus artigos. Nota 10 para todos os que li até hoje, mas, não entendi quando você fala que "como fez uma comentadora a quem muito respeito mas de quem neste caso discordo frontalmente".
Com todo o respeito e consideração que as suas opiniões merecem, não entendo o porquê do seu respeito a tal apresentadora, ela é simplesmente uma fascista, preconceituosa, que prega ódio a tudo que cheira a povo.
Grande abraço!
Itárcio, meu caro,
Agradeço seus comentários, sinceramente.
Quanto à "apresentadora", está havendo uma confusão. Não é a Rachel Sheherazade, não!!! No way! (note que eu escrevi "analista".)
E sim uma amiga querida, de esquerda, mas que escreveu um artigo igualando os torturadores do menino e os que acenderam o rojão. Eu preferi não identificar para evitar melindres. Mas vc não tinha mesmo como saber. Desculpe nossa falha...
Um abraço,
Mauricio.
Maurício,
Eu que peço desculpas pelo meu engano.
Parabéns mais uma vez pelos seus excelentes artigos.
Grande abraço,
Itárcio.
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