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quarta-feira, 15 de abril de 2009

"24 Horas" volta às telas: anacronismo?

Bauer e o principal coadjuvante da série, o celular

O agente Jack Bauer está de volta às telas da TV a cabo brasileira – e a primeira impressão é de um atroz anacronismo.

Na vida real, os vôos secretos da CIA para levar suspeitos de terrorismo para a tortura terceirizada eram, agora temos certeza, verdadeiros, mas acabam de ser alegadamente desativados; a Guantánamo/Doi-Codi da “era Bush” vive seus últimos dias, ao mesmo tempo em que o fim do criminoso embargo dos EUA a Cuba torna-se uma miragem mais próxima.

Em pleno reflorir da “era Obama”, as situações e personagens da série que a Fox exibe nas noites de terça, envoltos em eterna desconfiança e paranóia, com seu protagonista sempre disposto a transgredir as leis e torturar e seus presidentes (na atual temporada, uma mulher) que fazem de tudo para reafirmar a supremacia imperial norteamericana, parecem pertencer a um passado distante.

Mas talvez seja ainda cedo para tal avaliação – e isto vale tanto para o real legado de Obama quanto para o desfecho da sétima temporada de uma série que, embora sempre controversa, não se deixa sucumbir facilmente pelo criticismo.

24 Horas é certamente o programa de ficção que mais intensivamente explorou a configuração ideológica pós-11 de setembro e o inconsciente coletivo da “era Bush”. Assim que foi ao ar pela primeira vez, a série tornou-se, ao mesmo tempo, um produto midiático muito bem-sucedido em termos técnicos (e comerciais) e uma criação ficcional com implicações político-ideológicas altamente problemáticas, levando ao limite o dilema “forma versus conteúdo”.

O sucesso inicial da série parecia dever-se ao uso do “tempo real”, através do qual o tempo diegético (aquele passado no interior da trama) equivaleria ao tempo no universo habitado por nós, os espectadores, e pela utilização de múltiplas telas exibindo ações simultâneas – duas técnicas narrativas que, longe de constituir novidade, pertencem à infância do cinema, tendo sido utilizadas com brilho ao longo do tempo por cineastas diversos, como Hitchcock, Andy Warhol, Peter Greenaway e Tom Tykwer (o diretor de Corra, Lola Corra).

Mas, nas temporadas seguintes, o sucesso de público e de crítica evidenciaram que havia mais do que meros artifícios de efeito em 24 Horas. Em virtualmente todos as categorias técnicas - destacadamente na montagem, direção de arte, edição de som e fotografia - a série preenche com folga os requisitos que John Caldwell definiu como distintivos da qualidade na TV. Mais do que isso: a premiada equipe de roteiristas levou a um novo patamar o grau de complexidade das múltiplas tramas paralelas, tornando-se case study para oficinas e cursos de roteiro; a política de casting (escolha de elenco) conseguiu, ao menos até a quinta temporada, minimizar e eventualmente dirimir as acusações de racismo ou de preconceito étnico - um feito digno de nota em meio à guerrilha multicultural norteamericana; os elencos, de modo geral, tiveram um desempenho bem acima da média da televisão dos EUA (que já é alta), destacadamente Kiefer Sutherland, que, sem ser um ator de primeira linha, apresenta um trabalho de voz notável (observe que NINGUÉM fala ao celular como Jack Bauer...).

Já o conteúdo ideológico de 24 Horas tem sido há tempos apontado como veículo para difusão, para um contingente amplo de espectadores, de uma forma perniciosa de conservadorismo, como apontaram numerosas críticas, preocupadas com o papel formativo e pedagógico que o programa poderia vir a exercer na opinião pública em relação aos direitos individuais sob o pretexto da "guerra ao terror”. O fato de a série ser exibida pela Fox, cujo canal de notícias representa a “vanguarda do atraso” neocon só fez reforçar as desconfianças.

Com efeito, por mais que as estratégias compensatórias adotadas pelos responsáveis pela série dissimulem, fica difícil negar que sua produção discursiva reforça uma visão imperialista dos EUA; que estimula, por vias tranversas, o preconceito contra estrangeiros, muçulmanos sobretudo – o que gerou volumosos protestos públicos na sexta e mais polêmica temporada da série -; e, sobretudo, que são plenamente justificadas as preocupações quanto à naturalização da tortura como método investigativo, ainda mais em um produto de massa (tema de um artigo para variar irretocável de Slavoj Žižek).


Prefiguração de Obama?

Já no primeiro episódio da atual temporada, quando Jack Bauer começa a torturar um suspeito com uma caneta, não há como não dar razão a tais críticas. Porém não dá também para esquecer que, embora negros retratados como presidente dos EUA tenham aparecido amiúde no cinema norteamericano, foi 24 Horas quem apresentou, por um longo tempo, encarnado pelo carismático Dennis Haysbert (foto), o presidente negro mais charmoso, determinado e competente das telas, naturalizando, num programa de massas, a idéia de um afroamericano na Casa Branca, no que pode ser entendido como uma prefiguração justamente de... Barack Obama.

É por essas e por outras que todo cuidado é pouco ao analisar 24 Horas. Portanto, parece recomendável aguardar o final da atual temporada antes de emitir juízos de valor quanto ao eventual anacronismo do programa em relação à "era Obama". ..

Um comentário:

Hugo Albuquerque disse...

"Portanto, parece recomendável aguardar o final da atual temporada antes de emitir juízos de valor quanto ao eventual anacronismo do programa em relação à 'era Obama'".Perfeito, acertou na mosca. Sobre o seriado em si, confesso que não tenho estômago para acompanhar - sem dúvida, foi uma das mais perfeitas expressões do fascismo da Era Bush.