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quinta-feira, 30 de abril de 2009

Universidade e imperialismo

“Qual é hoje a vocação maior do pensamento brasileiro? O caminho a evitar é o percorrido pelas ciências sociais e pelas humanidades nos países do Atlântico Norte. Nas ciências sociais, a começar por economia, prevalece lá a racionalização do estabelecido: explicar o que existe de maneira a confirmar a necessidade, a naturalidade ou a superioridade das instituições estabelecidas e das soluções triunfantes (...) Nas humanidades, a fuga da vida prática: divagações e aventuras no campo da subjetividade, desligadas do enfrentamento da sociedade como ela é. (...) No Brasil, estamos, em matéria de alta cultura, a reboque disso (...) Para compreender nossa experiência nacional, temos de executar obra de pensamento de valor universal” (Roberto Mangabeira Unger, “A inteligência brasileira”, Folha de São Paulo, pag. A2, 20/03/2007).

No texto acima, uma das mais contundentes análises acerca dos descaminhos do pensamento acadêmico/cultural brasileiro e de suas relações com a “metrópole” publicada na mídia nacional, é paradoxal - porém altamente revelador - que a perspectiva adotada pelo colunista advenha de um profissional que ocupou, por décadas, uma cadeira de professor numa das mais bem-conceituadas universidades norteamericanas (e do mundo), Harvard. Mangabeira Unger tem, portanto, o álibi de estar isento de acusações de antiamericanismo. Tornadas um anacronismo impensável num cenário midiático hegemonicamente neoliberal, as idéias que expõe no artigo, não receosas de apostarem na originalidade e na necessidade de independência do pensamento brasileiro, tenderiam, entretanto, a ser execradas se cometidas por um incauto jornalista ou acadêmico nativo (isso na eventualidade de, com opiniões tão “retrógradas”, ser-lhe concedido espaço na imprensa ou nas editorias acadêmicas).

A universidade pública brasileira tem sido, a despeito de todas as dificuldades econômicas, dos muitos processos viciados de recrutamento de professores e de pós-graduandos e de algumas mazelas herdadas da ditadura - e não erradicadas em duas décadas de democracia -, um espaço de debate democrático, de formação de cidadania e de produção de conhecimento de alto nivel, um dos poucos bastiões de vida inteligente em um país no qual o nível do debate cultural encontra-se há tempos em grave crise - para a qual muito contribui a "grande mídia", notadamente a televisiva.

No entanto, o modelo estrutural adotado para o gerenciamento da universidade no Brasil - baseado em quantificação sistemática e qualificação “ranqueada” da produção acadêmica - tem sido importado e disseminado de forma acrítica, aí incluídos os critérios valorativos que regem tal ranking e a indistinção com que vêm sendo aplicados.

O procedimento de naturalização da importação de tais critérios e das práticas por eles determinados, ambos forjados no âmbito da universidade norteamericana e aos quais a academia brasileira voluntariamente se submete, significa o endosso (do colonizado) a um exitoso processo de imperialismo cultural, o qual, como apontam Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant:

“Repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais (...) Hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro” (“Sobre as artimanhas da razão imperialista”, 11).

"Naturalizada" pela importação massiva e acrítica de qualquer lixo audiovisual produzido no Atlântico Norte (é precisamente o caso da série cuja fotografia encima este post), colabora para a escassez de debates acerca de tais temas a bem-sucedida operação discursiva neoliberal que promove uma oposição maniqueísta entre globalismo e nacionalismo, caracterizada pela fixidez, em que o primeiro termo tende a ser associado a valores como liberdade e pluralismo, e o segundo a anacronismo e obscurantismo - quando não, em flagrante distorção descontextualizada, a certas tendências políticas que atingiram seu ápice na Europa dos anos 1930 e 1940.

O dado objetivo a se considerar é que o atual desprezo pelas ligações entre produção de conhecimento e imperialismo - garantido pela manutenção da desqualificação a priori das críticas nas bases mencionadas no parágrafo anterior - pode vir a ser custoso para o futuro da academia e da cultura do país.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Passagens aéreas e falso moralismo

Idealmente, os princípios e a conduta de um homem público devem balizar-se pelos mais elevados padrões éticos da sociedade em que vive, em consonância com os ditames de sua consciência, mantendo, com correções pontuais, consistência ao longo do tempo e recusando-se a variar súbita e frequentemente de acordo com as circunstâncias e o julgamento do meio externo – do contrário, estamos diante de um canastrão, que se utiliza de um discurso ético como meio de promoção pessoal mas não se importa verdadeiramente em segui-lo.

Essa é uma das razões que fazem com que a reação "pró-ativa" do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), revelando, antes que a imprensa o descobrisse, que cedera passagens de sua cota congressual para parentes viajarem ao exterior, para então ter a desfaçatez de, após ter avisado a mídia, repisar o discurso ético que o consagrou nos últimos anos, seja muito mais hipócrita - e desmistificadora de sua pantomina pública - do que a de outros parlamentares, até mesmo do cambiante Michel Temer.

Famoso pela hábito de apontar o dedo inquisidor contra seus pares e por uma trajetória caracterizada por mudanças extremas – da guerrilha ao desbunde, do discurso libertário ao moralismo tacanho, da esquerda petista à direita peessedebista, da beatitude dos puros à burla dos malandros -, Gabeira não é nenhum ingênuo e é muito bem preparado intelectualmente. Quem é há tempos familiarizado com seus escritos sabe que ele é capaz de analisar em profundidade as implicações éticas de uma situação e tem uma visão extremamente crítica da mídia. Se se deixou ser alçado por uma certa imprensa ao posto de Moralista-Geral da República foi porque o quis; se prefere manter o circo em movimento, fazendo questão de agendar com antecedência mais um número de moralismo na Câmara, logo após seu ato imoral tornar-se público, é porque quer extrair dividendos políticos do picadeiro. Como diz o belo samba de Nelson Sargento, não passa de um falso moralista.

Imprensa leviana não torna escândalo menos sério
Discordo dos que, como Luís Nassif, consideram a festa com as passagens aéreas um pecadilho menor, “festival de irrelevâncias”. O fato de o escândalo ser incomparavelmente menos danoso aos cofres públicos e ao bom funcionamento da democracia do que os megaesquemas de corrupção e “o lobby descarado no meio parlamentar” não o torna inócuo. Tampouco a circunstância de estar sendo explorado pela “grande imprensa” o transforma em irrelevante, como quer fazer crer Nassif, no que interpreto como efeito colateral de sua heróica porém desgastante batalha com a Veja.

Instrumentalizados para fins escusos, os clamores éticos deixam de sê-lo e em seu contrário se transformam. Esse truísmo pede que se filtre com olho crítico toda e qualquer acusação de corrupção – particularmente aquelas que têm como origem as corporações de mídia, pois comprometidas com o grande capital. Isso posto, é preciso ter claro que a idéia de que, por conta de distorções e exageros no comportamento da imprensa, devamos ser tolerantes com desvio sistemático e mal uso de dinheiro público é um pressuposto sem sentido e uma distorção axiológica inaceitável, que vão contra o aprimoramento da democracia no país.

É fato que setores da “grande imprensa” tornaram-se useiros e vezeiros em explorar a mais improvável suspeita de corrupção, não raro de forma leviana e quase sempre com um moralismo simplista, neoudenista, que cala nos estratos médios mais suscetíveis à mídia corporativa; é fato também que esta tem se mostrado francamente tendenciosa, com grande interesse pelo governo Lula e pouquíssimo ou nenhum pelas administrações peessedebistas do Sul/Sudeste (Serra, nessas reportagens, só como sinônimo de montanha).

Desse cadinho de mau jornalismo, escândalo fácil e interesses corporativos tomou forma a onda de neomoralismo da qual Gabeira, em nova versão de si mesmo, despontou como estrela. Apagou o baseado, vestiu um terno por cima da famosa tanga e, remodelado segundo o figurino peessedebista, trocou Ipanema por Irajá. No caminho, enquanto fingia não ver o valerioduto e os desmandos do governador paulista, ia bradando impropérios contra a corrupção no governo federal. O sucesso foi tanto que, após enfrentar Severino Cavalcanti, veio a glória: tornou-se capa da Veja, que o alçou ao posto de grilo falante da moralidade nacional (clique aqui para ler a carta aberta deste blogueiro a Gabeira e aproveite para espiar a medonha capa citada).

Reações não se limitam à hipocrisia
Atitude mais digna do que Gabeira & os Falsos Moralistas teve a senadora Luciana Genro (PSOL-RS), que, arguida quanto às passagens de sua cota cedidas ao delegado Protógenes Queiroz – que fora protagonizar um debate numa universidade do Sul -, defendeu o que fez, argumentando que o uso da cota para fins políticos estava previsto no regimento. Confesso que, na hora, me decepcionei com sua resposta, pois considerei (e ainda considero) que traduz uma profunda incompreensão do sentimento popular em relação às benesses usufruídas pelos membros do Congresso, comparadas à dureza da vida cotidiana da grande maioria dos brasileiros. Mas, ante o festival de hipocrisia e falta de caráter que se seguiu, vejo-me obrigado a reconhecer que declaração de Genro é um oásis de coerência.

A senadora gaúcha se diferencia de Gabeira, em relação a esse episódio, em dois aspectos: primeiro, porque, ao invés de desrespeitar o regimento e simplemente surrupiar suas cotas para o turismo familiar, utilizou-as de acordo com as normas internas, alegando que se não fizesse uso das passagens que têm direito para fins políticos e os outros senadores não fizessem o mesmo estaria criada uma assimetria prejudicial ao seu partido; segundo e mais importante, porque, ao contrário de Gabeira, recusou-se a adotar uma ética dupla, que passa a considerar o uso das passagens errado somente a partir do momento em que a mídia o descobre (ou está claramente na iminência de fazê-lo).

Caso é ultrajante e pede soluções
O que é ultrajante nesse caso das passagens aéreas é que elas são claramente um supérfluo, um mimo percebido pela opinião pública como algo desnecessário, dado o fato de que os parlamentares a distribuem, a rodo e sem respeitar os preceitos regimentais, a terceiros (e ora confirmam-se as suspeitas de que vários parlamentares as comercializam com agências de viagens).

Considero Eliane Cantanhêde uma das mais tendenciosas e frequentemente equivocadas colunistas em atividade. No entanto, em relação a esse caso, concordo com a jornalista da Folha de São Paulo: é preferível discutir o aumento de salários dos congressistas (que, pelo princípio da isonomia entre os três poderes, equiparia seus vencimentos aos dos ministros do STF), desde que sejam cortados TODOS os demais benefícios. Mas é claro que a maioria dos parlamentares, cientes da leniência na fiscalização, descarta o desgaste que tal discussão provocaria e prefere continuar chafurdando no pântano do mau uso do erário, encobertos pelo cipoal de verbas diversas.

De Ética e de Política
“Política não se limita à Ética, mas também não prescinde dela”. Foi meditando sobre essa frase, que eu lera horas antes no blog O Descurvo, que me dispus a escrever este artigo. O sentido que ela tem no texto de Hugo Albuquerque, ao menos como eu a compreendi, prioriza a interpetação de que há aspectos da política que transcendem a ética, mas que esta não deve jamais ser negligenciada.

No entanto, Gabeira, com seu moralismo espalhafatoso e interesseiro, permite ler a frase de outro modo: que fazer política não se restringe a explorar a ética (como um cafetão explora uma prostituta), pois, inerente à Política, a verdadeira Ética, como o oprimido de que nos fala Freud, retorna para deixar o hipócrita nu em praça pública.

(Originalmente publicado no Observatório da Imprensa em 23/04/2009. Fiz ligeiras modificações).

segunda-feira, 27 de abril de 2009

sábado, 25 de abril de 2009

Não dá mais: precisamos de uma nova mídia, urgente

Ler os principais jornais do país no dia seguinte ao gesto épico do ministro do STF Joaquim Barbosa – que, como se imbuído do espírito do povo brasileiro, investiu contra um presidente de tribunal que não está à altura do cargo - evidencia que a crise da imprensa é muito mais grave do que o pior pessimista poderia supor.

O sempre pertinente Altamiro Borges resume o descalabro em um belo post. Nos próximos parágrafos vamos aprofundar análises especialmente sobre a edição da Folha de São Paulo do dia seguinte ao gesto republicano de Joaquim Barbosa, edição esta também histórica, porém em sentido inverso, pois marca o momento em que o “jornalismo” praticado pelo diário atingiu, como um todo e em diversos quesitos, o ponto de escárnio.

Começa na capa, onde a foto de um sorridente Gilmar Mendes, ao lado de Michel Temer, encima, entre outras, a chamada da matéria intitulada: “Após discussão, presidente do STF nega crise institucional”. Se havia dúvidas quanto à posição que diário dos Frias assumiria, a capa fornece as pistas necessárias para dissipá-las.

Editorial tendencioso
Mas é o editorial intitulado “Altercação no STF” quem as dirime definitivamente. Eis a abertura: “O ministro Joaquim Barbosa excedeu-se na áspera discussão travada anteontem com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Não se justificam os argumentos "ad hominem" e a linguagem desabrida empregada (...)”. Ao contrário do que manda a norma da redação de editoriais, não há ponderação ou busca pelo equilíbrio argumentativo, analisando as razões e desrazões dos dois lados; a contextualização se resume à recriação manipulada da discussão, como se de um rompante de momento se tratasse, sem nenhuma alusão às atitudes pregressas de Mendes e ao ânimo do Judiciário e da opinião pública em relação a elas.

Após uma descrição um tanto minuciosa do diálogo que precedeu o momento mais crítico da discussão, o editorial prossegue: “Foi no ato seguinte, entretanto, que o ministro Barbosa abandonou a compostura e rompeu de vez o protocolo. Acusou Mendes de estar ‘destruindo a Justiça deste país’ e, num rompante descabido, afirmou que o presidente do tribunal não falava, ali, ‘com seus capangas de Mato Grosso’”. Ou seja, Barbosa, segundo a Folha, foi quem perdeu a compostura - e, de acordo com o editorial, por um motivo banal, já que o "objeto do debate" foi tão-somente "uma lei paraense".

Não deixa de ser curioso notar que em relação ao ponto que articulistas do Observatório da Imprensa que de forma alguma se caracterizam pelo radicalismo, como Carlos Brickman e Luciano Martins Costa, apontaram como a referência que mais deveria interessar à imprensa no episódio – os tais capangas matogrossenses – o editorial se limita a criticar Barbosa pelo “rompante descabido” de mencioná-lo, sem que o jornal demonstre nenhum espanto ou interesse em investigar a denúncia implícita.

Apesar de todos essas distorções, o que chama ainda mais a atenção no editorial são suas omissões: nenhuma palavra sobre o mal-estar na sociedade e no próprio ambiente jurídico causado por decisões anteriores de Mendes – notadamente o segundo habeas corpus a Daniel Dantas -, nem sobre sua exposição midiática, diretamente mencionada por Joaquim Barbosa durante a discussão, ao afirmar que o presidente do STF deveria sair às ruas (único trecho da discussão não reproduzido pelo editorial, numa clara manipulação para omitir tanto as razões pregressas que motivaram a discussão quanto os indícios sobre a posição da opinião pública). Depois disso, seria ingênuo imaginar que o jornal mencionasse uma palavra sobre as suspeitíssimas ligações trabalhistas entre seis dos juizes do STF e o instituto educacional de propriedade de Mendes. Se isso é jornalismo, eu sou o Pato Donald.

Estratégia anti-Barbosa se delineia
É importante prestar atenção à estratégia empregada pelo editorial, porque, ao que tudo indica, ela será repetida por outros veículos de mídia. Ela inclui o desprezo pela opinião pública, mas seu conceito-chave é a descontextualização, pois esvaziando o ato de Barbosa de qualquer motivação anterior que a justifique, o que se tem é um ministro do mais alto tribunal exaltado e muito nervoso em meio a um debate corriqueiro sobre questiúnculas jurídicas – quais mesmo? Acrescente-se o fator racial e o fato de o ministro ter sido indicado por Lula e o potencial de exploração sensacionalista do caso - contra o ministro - cresce consideravelmente.

Demonstrativo dessa estratégia, o caderno Brasil apresenta longa matéria, assinada por Andréa Michael e Felipe Seligman, que ao final alega que “A Folha apurou que a intenção do ministro era sinalizar para Mendes, publicamente, que não aceitava ser tratado como um subalterno”. Ou seja, desprezando todo um contexto muito mais amplo e de motivações e consequências muito mais sérias, tenta tornar pessoal a questão, pintando, ainda, o ministro Joaquim Barbosa como um complexado rancoroso motivado pelo ego ferido.

Cantanhêde se supera
Tentanto afetar isenção mas pontuando seu artigo de insinuações e maledicências, Eliane Cantanhêde produz um texto cujas manipulações só não se evidenciam para um leitor desfamiliarizado com o contexto do caso em questão. Ela parte de comparações entre Mendes e Barbosa, qualificando o primeiro, entre aspas, de “líder da oposição” e o segundo, idem, de o “da cota do Lula”, como se a atuação de Barbosa no caso do “mensalão” não esvaziasse de sentido ou ao menos relativizasse consideravelmente a acusação melíflua - e como se, apenas por ocuparem momentaneamente pólos antagônicos, se equivalessem em termos de projeção de mídia e poder e Barbosa não tenha sido, até o episódio da discussão no STF, apenas mais um dos sete ministros indicados ao STF pelo atual Presidente da República.

Em seguida, alegadamente vocalizando terceiros, exalta Mendes (que teria sido, segundo ele mesmo, primeiro aluno da classe) enquanto denigre Barbosa, tornando público a fofoca segundo a qual ele esteve “entre os últimos da turma” e que, sussurra-se “entre os gabinetes”, seria o “agente do MP” no Supremo. Para ela, Mendes defende “os clássicos do direito” e Barbosa, “uma certa popularização, em favor de uma ‘Justiça de resultados’”. Não é a simplificação grosseira e malandra - o clássico versus o populista, com toda a carga pejorativa que a denominação carrega - que acabou de cometer que a preocupa, mas o custo que ser “menos camarada com os poderosos [como, segundo ela, propõe Barbosa] poderia ter”. Não, você não leu errado, é isso mesmo, a preocupação é com o custo de a Justiça ser menos camarada com os poderosos...

Para encerrar, jornalista ciosa que é (cadê o acento de ironia?), reconhece que Mendes “é apontado como arrogante” e que se expõe demais na mídia, para então disparar, afirmativamente e sem atribuir as palavras a outrem: “Barbosa tem uma personalidade agressiva, a ponto de fazer inimigos entre seus pares”. Lá no finalzinho menciona o julgamento do "mensalão", mas só para, melíflua uma vez mais, se referir à troca de emails entre os juízes (tornada pública à época). Da atuação de Barbosa no caso, necas, mesmo porque tornaria insustentável parte de suas insinuações.

Sem os dois lados da notícia
Assinalando que pulo a coluna de Fernando Gabeira porque minha paciência com hipócritas encontra-se esgotada, resta o caderno Brasil, cuja cobertura do caso também prima por distorções. Continua a contrariar as normas do bom jornalismo – e do Manual de Redação – e ouve apenas um dos ministros (ganha uma conta no Opportunity quem adivinhar qual...). O único arremedo de contextualização que oferece é quanto à hiperexposição midiática de Mendes, criticada por um assessor do Planalto. Ouvir a opinião pública, nem pensar, mesmo porque corroboraria a afirmação de Luís Nassif quanto ao “descrédito dos jornalões” causado pela cobertura do affair Gilmar Mendes: “jamais vi um divórcio igual entre a linha dos jornais e o pensamento do leitor”.

No entanto, chama a atenção o seguinte trecho da matéria de Michael e Seligman anteriormente mencionada: “O presidente Lula também tentou minimizar o episódio ontem, mas deixou um recado aos magistrados: que não resolvam diferenças em público. ‘Creio que, quando nós temos determinadas funções, é importante que a gente diga tudo o que quiser nos autos do processo, e não fique dizendo pela imprensa. Mas esse é o pensamento de um leigo, não de um magistrado’”. Fica a dúvida: o recado foi “aos magistrados”, no plural, ou a um certo magistrado?

Merece alusão, também, pela ligação transversa e epifânica com o caso, que há, na edição eletrônica do jornal (na qual se baseiam todas as análises deste artigo), entre as matérias sobre a discussão no STF, uma que anuncia os resultados (sic) do relatório da “CPI dos Grampos”, que “livra Lacerda, Dantas e Protógenes”. Repare na ordem em que os nomes são apresentados: significativamente, o nome de Dantas aparece após o de Lacerda e antes do de Protógenes, e, mais importante, como se se tratasse de réus, todos eles.
Por fim, há um texto avulso de opinião do quase sempre comedido Frederico Vasconcelos que, mais uma vez equilibrado, distoaria totalmente da linha do jornal, não fosse o título que recebeu e que absolutamente não condiz com o conteúdo da análise: “Credibilidade versus populismo”. Você já adivinhou quem a pessoa responsável pelo título julga ser digno de crédito e quem seria o populista, pois não?

E, tudo indica, essa será a toada seguida não só pelos jornalões mas pela mídia em geral. De total desrespeito pelos fatos, pela verdade e pela opinião pública, combinando descontextualização com acusações de "populismo jurídico", o que quer que isso queira dizer.

Tudo somado, só resta uma conclusão: atingiu-se o estopim, não dá mais: precisamos de uma nova mídia, urgente.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Crime e Castigo

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens” – a frase, atribuída ao filósofo e matemático grego Pitágoras, resume e antecipa em mais de vinte séculos pressupostos da filosofia iluminista de Jean-Jacques Rousseau, que o grande sambista dos anos 40 Wilson Batista sumarizaria em versos: “Se o homem nasceu bom/ e bom não se conservou/ a culpa é da sociedade/ que o transformou”.

Tais pressupostos encontram-se hoje em baixa, solapados pela ideologia punitiva que vicejou sob o neoliberalismo, açulada por sua vez pela explosão populacional, “no marco de sociedades fraturadas por linhas de pobreza e aturdidas pelo florescimento de ideologias individualistas e anti-solidárias”, como observa Beatriz Sarlo em seu belo livro Cenas da Vida Pós-Moderna.

Isso é ainda mais evidente no Rio de Janeiro de Wilson Batista, ainda e sempre “berço do samba e das lindas canções”, em parte porque sua topologia e suas pronunciadas assimetrias sócioeconômicas alimentam os pesadelos paleofuturistas das metrópoles do terceiro milênio, em parte porque um grande grupo de mídia não tem escúpulos em manipular, para seus ganhos políticos, a violência e o medo que esta – ou sua iminência, real ou sugerida – causam na população, “cidadãos completamente loucos com carradas de razão”, como canta o mais celebrado herdeiro de Batista.

Nesse quadro - marcado pelo maniqueísmo e por preconceitos de classe - o debate público em torno de cidadania e direitos tende a se restringir à ótica da criminalização. Como aponta a pesquisadora Helena Singer, “os discursos e as práticas sobre os direitos humanos não chegam à população sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim de culpabilização, penalização e punição, integrando um movimento mundial de obsessão punitiva crescente”. Daí, a popularização da expressão "direitos humanos de bandidos" - símbolo máximo de ignorância, alienação do sujeito e desconhecimento histórico, como se só àqueles a luta de séculos pela conquista dos direitos humanos se destinasse, e como se, ao violar a lei pelos homens escrita, passassem eles a pertencer a outra ordem ontológica que não a humana.

Mas não se limita a querelas brasileiras o recrudescimento de modelos punitivos. O acirramento do debate sobre criminalização e direitos humanos está intrinsicamente ligado à emergência de um “Estado penal e policial” nos EUA, em substituição ao “Estado caritativo”, como observa Loïc Wacquant em seu estudo sobre as políticas de segurança pública norteamericana nas últimas três décadas. No período, o país vivenciou uma escalada da penalização das relações sociais que, entre outros efeitos, intensifica a confusão entre pobreza e marginalidade. Sob a hegemonia do construcionismo social, avança-se com furor sobre questões comportamentais; a inimputabilidade penal está limitada, em alguns estados, aos sete anos de idade e a privatização do sistema prisional impulsiona o aumento exponencial do número de presidiários nas últimas décadas – com o fator “raça” sendo determinante na composição da população carcerária.

Talvez poucos se deem conta de que esse modelo vem sendo paulatinamente importado pelo Brasil, aparentemente de forma menos acelerada sob Lula do que no governo de seus precursores e certamente com particular vigor no Sul - região cujo Judiciário não prima exatamente pelo liberalismo. Mas sua importação, adequando-as às tradições de violência e repressão que caracterizam a vida nacional, encontra-se em curso. A privatização dos presídios está no horizonte; na prática,a abordagem criminal do uso de drogas predomina, a despeito dos avanços legais; no Rio e em São Paulo,"silêncios solidários" saúdam operações de extermínio praticadas por forças do Estado; a tortura, energicamente combatida quando aplicada aos militantes de classe média durante o regime militar, fixou-se como prática corriqueira não só nas delegacias e prisões, mas até nas instituições para "menores", para o que muito colabora a omissão de entidades uma vez ativas (e ora em franca deterioração), como a ABI e a OAB.

Parafraseando Drummond, "A liberdade é defendida com discursos e atacada com prisões".

sábado, 18 de abril de 2009

Debate da "nova Lei Rouanet" transcende esfera cultural

Os mecanismos legais de incentivo à cultura estão sendo rediscutidos no país, 18 anos após a promulgação da "lei Rouanet", que foi essencial para a sobreviência e revitalização do cinema brasileiro mas acabou gerando graves distorções nas relações entre economia, ideologia e produção cultural.

Elaborado para reerguer a produção cinematográfica nacional, destroçada após a extinção da Embrafilme, o modelo de financiamento trazido pelas leis Rouanet e “do Audiovisual”, baseado em renúncia fiscal de parte do imposto devido à Receita Federal, transferiu para o setor privado – especificamente, para os diretores de marketing das empresas – a tarefa de selecionar projetos e determinar os rumos da produção de filmes no Brasil. Com dinheiro público, bem entendido.

A promessa de acabar com o alegado clientelismo da Embrafilme não foi cumprida. O modelo se manteve extremamente concentrador, com 3% dos captadores ficando com 50% do volume de verba arrecadada. Isso faz com que a produção de cinema no Brasil continue atrelada a um número reduzido de firmas produtoras - algumas das quais pertencentes às mesmas figuras acusadas de se beneficiarem dos esquemas da Embrafilme. Também as possibilidades de criação de uma estrutura industrial para o cinema brasileiro encontram-se em estágio semelhante ao que já se encontraram em outros momentos de sua intrincada história - com exceção do “cinema televisivo” da Globo Filmes, que se aproveita de estruturas preexistentes.

A captação de recursos, na forma exigida pela lei, introduziu empresas do setor financeiro na cadeia produtiva de um filme, gerando especulação com capitais, “oficializando” o ágio e aumentando substancialmente o preço final da obra. Quem mais lucra com tal modelo é o mercado financeiro, seguido de meia dúzia de empresas produtoras. Dificilmente o leitor verá esse aspecto do modelo ser debatido, pois, como tais transações ocorrem ao arrepio da lei, não é considerado de bom-tom discuti-las.

Na outra ponta desse imbroglio, a distribuição e a exibição do filme brasileiro, num mercado cuja ocupação pelo produto importado é tida como natural, tornaram-se extremamente problemáticas, sobretudo para filmes de médio e pequeno orçamento, que são o dínamo da diversidade temática e do experimentalismo formal. Essa situação agravou-se à insustentabilidade depois que a Globo Filmes, criada em 1999, entrou de fato no mercado, em 2003, praticamente monopolizando o espaço que sobrava para o filme nacional (o do filme norteamericano foi preservado pelos circuitos de distribuição e exibição, majoritariamente na mão de grupos internacionais).

Diagnóstico dos problemas
O ministro da Cultura, Juca Ferreira, bem informado e, ao contrário da maioria de seus antecessores, familiarizado com a área cinematográfica, tem viajado pelo país discutindo os problemas da atual legislação e as propostas constantes do projeto de reformulação apresentado pelo MinC. O órgão – que, diferentemente do que acontecia no governo FHC, mantém canais de diálogo com diversos setores da classe cinematográfica – abriu consulta pública para discutir as mudanças na lei (qualquer pessoa pode conhecer as propostas e opinar, clicando aqui).

Entre os problemas identificados pelo projeto estão, além da já citada concentração da produção cinematográfica na conta de um punhado de produtoras, a ocorrência de distorções na distribuição regional de recursos: de 2002 a 2008, o Sul e o Sudeste ficaram com 86% do total de verba captado. Ainda que a realidade macroeconômica reflita desequílibrios regionais, não são dessa ordem. Assim, o projeto está correto ao criar meios para reforçar políticas para reverter tão proclamada assimetria.

Talvez ainda mais grave seja constatar que apenas 20% dos projetos aprovados pelo ministério para captação de recursos são produzidos, o que equivale a reconhecer que, em plena democracia, continuamos a ter censura, só que esta não vem mais do Estado militar, mas do setor privado, que veta 4/5 do que as comissões do próprio ministério do setor - transformado, nesse particular, em órgão meramente decorativo -, considera culturalmente relevante.

Outra constatação assustadora é saber que, durante todo o tempo de vigência da lei, a iniciativa privada só participou com 10% do capital investido, os restantes 90% sendo cobertos por dinheiro público. Ante tal desproporção, pergunta-se: qual razão justifica, então, que empresas privadas administrem esse orçamento, atuando como dirigentes culturais autocráticos, que vetam ou viabilizam produtos culturais a seu bel-prazer?

Questões polêmicas
Apesar de demonstrar sensibilidade para diagnosticar tais problemas, causam estranheza algumas posições do ministro, como suas afirmações em relação ao filme Se eu Fosse Você 2. Segundo o Diário de Pernambuco de 16/04, Ferreira teria declarado que a obra encontra dificuldade para ampliar o número de cópias para exibição por conta do número reduzido de salas de cinema à disposição. “Por que não financiar obras de artistas brasileiros que contribuem para a economia no Brasil?”, teria perguntado. Ora, ministro, o filme é produzido pela maior corporação midiática brasileira – a Rede Globo - , que tem todas as condições materiais de construir quantas salas de cinema quiser, onde bem entender. Ademais, se o ministério que o senhor comanda não tivesse, a despeito das aparentes boas intenções, aderido passivamente ao ideário neoliberal durante esses anos todos e se prestasse a intervir de forma ativa no mercado exibidor isso não aconteceria. Mas vocês preferiram acreditar que o mercado exibidor se autorregula, não é mesmo? Então porque raios ele não constrói salas para exibir filmes que, segundo o senhhor, interessam ao público? É altamente louvável seu desejo de financiar obras de artistas brasileiros – a bem da verdade, é uma das funções precípuas do ministério sob seu comando -, mas é ultrajante que, enquantos milhares de profissionais da área cultural vivem à beira da pobreza, um ministro da Cultura cogite bancar com dinheiro público meios para exibição de uma megaprodução corporativa.

A propósito, uma das medidas imprescindíveis da nova lei para diversificar a produção e impedir o investimento de dinheiro público em uma corporação milionária deveria ser, justamente, estabelecer um limite mínimo de capital a partir do qual determinada empresa ficaria impedida de captar pela lei, devendo buscar recursos no mercado. Do contrário, o Instituto Itaú Cultural, parte do maior conglomerado bancário privado do país, continuará a liderar o ranking de captação de recursos com a “lei Rouanet” – numa das mais gritantes evidências da necessidade de reformá-la. É importante ressaltar que tal mudança não impediria, por exemplo, a Globo Filmes de continuar produzindo, desde que a empresa, numa atitude condizente com a ideologia defendida pelo grupo de mídia ao qual pertence, passasse a recorrer à iniciativa privada. O papel do governo poderia ser então, nesse caso, o de criar mecanismos para que os filmes globais competissem mais com a produção hollywoodiana – cuja qualidade vem decaindo vertiginosamente nos últimos 15 anos, como apontam especialistas diversos - e não com o cinema autoral do próprio país.

Como o próprio Ferreira reconhece, outra questão premente em relação à lei é a criação de alguma forma de controle do preço dos ingressos de projetos através dela financiados. Por exemplo, os espetáculos do Cirque du Soleil custaram ao espectador brasileiro um mínimo de R$300,00. É lícito questionar se há razões que justifiquem que um consagrado grupo circense e multimídia internacional seja financiado por dinheiro público brasileiro, mas é mais importante ainda interrogar se se deve utilizar o erário para financiar um evento voltado exclusivamente às classes abastadas e que não criou nenhuma forma de inclusão social ou de retribuição pelos benefícios públicos que recebeu.

Já o montante arrecadado através da lei por órgãos governamentais (nos âmbitos federal, estadual e municipal) e da oposição (por exemplo, o Instituto Fernando Henrique Cardoso, criado para divulgar o legado do ex-presidente e para funcionar como think tank tucano) evidenciou outro uso distorcido da lei. Se os homens públicos parecem não perceber a inconveniência de se fazer valer de fundos públicos da área cultural para, por vias tranversas, alimentar projetos que, ainda que indiretamente, têm finalidades políticas, torna-se necessário que tal possibilidade seja vetada na letra da lei.

Como se verá a seguir, nem todas essas demandas são cobertas pelo projeto de renovação da lei.

As propostas do MinC para renovação da lei

Apresentadas de forma genérica pelo ministério, as propostas resumem-se em sete itens:

1) Fortalecer o Fundo Nacional de Cultura (FNC) - Do montante empregado em produção cultural em 2007, R$280 milhões (19% do total) vieram desse fundo público, contra $1,2 bilhão de renúnicia fiscal. A proposta é aumentar esse valor (o que depende de negociações com a área econômica do governo, que historicamente discrimina a área cultural. Em plena crise econômica mundial, tais negociações tendem a ser mais complicadas ainda). O MinC propõe também setorizar o FNC por critérios que as dividem por áreas artísticas e função social;

2) Fundo Associado ao Empreendorismo - Diversificação das modalidades de financiamento de projetos, que passariam a incluir empréstimos e as chamadas PPCs(Parcerias Público-Privadas);

3) Participação e transparência - Ampliação da participação decisória dos setores artístico-culturais, cujo raio de influência passaria a ir além do FNC, abrangendo parte do montante captado através de renúncia fiscal;

4) Repasse para fundos estaduais - Possibilitaria co-parcerias com estados e municípios, o que alegadamente permitiria maior descentralização de recursos, facilitando ainda a fiscalização por parte dos cidadãos;

5) Maior flexibilidade nas cotas de patrocíinio - Criação de diversas faixas de isenção fiscal, somadas às de 30% e 100% vigentes;

6) Promoção da exportação da cultura - Promete atenção especial a essa questão historicamente negligenciada no Brasil, país que tem enorme potencialidade na exportação de bens culturais;

7) Criação de loteria e do Vale-Cultura - Além de uma loteria com percentual de arrecadação voltada à cultura, propõe a criação de um vale-cultura, nos moldes dos "tíquetes-refeição", no valor mensal de R$50 por funcionário. O problema é que o projeto prevê que o governo arque com 30%, o empregador com 20% e o funcionário com a maior parte, 50% do custo do benefício. Ainda assim o ministério avalia que o benefício tem potencial para atingir 12 milhões de trabalhadores.

O projeto do MinC vai na direção certa ao fortalecer o Fundo Nacional de Cultura, dando mais autonomia ao órgão e reduzindo o peso decisório da iniciativa privada - mudanças que têm provocado gritaria de setores conservadores -, mas é tímido nas reformas que propõe e, mais grave, mantém suas propostas limitadas aos marcos estruturais neoliberais, embora, no texto que apresenta o projeto, demonstre a intenção de superá-los.

Como em outros momentos da atual administração federal, volta ao horizonte a possibilidade de um impasse em que as pressões à esquerda contra a nova lei, somadas às dos setores conservadores (que contam com o apoio da “grande mídia”), acabem por dificultar ou impedir sua promulgação - o que seria, efetivamente, muito mais benéfico ao último grupo. No entanto, a ameaça de divisionismo não deve, de forma alguma, constituir empecilho para que se faça uma crítica rigorosa ao projeto apresentado pelo MinC e em sua inserção nas políticas federais como um todo.

Considerações finais
A despeito dos problemas apontados ao longo do texto, a “lei Rouanet”, renovada, é neste momento imprescindível. Não há outra alternativa viável a curto prazo e a vida cultural do país seria consideravelmente mais pobre sem os mecanismos de fomento. Mas não se deve perder de vista que ela só se manteve indispensável porque, assim como (não) tem agido em relação às políticas para o setor de Comunicação, também na área cultural o governo Lula - apesar de muito superior às administrações anteriores no setor - demonstrou pusilanimidade e aderiu por longo tempo e gostosamente ao ideário neoliberal que historicamente rejeitou.

Uma política de Comunicação realmente democrática – com o fim do monopólio da mídia por poucas famílias, da perseguição às rádios clandestinas, das tentativas de se restringir a livre-manifestação na Internet – engloba necessariamente a produção cultural e passa pela superação da adoção do neoliberalismo como ideologia orientadora das políticas oficiais. Do contrário, o país tende a ficar, tanto na esfera comunicacional quanto na artística, dando voltas em círculos, submetido ao poder da “grande mídia” e do mercado financeiro.

Enquanto não for superado esse estágio estruturador de mentalidades – hoje, com a crise dos mercados mundiais, já anacrônico – fica difícil instaurar um verdadeiro debate acerca dos rumos e dos meios de financiamento da produção culural brasileira.

Chegou, portanto, o momento de superar (pre)conceitos que se tornaram dogmas nas últimas décadas, como uma “natural” supremacia de esfera privada sobre a esfera pública. Todos os estudos acadêmicos sobre a Embrafilme, sem exceção, provaram que a estatal era muito mais criteriosa, eficiente e democrática do que a afirmava a unanimidade burra vigente quando de sua extinção por Fernando Collor. Como a atual crise econômica mundial penosamente demonstra, o Estado não pode abdicar de suas funções, pois o mercado mostrou-se incompetente em sua outrora sacrossanta autorregulação.

É, portanto, necessário propor não apenas a reforma de uma lei de incentivo que
conserva feições neoliberais, mas um modelo verdadeiramente novo de financiamento da produção cultural no país, em que os grandes grupos empresariais não usufruam mais de dinheiro público, passando a financiar suas produções na esfera privada - o que está plenamente de acordo com o atual estágio do capitalismo brasileiro -, enquanto o governo, através de representantes da sociedade civil e das áreas culturais democraticamente eleitos para esse fim, passe a administrar de forma direta os recursos públicos para a área cultural, sob mecanismos de controle mas sem dividir grande volumes de capitais e a responsabilidade pela direção dos rumos da produção cultural do pais com o mercado financeiro - entidade que, como reconhecem agora até os líderes de potências capitalistas, precisa deixar de ser o regulador e passar a ser regulada.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

"24 Horas" volta às telas: anacronismo?

Bauer e o principal coadjuvante da série, o celular

O agente Jack Bauer está de volta às telas da TV a cabo brasileira – e a primeira impressão é de um atroz anacronismo.

Na vida real, os vôos secretos da CIA para levar suspeitos de terrorismo para a tortura terceirizada eram, agora temos certeza, verdadeiros, mas acabam de ser alegadamente desativados; a Guantánamo/Doi-Codi da “era Bush” vive seus últimos dias, ao mesmo tempo em que o fim do criminoso embargo dos EUA a Cuba torna-se uma miragem mais próxima.

Em pleno reflorir da “era Obama”, as situações e personagens da série que a Fox exibe nas noites de terça, envoltos em eterna desconfiança e paranóia, com seu protagonista sempre disposto a transgredir as leis e torturar e seus presidentes (na atual temporada, uma mulher) que fazem de tudo para reafirmar a supremacia imperial norteamericana, parecem pertencer a um passado distante.

Mas talvez seja ainda cedo para tal avaliação – e isto vale tanto para o real legado de Obama quanto para o desfecho da sétima temporada de uma série que, embora sempre controversa, não se deixa sucumbir facilmente pelo criticismo.

24 Horas é certamente o programa de ficção que mais intensivamente explorou a configuração ideológica pós-11 de setembro e o inconsciente coletivo da “era Bush”. Assim que foi ao ar pela primeira vez, a série tornou-se, ao mesmo tempo, um produto midiático muito bem-sucedido em termos técnicos (e comerciais) e uma criação ficcional com implicações político-ideológicas altamente problemáticas, levando ao limite o dilema “forma versus conteúdo”.

O sucesso inicial da série parecia dever-se ao uso do “tempo real”, através do qual o tempo diegético (aquele passado no interior da trama) equivaleria ao tempo no universo habitado por nós, os espectadores, e pela utilização de múltiplas telas exibindo ações simultâneas – duas técnicas narrativas que, longe de constituir novidade, pertencem à infância do cinema, tendo sido utilizadas com brilho ao longo do tempo por cineastas diversos, como Hitchcock, Andy Warhol, Peter Greenaway e Tom Tykwer (o diretor de Corra, Lola Corra).

Mas, nas temporadas seguintes, o sucesso de público e de crítica evidenciaram que havia mais do que meros artifícios de efeito em 24 Horas. Em virtualmente todos as categorias técnicas - destacadamente na montagem, direção de arte, edição de som e fotografia - a série preenche com folga os requisitos que John Caldwell definiu como distintivos da qualidade na TV. Mais do que isso: a premiada equipe de roteiristas levou a um novo patamar o grau de complexidade das múltiplas tramas paralelas, tornando-se case study para oficinas e cursos de roteiro; a política de casting (escolha de elenco) conseguiu, ao menos até a quinta temporada, minimizar e eventualmente dirimir as acusações de racismo ou de preconceito étnico - um feito digno de nota em meio à guerrilha multicultural norteamericana; os elencos, de modo geral, tiveram um desempenho bem acima da média da televisão dos EUA (que já é alta), destacadamente Kiefer Sutherland, que, sem ser um ator de primeira linha, apresenta um trabalho de voz notável (observe que NINGUÉM fala ao celular como Jack Bauer...).

Já o conteúdo ideológico de 24 Horas tem sido há tempos apontado como veículo para difusão, para um contingente amplo de espectadores, de uma forma perniciosa de conservadorismo, como apontaram numerosas críticas, preocupadas com o papel formativo e pedagógico que o programa poderia vir a exercer na opinião pública em relação aos direitos individuais sob o pretexto da "guerra ao terror”. O fato de a série ser exibida pela Fox, cujo canal de notícias representa a “vanguarda do atraso” neocon só fez reforçar as desconfianças.

Com efeito, por mais que as estratégias compensatórias adotadas pelos responsáveis pela série dissimulem, fica difícil negar que sua produção discursiva reforça uma visão imperialista dos EUA; que estimula, por vias tranversas, o preconceito contra estrangeiros, muçulmanos sobretudo – o que gerou volumosos protestos públicos na sexta e mais polêmica temporada da série -; e, sobretudo, que são plenamente justificadas as preocupações quanto à naturalização da tortura como método investigativo, ainda mais em um produto de massa (tema de um artigo para variar irretocável de Slavoj Žižek).


Prefiguração de Obama?

Já no primeiro episódio da atual temporada, quando Jack Bauer começa a torturar um suspeito com uma caneta, não há como não dar razão a tais críticas. Porém não dá também para esquecer que, embora negros retratados como presidente dos EUA tenham aparecido amiúde no cinema norteamericano, foi 24 Horas quem apresentou, por um longo tempo, encarnado pelo carismático Dennis Haysbert (foto), o presidente negro mais charmoso, determinado e competente das telas, naturalizando, num programa de massas, a idéia de um afroamericano na Casa Branca, no que pode ser entendido como uma prefiguração justamente de... Barack Obama.

É por essas e por outras que todo cuidado é pouco ao analisar 24 Horas. Portanto, parece recomendável aguardar o final da atual temporada antes de emitir juízos de valor quanto ao eventual anacronismo do programa em relação à "era Obama". ..

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Carlos Nelson Coutinho na Globo News

A entrevista com o intelectual marxista Carlos Nelson Coutinho na Globo News torna evidente o quanto o virtual monópólio do canal por representantes do "pensamento único" mercadista tem negligenciado aos espectadores, a um tempo, o contato sistemático com visões alternativas de mundo e com alguns dos mais brilhantes intelectuais em atividade.

Coutinho é um pensador com "P" maiúsculo, capaz de transitar por áreas diversas com notável desenvoltura, destacadamente na Ciência Política, na Filosofia e na Crítica Literária (em que eu destacaria o ensaio clássico "O significado de Lima Barreto na literatura brasileira"); tem sido, desde a juventude, um talentoso comentador cultural, com uma visão abrangente e incisiva das relações entre ideologia, economia e cultura (os exemplos são vários, mas meu favorito continua sendo o artigo mimeografado "Cultura política no Brasil contemporâneo" escrito em plena ditadura, sob o pseudônimo de Guilherme Marques e no qual disseca o pós-tropicalismo); marxista especializado em Gramsci e em Lukács, defende a atualidade do método teórico de Marx, mas não se prende a dogmas e não se furta a criticar aspectos datados ou falhos da obra do filósofo econômico alemão, como fica evidente na entrevista ao programa "Milênio" e em trechos desta conferência sobre cidadania e modernidade.

Sua obra escrita o coloca tranquilamente como um dos nomes mais importantes do pensamento intelectual brasileiro contemporâneo. No entanto, eu jamais o vira falar ao público, e a impressão que tive foi das melhores: extremamente articulado, com uma rapidez de raciocínio que por vezes "atropela" a própria entrevistadora, uma oratória clara e fluente, além de uma boa presença cênica, Coutinho reúne as qualidades necessárias para brilhar no meio televisivo como um comentador de primeira linha, se em méritos se baseasse a escolha de nossos mal chamados "formadores de opinião".

Não se deve, no entanto, alimentar ilusões: a presença, no canal noticioso a cabo das Organizações Globo, de um pensador com o seu perfil e com sua visão crítica das relações entre mídia e sociedade (que você pode ler aqui, em entrevista concedida a meu querido mestre Dênis de Moraes) é uma exceção, uma concessão pontual e controlada de espaço ao contraditório, que a jornalista Elizabeth Carvalho tem usado para entrevistar luminares intelectuais da esquerda que comumente não têm espaço na mídia, como Coutinho e Leandro Konder.

Nos telejornais da emissora, no entanto, segue-se ouvindo quase que exclusivamente as "forças do mercado", não obstante elas terem sido não só incapazes de prever a grave crise da economia mundial que ora atravessamos, mas sua principal causadora.

domingo, 5 de abril de 2009

Mídia x Dilma: o tiro pela culatra, uma vez mais

Manchete da Folha de São Paulo de domingo: "Grupo de Dilma planejou sequestro de Delfim Netto" [grifos deles]. A matéria é o que se pode esperar de um jornal que se contentou em ser uma sub-Veja de tiragem diária: hipóteses sem sustentação, tentativas de escandalizar as velhinhas de Taubaté da classe média paulista, completo desrespeito pelo contexto histórico (tenta-se culpar a Dilma de hoje – ministra de um governo duas vezes eleito - pelo que a guerrilheira de 19 anos teria feito num momento de enfrentamento com uma ditadura que usurpou o poder democrático). Pinta-se uma Dilma a um tempo fútil, irresponsável e, acreditem, pusilânime (acusa-se sem provas a então militante de ter "dedurado" companheiros sob tortura, como se isso fosse demeritório). Uma longa matéria com parca sustentação, incluindo teses desenvolvidas a partir de depoimentos de militares de pijamas - que, é claro, AMAM a candidata - e de ex-militantes que carecem de credibilidade (um deles chega a assumir que sua memória não é confiável, como decorrência das torturas que sofreu. Nem isso freia o jornal de demonstrar algum pudor e deixar de utilizar seu depoimento).

Mas as aparências precisam ser mantidas e, para o bem ou para o mal, há ainda, no diário da Barão de Limeira, um manual de redação que determina procedimentos básicos a seguir, como ouvir o “outro lado”. É aí que o caldo da manipulação entorna: a ministra Dilma Roussef simplesmente “engole” a esforçada e arisca repórter Fernanda Odilla, revertendo as acusações a seu favor: o idealismo generoso dos jovens de 19, 20 anos em luta contra o totalitarismo; a negação de ter participado de ações armadas, tal como vem sendo difundido via internet por setores da direita; a desconstrução tranquila da tentativa de acusá-la de mercenária e ingrata com os companheiros de luta; a brutalidade da tortura: “Você não sabe o que é a quantidade de secreção que sai de um ser humano quando ele apanha e é torturado. Porque essa quantidade de líquidos que nós temos, o sangue, a urina e as fezes aparecem na sua forma mais humana. Não dá para chamar isso de ditabranda, não”; o puxão de orelhas explícito na Folha de São Paulo: “Além da tortura, você tira a honra da pessoa. Acho que fizeram muito isso no Brasil. Por isso, minha filha, esse seu jornal não pode chamar a ditadura de ditabranda, viu? Não pode, não”

O que era para ser um duro golpe na desconstrução da candidata transmuta-se, a contragosto, em palanque eleitoral a evidenciar sua sagacidade, retidão de caráter e personalidade.

Assim, a entrevista acaba por demonstrar que o enfrentamento com o senador Agripino Maia (que a acusou de mentir para os torturadores, dando margem a ser desancado por uma resposta devastadora) não foi casual. Dilma é uma pessoa muito inteligente, preparada, hábil, com a malícia necessária para lidar com a imprensa brasileira em seu deplorável estágio atual (reparem no modo como ela, através do tratamento interpessoal íntimo, neutraliza e utiliza a seu favor a interlocução agressiva da entrevistadora) . Tenho para mim que quanto mais Dilma for atacada com estratagemas a um tempo covardes e historicamente insustentáveis como os de Maia ou da Folha, mais tende a crescer. Ou mudam o disco ou, uma vez mais, pela terceira vez consecutiva em eleições presidenciais, a irrelevância da "grande imprensa" ficará evidente.

Em tempo: a matéria da Folha tem como principal fonte o ex-militante Antônio Roberto Espinosa, que numa carta aberta enviada ao jornal e a diversos blogs tenta se eximir de responsabilidades, culpa a répórter e o jornal e aponta distorções na matéria. Quanto a esta, já dei minha opinião; já em relação às acusações de Espinosa, tendo a ser reticente. Do ponto de vista jornalístico, não há nada de errado em utilizar email e telefone para entrevistar fontes, ainda mais num caso em que a entrevista durou cerca de três horas. Ademais, acho simplemente inacreditável que um ex-ativista político, jornalista, professor de Política Internacional e doutorando em Ciência Política possa ser tão ingênuo no trato com um veículo da grande imprensa com o histórico de colaboracionismo com a ditadura e de aversão ao governo Lula como o foi com a Folha de São Paulo. Assinar um termo autorizando a repórter a investigar arquivos do STM acreditando que ela se limitaria à sua pessoa, num momento de pré-eleição presidencial, e supor que a longa entrevista que concedeu não seria editada com as piores intenções possíveis são indícios ou de má-fé ou de uma ingenuidade à toda prova.

Confira abaixo a entrevista:

FOLHA - A sra. se lembra dos planos para sequestrar Delfim e montar fábrica de explosivos?
DILMA ROUSSEFF - Ah, pelo amor de Deus. Nenhuma das duas eu lembro. Nunca ninguém do Exército, da Marinha e da Aeronáutica me perguntou isso. Não sabia disso. Acho que não era o que a gente [queria], não era essa a posição da VAR.

FOLHA - A sra. logo percebeu que a clandestinidade seria o caminho natural?
DILMA - Percebi. Todo mundo achava que podia haver no Brasil algo muito terrível. O receio de que um dia eles amanheceriam e começariam a matar era muito forte. Sou bem velha, comecei em 1964. Com o passar do tempo, o Brasil foi se fechando, as coisas foram ficando cada vez mais qualificadas como subversivas. Era subversivo até uma música, uma peça de teatro, qualquer manifestação de rua. Discutir reforma universitária era subversivíssimo. Coisas absolutamente triviais hoje eram muito subversivas.

FOLHA - Foi escolha da sra. o trabalho no setor de mobilização urbana?
DILMA - Qual era a outra alternativa?

FOLHA - Havia a expropriação.
DILMA - Disso eu nunca quis ser. Nós não achávamos isso grande coisa. A partir de um determinado momento houve uma visão crítica disso, do que a gente chamava militarismo. É muito difícil falar isso porque as pessoas ficam achando que a gente está limpando a barra. Não me interessa ficar falando nisso, é da época e deu. Eu sei que havia uma tensão eterna. Nunca concordávamos uns com os outros porque pensávamos diferente. Bota todo mundo junto, você imagina. Não posso dizer o que aconteceu dentro da direção.

FOLHA - No Rio, a sra. acompanhou a fusão e acompanhou o racha [da VAR] em Teresópolis.
DILMA - Na minha cabeça, eu só lembro que a gente conversava e discutia muito, debatia. Tinha uma infraestrutura complexa porque a gente não saía de lá, não podia aparecer. Bom não era. Mas, naquela época, você achava que estava fazendo tudo pelo bem da humanidade. Nunca se esqueça que a gente achava que estava salvando o mundo de um jeito que só acha aos 19, 20 anos. Sem nenhum ceticismo, com uma grande generosidade. Tudo fica mais fácil. Tudo fica mais justificado, todas as dificuldades. Você não ter roupa não tem problema. Às vezes, andava com uma calça xadrez e uma blusa xadrez.

FOLHA - A sra. faz algum mea-culpa pela opção pela guerrilha?
DILMA - Não. Por quê? Isso não é ato de confissão, não é religioso. Eu mudei. Não tenho a mesma cabeça que tinha. Seria estranho que tivesse a mesma cabeça. Seria até caso patológico. As pessoas mudam na vida, todos nós. Não mudei de lado não, isso é um orgulho. Mudei de métodos, de visão. Inclusive, por causa daquilo, eu entendi muito mais coisas.

FOLHA - Como o quê?
DILMA - O valor da democracia, por exemplo. Por causa daquilo, eu entendi os processos absolutamente perversos. A tortura é um ato perverso. Tem um componente da tortura que é o que fizeram com aqueles meninos, os arrependidos, que iam para a televisão. Além da tortura, você tira a honra da pessoa. Acho que fizeram muito isso no Brasil. Por isso, minha filha, esse seu jornal não pode chamar a ditadura de ditabranda, viu? Não pode, não. Você não sabe o que é a quantidade de secreção que sai de um ser humano quando ele apanha e é torturado. Porque essa quantidade de líquidos que nós temos, o sangue, a urina e as fezes aparecem na sua forma mais humana. Não dá para chamar isso de ditabranda, não.

FOLHA - Quando a sra. foi presa, foram apreendidos documentos falsos, desenho da VAR e um bilhete de amor com as iniciais TG. Era do Cláudio Galeno Linhares?
DILMA - Não, era do Carlos Araújo. Era apelido dele. Se você quiser me mandar, eu agradeço. Onde que está isso, hein?

FOLHA - No inquérito arquivado no STM. O bilhete está assim: "Nêga querida, infelizmente não poderei estar aí [no Natal]. Verás na prática, prometo-te..."
DILMA - Essa quantidade de te, você acha que é de mineiro, pô? Isso é de gaúcho. Tudo no te... Não falei do Carlos no depoimento. Eles acreditavam que era o Galeno. Carlos era da direção, eu não podia abrir a boca. Depois eles descobriram.

FOLHA - Como foi, durante os dias de Oban, para conseguir proteger a direção? Pelo que vi, alguns nomes não foi possível proteger como Maria Joana Telles, Ruaro, Vicente...
DILMA - Eles sabiam deles porque tinha caído outra pessoa que era da direção. Foi por isso que caí. Eu caí porque caiu outra pessoa.

FOLHA - Era com quem a sra. teria um encontro. O José Olavo?
DILMA - Essas coisas eu não quero falar, minha filha. Não quero dar responsabilidade para ninguém. Estou muito velha para fazer isso.

FOLHA - No depoimento da Justiça, a sra. cita os quatro como tendo caído em consequência
direta de sua queda. A sra. dá os quatro nomes?
DILMA - É. Caíram, ponto.

FOLHA - Eu conversei com o hoje coronel, antigo capitão Maurício...
DILMA - Ele existe ainda? Ele já não batia bem da bola. Ele continua sem bater?

FOLHA - Eu perguntei se ele votaria na sra. para presidente. Primeiro, disse não. Depois, pediu para retificar dizendo que "depende com quem vai concorrer".
DILMA - Minha querida, pelo amor de Deus. A vida é um pouquinho mais complicada que isso. Mas respeito o que ele falou.

FOLHA - Ele participava das sessões [de tortura]?
DILMA - Ele era da equipe de busca, nunca participou. Mérito dele. Pelo menos enquanto estive na Oban. Não posso dizer depois. Você tinha aquele negócio de dar ponto para parar de apanhar, e ele levava as pessoas. Ele fez a busca em toda a minha casa. Pegava minhas coisas e perguntava sobre elas.

FOLHA - No depoimento à Justiça, a sra. cita ele como responsável pelas sessões de torturas.
DILMA - Que ele torturava pessoalmente, nunca vi. A mim não foi. Que ele entrava na sala e via tortura, tenho certeza. Qualquer um entrava. Te torturavam com a porta aberta.

FOLHA - Li uma entrevista em que a sra. diz que fez treinamento no exterior, mas não consegui encontrar o período em que isso pode ter acontecido. Deu tempo de sair do Brasil para treinar?DILMA - Acho engraçadíssimo porque quando me perguntaram isso, eu neguei que tivesse feito. É que nem aquela lista que sai aí dizendo que eu fiz dez assaltos armados. Nunca fiz uma ação armada. Se tivesse feito, eu estaria condenada por isso. É a mesma coisa essa história do treinamento. Nunca fiz nem treinamento no exterior nem ação armada. É só perguntar para as pessoas.

FOLHA - Incomoda a sra. atribuírem essas ações a seu nome?
DILMA - É chato. Não sou supermulher para dizer que não me incomoda. Agora não perco a cabeça por isso. Estão mentindo, têm segunda intenção.

FOLHA - Não teve treinamento no exterior, mas o básico todo mundo sabia como montar e desmontar uma arma. Era questão de segurança do dia a dia?
DILMA - Sempre fui muito dedicada, mas não achava isso grande coisa. Nunca fiquei avaliando se devia fazer isso ou aquilo. Não se colocava assim para nós. Falavam assim: "Vai ali e aprende a montar e desmontar a arma". Você ia e aprendia. "Vai ali e escreve um documento." Você também ia.

FOLHA - Como era o dia a dia da prisão? Algumas companheiras de cela dizem que a sra. dava aula de macroeconomia, mas não gostava muito dos trabalhos manuais de tricô e crochê...
DILMA - Aprendi bem. Sei fazer tricô e crochê. Você sabe que faço tapete? Mas não aprendi tapete lá, não. Fazia muito bem crochê. Podem falar que eu não fazia... (risos) No fim, gostava de fazer crochê. A gente lia muito, escutava muita música, conversava muito, jogava vôlei. [As aulas] estão fantasiando...

FOLHA - A sra. tinha consciência que continuava na mira da polícia mesmo depois da prisão?DILMA - Tinha. Não podia fazer aniversário que ficavam pendurados nas árvores, olhando.

FOLHA - Quando tem o racha, quem assume a VAR?
DILMA - Não me lembro. Se o Espinosa tá dizendo que eu estava... Não sei se fui, se não fui [do comando]. É um período muito pequeno até a queda. Fui uma das primeiras a cair. Eu lembro que eu fui em outubro para São Paulo e nunca mais voltei [ao Rio]. Fiquei lá junto com todo mundo que dirigia a VAR na época. Só me lembro do José Olavo e de mais um. Tinha mais. Tinha quatro.

FOLHA - Muita gente dizia que a sra. era a responsável pelo dinheiro da organização. A sra. era o caixa de São Paulo, para manter militantes, aparelhos?
DILMA - Também não me lembro disso, não, que eu era do dinheiro. Se eu fosse do dinheiro, eles tinham me matado a pau. Tudo o que eles queriam era o dinheiro. Não lembro isso, não. Não me lembro de ter caído com um tostão. Se eu tivesse dinheiro, ia ser um festival.

FOLHA - O delegado ficou bem impressionado com a sra. depois do interrogatório. A ponto de defini-la como uma pessoa com dotação intelectual apreciável.
DILMA - Interessante... Da onde ele tirou isso, né? Nem me lembro dele. A gente não dava importância para o delegado do Dops, só para a Oban. Deve ter vindo da Oban. Tinha um juiz auditor louco (risos). Ele fez uma denúncia dizendo que eu era a Joana d'Arc do terror. Era ridículo. Ele era dado a essas...

FOLHA - É muito divertido o perfil que o delegado traça.
DILMA - Essa parte não era pública, essa parte do delegado. Você conseguiu um documento único. A Oban classificava a gente pelo nível de perigo. O major Linguinha [Waldir Coelho] só interrogava quem ele achava que era direção. Ele falava comigo sempre.

FOLHA - A sra. não pegou o delegado Sérgio Fleury no Dops?
DILMA - Quando entrei no Dops, o Fleury estava em viagem. Passei quase um mês na Oban e um mês no Dops. Eu custei a ir embora da Oban. Achava estranho eu não ir embora. Todo mundo ia, e eu ficava. Eu não lembro a data. Vai ficando muito obscuro, como foi e como é que não foi.

FOLHA - Vocês passavam por um treinamento intensivo para deletar as coisas. Tinha que esquecer para não contar?
DILMA - Uma parte você tentava esquecer. Sabe que teve uma época em que eu falei uma coisa que eu achava que era verdade e não era. Era mentira que eu tinha contado e aí depois eu descobri que era mentira. Você conta e se convence.

FOLHA - Informação obtida sob tortura é de responsabilidade de quem tortura e não de quem fala? Dá para culpar a pessoa que falou?
DILMA - Não dá mesmo. Até porque ali, naquela hora, tinha uma coisa muito engraçada que eu vi. Aconteceu com muita gente, não foi só comigo. É por isso que aquela pergunta é absurda, a do senador [Agripino Maia, do DEM]. A mentira é uma imensa vitória e a verdade é a derrota. Na chegada do presídio [Tiradentes], estava escrito "Feliz do povo que não tem heróis", que era uma frase do Brecht que tem um sentido amplo. Esse fato de não precisar de heróis mostra uma grande civilidade. É preciso que cada um tenha um pouco de heroísmo.

FOLHA - Quando a sra. chegou à Oban, houve muitos gritos?
DILMA - Teve. Fazia parte do script. É uma luta eterna entre a sua autodestruição e sua luta para ficar inteiro psicologicamente. A palavra correta é uma disputa moral no sentido amplo da palavra moral. É uma disputa entre éticas diferentes, entre princípios diferentes. Uma pessoa que se dispõe a fazer a outra ter dor tem um processo de difícil identificação. Fico imaginando o que foi Abu Ghraib, porque bota de um lado americanos e de outro lado um outro mundo. Você tem de ser desqualificado como ser humano para ser torturado, santa, senão você não é.

FOLHA - E a família da sra., como reagiu a isso tudo?
DILMA - Minha mãe foi absolutamente fantástica. Eles tinham horror de mãe.

FOLHA - Só para deixar claro, a sra. não se recorda desse plano para sequestrar o Delfim?DILMA - Não. Acho que o Espinosa fantasiou essa. Sei lá o que ele fez, eu não me lembro disso. E acho que não compadece com a época, entendeu? Nós acabamos de rachar com um grupo, houve um racha contra a ação armada e vai sequestrar o Delfim? Tem dó de mim. Alguém da VAR que você entrevistou lembrava-se disso? Isso é por conta do Espinosa, santa. Ao meu conhecimento jamais chegou. Não me lembro disso, minha filha. E duvido que alguém lembre. Não acredito que tenha existido isso, dessa forma. Isso está no grande grupo de ações que me atribuem. Antes era o negócio do cofre do Adhemar, agora vem o Delfim. Ah, tem dó. Todos os dias arranjam uma ação para mim. Agora é o sequestro do Delfim? Ele vai morrer de rir.

FOLHA - De qualquer forma, obrigada por tocar nesse assunto delicado...
DILMA - Eu estou te fazendo uma negativa peremptória. Para mim, não disseram. Tá?

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Milk

Em termos estritamente cinematográficos, Milk está longe de ser um grande filme. Mas alcança resultados notáveis como produto de massa que enfatiza, com sensibilidade e contundência, a pertinência da luta pelos direitos das chamadas minorias – no caso, dos homossexuais norteamericanos nos anos 1970.

Um dos segredos do filme para atingir tais resultados advém de uma abordagem da questão que, ao contrário do que se tornou usual nos últimos tempos, abdica tanto dos excessos do politicamente correto quanto da exaltação de uma idealizada hipersexualidade gay - não raro semi-explícita e visando o choque – eventualmente combinada à ridicularização dos conservadores contrários às suas causas. A despeito de tais estratégias representativas serem política e artisticamente válidas, Milk, ao optar por uma narrativa mais convencional e ao situar a luta no campo dos direitos civis, da conquista do espaço público e do direito por livre manifestação afetivo/sexual, faz o filme e a causa que defende atraentes para públicos muito mais amplos, além de promover uma simbiose com os métodos políticos que caracterizaram a própria militância da personagem-título, o ativista gay e político Harvey Milk (1930-1978), um dos primeiros candidatos assumidamente homossexuais a ser eleito para cargo público nos EUA.

A sequência-clímax na qual toma forma a idéia de que a luta das minorias sexuais insere-se na própria evolução da humanidade (e que portanto seria uma luta de todos, à revelia da opção sexual de cada um) é de grande beleza plástica e impacto e equivale a uma epifania. Cenas de uma multidão, de velas à mão, protestando contra o assassinato de Harvey Milk, são comentadas por uma melodia lírica, cujo volume varia conforme a intencionalidade dramática, enquanto as seguintes palavras são narradas pela voz do ativista (que deixara gravações na qual aventava a hipótese de vir um dia a sofrer um atentado):

- “Se meterem uma bala em minha cabeça, deixe que ela arrombe a porta de todos os armários. Peço que o movimento continue, porque ele não diz respeito a ganhos pessoais, ao ego, nem ao poder. Mas sim a nos mostrarmos lá fora, não apenas os gays mas os negros e os asiáticos, e os velhos e os deficientes físicos. Aqueles entre nós sem esperança, os que desitiram. E eu bem sei que não se pode viver com esperanças sozinho, mas sem esperança não vale a pena viver.”

Embora o resto do filme não esteja à altura dessa sequência, a trama é apresentada através de um roteiro bem-amarrado, que transmite de forma eficiente tanto a evolução de Harvey Milk em seus anos-chave, de anônimo quarentão em crise em Nova Iorque a líder da efervescente cena gay de São Francisco nos anos 1970, quanto do intenso debate público que opôs, de um lado, defensores dos direitos das minorias e, de outro, grupos religiosos conservadores que queriam, entre outros objetivos, expulsar todos os professores gays das escolas do país (através da chamada Proposta 6). No entanto, devido justamente ao didatismo histórico e ao superdiomensionamento da personagem de Milk (já que, por razões de economia dramática, é sempre a partir dele que o panorama nacional da mobilização pró-reformas é fornecido) essa eficiência narrativa não deixa de transmitir um quê de telefilme.

Tal impressão é reforçada pelo recurso abundante a imagens de arquivo, geralmente em vídeos de baixa resolução. Através desse material, toma-se contato com importantes fases da trajetória de Milk – por exemplo, o momento em que sua morte é anunciada por uma porta-voz - e da luta entre militantes e apoiadores da causa gay e seus opositores, estes representados sobretudo através de pronunciamentos da cantora Anita Bryant, ligada à igreja batista sulista da Flórida. Como observa Jair Tavares, Bryant acaba sendo uma das personagens do filme, mesmo não sendo interpretada por uma atriz, mas sim como presença virtual através registros documentais.

Destacam-se, do ponto de vista formal, em Milk, A Voz da Igualdade (título que o filme recebeu no Brasil -país que, como se sabe, gosta de inovar nessa área) um figurino que recria, às vezes com elegância, às vezes com humor, a moda gay dos anos 70, e uma utilização tão econômica quanto eficiente da trilha de Danny Elfman (inspirada em árias de óperas clássicas, uma predileção de Milk) para fins dramáticos. O gosto de van Sant pelas idiossincrassias imagéticas, embora claramente auto-reprimido (pois trata-se de produção mai$ntream), se evidencia em alguns enquadramentos inusuais nos quais, bem ao seu estilo, a estranheza não significa acréscimo de sentido ou sugestão alternativa de interpretação. Só uma firula, nada mais.

Além e acima de tais quesitos paira a atuação de Sean Penn, herdeiro tardio da grande tradição interpretativa do Actor’s Studio – aquela de James Dean, Marlon Brando e Paul Newman. Seu Harvey Milk, embora visceralmente humano, encarna elementos caros à persona sexual mítica do homem gay urbano fin de siècle, dividido entre a transgressão sexual, a militância e a tragédia: seu sorriso, embora não deixe de trair tensão, irradia um hedonismo constante que, eventualmente combinado a olhares com um brilho de agudeza, transmuta-se em humor hilário ou alegria extrema – enquanto o resto de sua face transmite todo o sofrimento de um homem com uma vida privada conturbada, que junta forças para sobreviver à tragédia de se confrontar com o suicídio de seus três grandes amores. Ademais, há uma impressionante semelhança entre o ator e o Harvey Milk real (que você pode conferir no vídeo abaixo, trailer de um documentário integralmente disponível no youtube). Como o comprovam fotos e atuações pregressas de Sean Penn, ela não se dá apenas por similaridades fisionômicas, mas por intenso exercício de controle da expressividade facial, combinado a um gestual "precisamente espontâneo" e a um extraordinário trabalho de voz (tom, dicção, sotaque, respiração) - características que, somadas, resultam numa performance exímia, que fez por merecer o Oscar de Melhor Ator.




Embora retratando uma personagem do passado, Milk está intrinsicamente ligado ao presente histórico, pois, como aponta um arguto comentarista, "a analogia com a América pós-Obama se faz ainda maior nesse filme, já que também envolve política, eleições e um candidato com idéias novas e revolucionárias que tem que superar preconceitos”. Raphael Neves, do blog Politika etc. detalha ainda mais a ligação passado-presente, ao observar que “A mesma eleição que elegeu Obama na Califórnia (Milk, assim como ele, usava a "esperança" como lema) também incluiu o voto contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para reverter isso, os ativistas lutam contra a chamada Proposta 8. Passados trinta anos do assassinato de Milk, passada a onda de preconceito contra os portadores do HIV (no início, a AIDS era chamada de 'doença gay', lembra?), há ainda nos Estados Unidos uma batalha sem fim contra o preconceito e o conservadorismo”.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A imprensa em desespero

O desespero dos jornalões ante o avanço da internet sobre seu faturamento está, como sabemos, nas alturas. E é transnacional, como demonstra a publicação, pela Folha de São Paulo, de artigo meio maroto do New York Times sobre o assunto (infelizmente, só pra assinantes).

Escrito pelo usualmente sóbrio Nicholas D. Kristof, o texto (aqui, em inglês) elenca uma séria de pesquisas - sem um pio sobre os métodos por elas adotados - para sustentar que como, na internet, o público é "seu próprio editor", escolhendo o que ler, isso tenderia a tornar as pessoas mais fechadas em torno de suas ideologias pré-concebidas e menos abertas a tomar contato com opiniões das quais divergem.

Até aí, nada demais. Generalizante, mas dá pra discutir. O sublead que a Folha bolou é que é um primor: "Ao contrário do jornal, internet nos leva a buscar ideias afins às nossas e vai nos isolar ainda mais em nossas câmaras políticas hermeticamente fechadas".

Como assim, "ao contrário do jornal"? Deixa ver se eu entendi: quer dizer que quando escolhemos um jornal - e o fazemos, no mais das vezes, por afinidade com sua linha editorial - aí não estamos buscando "idéias afins às nossas"?

E quando, no jornal que escolhemos, sempre lemos alguns colunistas, negligenciando a leitura daqueles que não nos agradam, aí não estamos buscando "idéias afins às nossas"?

Como distorcer o sentido de um artigo dessa forma, se o próprio Kristof o encerra com uma piada na qual diz que, para exercitar o contraditório, agora vai ler o editorial de um jornal - vejam bem, de um jornal, não de um site - concorrente do NYT (o Wall Street Journal)?

Tenta outra, Folha. Essa não colou.