Um
enigma dos mais intrigantes envolve a candidatura Dilma Rousseff
neste momento. As pesquisas mostram que a presidente, mesmo sofrendo
acentuada queda nas intenções de voto nos últimos meses, mantém-se
favorita, com folgados 37% na última enquete do Ibope, índice que a
reelegeria já no primeiro turno. Não obstante tal favoritismo, ela
tem sido sistematicamente vaiada a cada aparição pública, com mais
agressividade em eventos ligados à Copa do Mundo ou que reúnam um
público grande e heterogêneo.
O
enigma da favorita vaiada desafia interpretações e instiga
questionamentos. Trata-se de um fenômeno único, que não se repete
nos âmbitos estadual e municipal e não afetou seu antecessor Luiz
Inácio Lula da Silva, cujo única vaia memorável se deu em um
contexto polêmico, com fortes indícios de ter sido orquestrada pela
claque de um cacique político carioca.
O
ex-presidente, como se sabe, foi um dos raros presidentes a deixar o
segundo mandato com aprovação na casa dos 80%, rivalizando com os
índices históricos obtidos pelo ex-presidente norte-americano
Ronald Reagan. Recebeu do povo, até o final, calorosas manifestações
de afeto a cada vez que aparecia em público. Dilma, a despeito do
carisma muito menor, parecia, no início de seu mandato, ter herdado
algo de tal empatia, chegando a interagir com multidões que a
saudavam.
Desinteresse
midiático
Mas
isso foi antes das chamadas Jornadas de Junho, as súbitas e até
agora insuficientemente debatidas manifestações populares que se
alastraram pelo país em 2013. Embora não se tratasse de um protesto
exclusivo contra o governo, foi a a partir dali que se tornaria
evidente a mudança de comportamento do público nas aparições
presidenciais.
Nem
os cientistas políticos, nem os colunistas dos primeiros cadernos
têm prestado a devida atenção ao fenômeno das vaias, sejam estas
dirigidas à presidente com alto índice de aprovação (o que Dilma
foi ao menos até março) ou à candidata favorita à vitória em
primeiro turno. A mídia, que supostamente teria condições de
investigar e checar hipóteses, ir a campo e cobrir de maneira
condizente os atos públicos presidenciais, mantém-se inebriada pela
inação preguiçosa que a redução de despesas explica, mas não
justifica, agravada pelo hábito de buscar respostas na internet - e
em nenhum outro lugar – e pela convicção de que o país só vai
se interessar pelas eleições após a Copa do Mundo.
Leque
de hipóteses
Este
artigo se propõe a elencar algumas hipóteses acerca da enigmática
contradição que envolve a favorita Dilma e as vaias. Não tem a
pretensão de esgotar o assunto ou de apresentar uma conclusão –
deixa esta a cargo do leitor, caso este queira em tal tarefa se
engajar. Quer apenas estimular o debate.
Uma
primeira hipótese interpreta as vaias à mandatária como uma
decorrência tardia justamente das Jornadas de Junho, no bojo do
crescimento de uma consciência cívica que, concebendo a rua como o
local de excelência da manifestação da cidadania, se mostraria
ciente da importância de ocupar espaços, aproveitar oportunidades
e, assim, se valer das aparições públicas da presidente para
protestar.
A
favor dessa hipótese há o fato, já mencionado, de que foi a partir
dos protestos de junho que as aparições públicas de Dilma passaram
a ser sistematicamente vaiadas. Os apupos seriam mais uma
manifestação do que o sociólogo Luiz Werneck Vianna identificou,
em artigo
recente, como "essa difusa sensação de mal-estar e esses
pequenos abalos que vêm surpreendendo a rotina do cotidiano não só
nos grandes centros metropolitanos". Para além da data de
início das vaias, tal hipótese, no entanto, carece de elementos
objetivos que a sustentem (ou a desmintam).
Demandas
reprimidas
Uma
segunda hipótese para as vaias presidenciais diz respeito ao modo
como a administração Rousseff vem, desde seu início, lidando com
demandas populares, protestos e greves. A recusa ao diálogo,
agravada por táticas de boicote e enfrentamento que com fre1uência
incluem o recurso à violência, tornou-se corrente no atual governo,
a despeito de comandado por um partido de denominação trabalhista.
Foi
assim com a greve dos professores universitários em 2012, que se
alastrou por quatro meses e incluiu espancamento de manifestantes em
frente ao MEC; vem sendo assim com a corrente greve da Polícia
Federal – nos dois casos, com o governo Dilma contando com a
condescendência cúmplice dos principais veículos de mídia, num
alinhamento eventual de posições que, se confirma a índole
classista, desmente o caráter intrinsecamente antipetista que o
petismo militante atribui ao jornalismo corporativo.
Tal
hipótese explicativa para as recepções negativas a Dilma baseia-se
em elementos concretos e, malgrado o que informa acerca do
comportamento de um partido dito trabalhista em uma democracia, é a
favorita nas hostes petistas, por pressupor que as vaias não seriam
a manifestação de um sentimento popular disseminado, mas fruto
exclusivo da ação de grupos organizados, com interesses
político-partidários. Esta última assertiva, no entanto, não se
confirma inteiramente se observarmos com atenção como se comporta o
público em eventos de maior porte. Nesses casos, mesmo na
eventualidade da ação de protestos organizados, ouvem-se apupos à
mancheia em meio à massa de espectadores.
Palmas
ausentes?
A
configuração geopolítica da base de apoio dilmista e os efeitos
eleitorais dos Programas de Transferência Condicionada de Renda
(PTCs) – Bolsa Família à frente – constituem o cerne da
terceira explicação para a contradição ente as vaias e os índices
da presidente. De acordo com esta hipótese, a má recepção a Dilma
em suas aparições públicas correlaciona-se diretamente ao fato de
estas priorizarem, por razões eleitorais, médias e grandes cidades,
ao passo que, como o demonstram as pesquisas, os melhores índices da
presidente ocorrem em cidades pequenas e em grotões. O fato de o
grosso da clientela de tais programas sociais residir, em sua
maioria, justamente em localidades com tal perfil, tenderia a
reforçar a hipótese de que boa parte do público que aplaudiria
Dilma é escasso em tais comícios.
Com
efeito, segundo projeções do próprio governo federal, o Bolsa
Família beneficia hoje cerca de 14 milhões de famílias, sendo que
aproximadamente 38 dos 51 milhões de cidadãos beneficiados estariam
aptos a votar. É um número altamente significativo, correspondendo
a 28,5% do total de 140 milhões de eleitores do país. Mesmo que,
como pesquisas têm mostrado, esse total de votos não vá para o PT,
a manutenção de uma maioria é reserva eleitoral mais do que
suficiente para desequilibrar eleições presidenciais de ordinário
concorridas.
Trata-se,
assim, de uma hipótese explicativa que gera preocupação, pois, se
confirmada, apontaria para uma grave distorção na atual dinâmica
eleitoral do país, ocasionada por um programa cujos benefícios no
combate à miséria e à pobreza têm sido internacionalmente
reconhecidos. Parece justo que o PT, por tê-lo implementado em bases
efetivas, mereça colher os louros eleitorais decorrentes. Mas, pela
própria natureza assistencialista do programa em uma sociedade com
crônicos problemas sociais, ele não pode se transformar em reserva
eleitoral perpétua. A institucionalização do Bolsa Família, de
política de governo em política de Estado, seria uma maneira de
contornar a questão sem prejuízo nenhum para os beneficiários, sem
punir arbitrariamente as forças políticas que tiveram o mérito de
bancá-lo, e - mais importante – preservando uma isonomia eleitoral
tão necessária quanto benéfica à democracia brasileira.
O
fator desencanto
Mas
a mais danosa das hipóteses acerca do descompasso entre vaias e e
intenção de votos em Dilma é a que aponta para um desencanto
generalizado da população para com a política. Em texto
na Carta Capital, o colunista Mauricio Dias se baseia em pesquisas
recentes para dimensionar a gravidade da questão:
"A
soma dos porcentuais de votos brancos e nulos, de rejeição e
daqueles que não quiseram ou não souberam responder, está próxima
dos 40%. É um porcentual inédito e expressa, aproximadamente, quase
50 milhões de um total de 140 milhões de eleitores brasileiros (…)
Dos 37% que recusaram todos os candidatos, 72% não têm nem um pouco
ou quase nenhum interesse na próxima eleição de 2014. Um dos
pontos mais curiosos, indicativo do desencanto do eleitor, pode ser
tirado dos que responderam 'ruim e péssimo' na avaliação de Dilma:
62% não votariam em ninguém se a eleição fosse hoje."
Esses
resultados expressam, portanto, uma desaprovação "a tudo que
aí está", numa postura que, não obstante legítima, costuma
ser terreno fértil para as tentações totalitárias. Como hipótese
à questão central postada pelo artigo, aponta, portanto, para um
problema generalizado, que supera não apenas a candidata Dilma
Rousseff, mas a própria conjuntura político-eleitoral que ora se
apresenta.
Não
fornece, no entanto, resposta à pergunta sobre as razões de o
fenômeno das vaias não ocorrer, com igual intensidade, nos comícios
dos adversários de Rousseff e nem no dos governadores ou candidatos
ao governo com altas intenções de voto.
Inquietação
Talvez
essa resposta esteja não esteja particularmente em nenhuma das
hipóteses acima elencadas, mas na combinação de fatores citados em
algumas delas, eventualmente acrescida de quesitos que não foram
aqui abordados.
A
perspectiva de que uma presidente que não pode dar as caras em
público seja reeleita certamente faz parte do jogo democrático.
Ainda assim, não deixa de ser algo que causa justo e inquietante
estranhamento, além de preocupação acerca das consequências
políticas de um eventual novo mandato presidencial iniciar-se com
tamanha indisposição de parcelas do povo para com a mandatária.
Afinal,
se com ampla base de apoio a Presidência Dilma cedeu tanto ao
conservadorismo, o que pode vir a acontecer num cenário tão
conturbado?
Publicado
originalmente, com pequenas alterações, no Observatório
da Imprensa.
(Imagem
retirada daqui)
Um comentário:
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