O
espectador sem familiaridade com o universo literário, que tenha
recebido a notícia da morte de Gabriel García Márquez através do
Jornal da Globo, continua sem a mínima ideia da importância
do escritor colombiano, de seu blending único
de memória afetiva, imaginação
prodigiosa e talento narrativo, de seu universo literário a
um tempo realista e mágico, fincado
em povoados míticos mas de expressão universal, da posição
central que a América Latina – da qual tornou-se um ícone e um
dos principais representantes - ocupa em sua obra e em sua vida.
A
julgar pela matéria exibida pelo telejornal noturno, a impressão
que fica é que García Márquez não passava de um escritor de gosto
musical deplorável (pois fã dos boleros de Nelson Ned) e com
afinidades políticas igualmente execráveis, notadamente pela
amizade com "ditadores", plural referente a Fidel Castro,
como as imagens então exibidas corroboraram. Os altos números de
vendagem de suas obras e o recebimento do Prêmio Nobel foram os
únicos pontos positivos mencionados, porém sem dar ao espectador a
mínima chande de saber que méritos justificaram tais conquistas.
Conservadorismo
caricato
É
certo que o telejornal apresentado por Christiane Pelajo e William
Waack (substituído, no dia em questão, por Carlos Alberto
Sardenberg) vem se tornando, há tempos, o mais politicamente
retrógrado dos veículos noticiosos da emissora, em que se tornou
recorrente zombar do que quer que destoe do modelito neoliberal,
particularmente de temas como a administração Kirchner, o regime
cubano ou o legado de Hugo Chávez na Venezuela, seja através do
sarcasmo explícito de Arnaldo Jabor ou das caretas sisudas de Waack.
O
contágio ideológico da atração global chegou ao ponto, há
algumas semanas, de noticiar como verdadeiro o hoax segundo
o qual o ditador coreano Kim Jong-un havia determinado que todos os
homens do país cortassem o cabelo como ele. Mesmo após a descoberta
de que se tratava de um boato, o telejornal não desmentiu a
"informação" ou pediu desculpas por iludir o seu público.
Ainda
assim, preferir ataques pessoais mesquinhos à oferta de um retrato
minimamente condizente da importância da obra de um dos maiores
escritores latino-americanos, Prêmio Nobel de literatura, justamente
por ocasião do anúncio de sua morte, parece excessivo até para os
baixos padrões do Jornal da Globo.
A
invisibilidade da América Latina
É
fato que quem tem TV a cabo teve acesso a uma cobertura bem melhor e
mais informada acerca da passagem de Gabo, com destaque para um
depoimento precioso de seu tradutor e amigo Eric Nepomuceno, o qual
refuta o rótulo "realismo fantástico" (ou "mágico").
Mas aqui neste texto nos interessa focar de forma específica na
cobertura oferecida pelo Jornal
da Globo,
justamente por esta ser a principal opção telejornalística para
quem chega tarde em casa e não tem TV a cabo.
O
que primeiro chamou a atenção na matéria veiculada pelo telejornal
no dia da morte de Gabo foi o colonialismo, traduzido na absoluta
ausência de um referencial latino-americano na cobertura. O primeiro
correspondente a ser chamado foi Jorge Pontual, de Nova Iorque, que
se limitou a citar a repercussão da notícia nos Estados Unidos.
Nenhum correspondente latino-americano, nem mesmo o culto e informado
Ariel Palacios, correspondente brasileiro radicado em Buenos Aires,
foi convocado. Muito menos alguns dos principais críticos literários
latino-americanos que se dedicaram à análise da relevância de Gabo
foram entrevistados.
E
tanto a Colômbia, país natal e referência recorrente na obra,
quanto o México, seu lar nas últimas décadas, foram absolutamente
negligenciados pela cobertura. Desnecessário assinalar que a Rede
Globo, quarta maior emissora televisiva do mundo, teria todas as
condições de investir em bom jornalismo e mobilizar equipes para
tal, se assim o quisesse.
São
erros particularmente graves em se tratando de Gabriel García
Márquez, cujo histórico discurso
proferido ao receber o Nobel explicita o protagonismo político e
afetivo da América Latina em seu sistema de valores e um autor que
deixou uma obra que propicia múltiplas interpretações, capaz de
agradar ou desgostar por diferentes razões, mas que tem no ato de
sublimar
em fantasia, delírio e poesia a loucura latino-americana um de seus
traços distintivos. Macondo, a mítica aldeia de Cem
anos de solidão,
é a um tempo metáfora e vetor da identidade latino-americana.
Macondo somos nós.
Livros?
Que livros?
Ainda
mais insuficientes do que o retrato do artista e de sua relevância
foram as considerações (não) oferecidas pelo Jornal da
Globo acerca da literatura que
García Márquez produziu durante quatro décadas.
Pode-se
ponderar, com bastante boa vontade, que não é fácil, na era dos
smartphones e da onipresença da internet, traduzir a um
público leigo, volumoso e heterogêneo, no tempo escasso de uma
matéria telejornalística, o universo temático, a especificidade
estética e os efeitos inebriantes da literatura de García Márquez.
Tal
dificuldade evidencia-se ainda mais intensa se levarmos em conta o
padrão literário ora em voga, em que as listas de mais vendidos
subdividem-se entre livros de autoajuda, fantasias esotéricas e soft
erotismo, com espaço mínimo para o engenho literário de mais
fôlego e a ousadia formal. Como, em tum ambiente literário tão
raso e que tão pouco demanda da crítica, esperar que se sumarize em
linguagem telejornalística a pletora de significados atribuíveis a
Macondo e à saga dos Buendía; ou à trajetória do ditador sem nome
de O Outono do Patriarca, que
sobreviveu durante séculos,
vendendo ao Império até o mar de seu país; ou qual a graça de se
ler uma história cuja morte do protagonista tem lugar já nas
primeiras páginas; ou como a triste história de Cândida Erêndira
corresponde a um tratado poético sobre os mecanismos imperialistas
de dominação econômica; ou porque os amores contrariados renderam
mais e melhor literatura através da imaginação de Gabo?
Estética
negligenciada
Porém,
ainda mais do que a dificuldade para traduzir minimamente ao leitor
não familiarizado o universo literário acima esboçado, a recusa em
sequer tentar fazê-lo soa indicativa das limitações do
telejornalismo cultural na TV aberta, tanto mais se levarmos em conta
que, não faz tanto tempo assim, tais criações do realismo mágico
ocuparam posições destacadas, e por longos períodos, nessas mesmas
listas de best sellers
ora povoadas de paulos coelhos e 50 tons de cinza.
Porém,
ainda mais difícil do que abordar o universo temático de Gabo,
sobretudo para um telejornalismo que concebe seu espectador como um
Homer Simpson, seja fornecer uma ideia das questões propriamente
formais e estilísticas que distinguem a excelência da
literatura do escritor colombiano. E não por estas serem, a rigor,
herméticas, posto que nela a adjetivação abundante e o recurso
frequente às comparações, metáforas e hipérboles, ao mesmo tempo
em que contrariam - e desmentem - algumas regras não escritas para o
bem escrever, tendem a facilitar a leitura de seus textos por um
público variado, cujos méritos propriamente formais do texto talvez
tendam a receber pouca atenção ante a imaginação prodigiosa das
histórias e o vigor narrativo ao contá-las.
Estreitamento
de referenciais
Ocorre,
porém, que tematizar, no ambiente telejornalístico atual, as
questões de cunho propriamente literário elencadas nos dois últimos
parágrafos implica no estabelecimento prévio de um código - e na
existência de um repertório referencial – entre emissor e
receptor.
E
é forçoso reconhecer que este código estreitou-se e delimitou-se
nas últimas décadas. O crítico literário Roberto Schwarz afirma,
em um texto clássico, que o hiato entre o golpe militar de 1964 e a
promulgação do AI-5 foi paradoxalmente caracterizado como "os
anos de hegemonia cultural da esquerda". Corroborariam tal
afirmação o teatro de Boal e Zé Celso, a Tropicália e a música
de protesto, a literatura de Callado e Cony, entre tantos outros
exemplos possíveis.
Talvez
não seja despropositado sugerir que, atualmente, o paradoxo se
inverteu, e os 25 anos de democracia que se seguiram ao arbítrio vêm
sendo marcados pela imposição e hegemonia de valores mercadológicos
à produção artístico-cultural. Verifica-se tal afirmação já na
legislação de fomento à cultura vigente nas duas últimas décadas
no país, em que o poder decisório foi, na prática, transferido
para os diretores de marketing das empresas. E ela se solidifica se
observarmos como o processo de fabricação e manutenção de
megasucessos ocasionais depende diretamente do poder de marketing das
corporações de mídia que mantêm propriedades cruzadas (canais de
TV abertos e fechados, estações de rádio, portais, jornais,
revistas, etc.).
O
valor mercado
A
manutenção de tal cenário por um longo tempo, sua penetrabilidade,
e sua correlação a fatores como o déficit educacional no país ou
o não-cumprimento de preceitos constitucionais relativos à formação
cultural e educacional pelos concessionários de canais de TV
acabaram não só por estreitar o repertório do referido código de
comunicação entre emissores e receptores no âmbito televisivo, mas
por redefinir em bases mercadológicas seu quadro de valores, seus
parâmetros axiológicos.
O
resultado, no âmbito da temática deste artigo, é que a riquíssima
e exuberante contribuição que Gabriel García Márquez deu à
literatura e à cultura universal, submetida a tal código,
desaparece, na cobertura do Jornal
da Globo,
em prol do retrato de um artista "cafona e amigo de ditadores",
cujo grande mérito passa a ser a venda de 40 milhões de livros, não
por acaso uma contribuição que se correlaciona diretamente ao
mercado.
Publicado originalmente e com pequenas alterações no Observatório da Imprensa.
(Imagem retirada daqui)
2 comentários:
Muito bom. Melhor dizendo, sensacional.
Muito obrigado, Maria do Carmo!
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