Em
artigo recente, no qual propõe uma reflexão sobre o futuro dos
direitos sociais no Brasil, o filósofo Renato Janine Ribeiro alude a
uma dicotomia que, às raias da campanha eleitoral, vem se
consolidando no debate político do país. Trata-se da oposição
entre o conservadorismo - os autointitulados "liberais", um
amplo leque que reúne ex-aliados petistas, tucanos e até parte do
que restou do DEM - e o petismo ora no poder, que para muitos de seus
entusiastas ainda representaria a esquerda (ou centro-esquerda), por
promover, via atenção ao social, uma alternativa ao neoliberalismo desbragado dos anos FHC e
Collor, com destaque para as políticas de
erradicação da miséria e de ascensão de cerca de 35 milhões de
cidadãos à classe média.
Mas
será que a relação entre esses entes políticos é, de fato, tão
dicotômica quanto tais esquemas analíticos sugerem, ou oposições
aparentes encobrem afinidades que os dois lados preferem camuflar?
Mais: para além do desgaste conceitual de termos como "direita"
e "esquerda", até que ponto, se usarmos de rigor
metodológico, eles se aplicam a tais forças em oposição? Se não
restam dúvidas de que os políticos que descendem da genealogia
Arena/PDS/DEM têm formado, nas duas últimas décadas, em conluio
com os tucanos, o núcleo duro do conservadorismo no país, isso
automaticamente outorga ao petismo no poder o cetro do progressismo? Ou as sucessivas correções de rumo e guinadas conservadoras do PT
de tal modo relativizam essa dicotomia que estaríamos assistindo,
hoje, a um vácuo de representação no campo da esquerda?
Pobres
e milionários
As
políticas redistributivas implementadas em larga escala pelo PT têm
se mostrado, de fato, o que de melhor os governos Lula e Dilma legam
ao país, com resultados efetivos e relativamente rápidos no combate
à chaga da pobreza, o pior dos males sociais gerados por séculos de
negligência. Devido a relevância de seu humanismo e eficácia,
trata-se de uma política que, com eventuais correções pontuais, não deveria ser abandonada no curto ou médio
prazo, à revelia da coloração partidária dos futuros presidentes
do país.
Sua
implementação, no entanto, não se deu em consonância com a
redução dos ganhos obscenos das elites historicamente responsáveis pela
mencionada negligência para com o social - ou seja, através do
redesenho integral da pirâmide social brasileira, de modo a
torná-la, de ponta a ponta, mais justa. Pelo contrário: o que se vê
são ajustes entre a base e o meio da pirâmide, à custa dos
estratos médios e da dilatação do consumo causada pela própria
incorporação econômica da base, num processo que, malgrado seus já
citados benefícios, multiplicou os lucros do topo da pirâmide e
tornou o Brasil o país que mais produz milionários no mundo.
Ignorar a assimetria inerente a tal processo de combate à pobreza e
tomá-lo por modelo exemplar de justiça social é tapar os olhos
para os lucros extras que gera ao grande capital e aos oligopólios
privados.
Essa
aliança do petismo, a um tempo, com a base e o topo da pirâmide
social serve de molde e metáfora tanto para a orientação de suas
políticas econômicas quanto para suas alianças no âmbito da
política partidária – que o digam Sarney, Collor, Calheiros,
Maluf, Kátia Abreu, entre tantos outros políticos indubitavelmente
associados ao conservadorismo (e à violação da ética na
política). Esse duplo arranjo – e as medidas dele derivadas –
relativiza, na origem, o caráter esquerdista do projeto de poder
petista e evidencia a impropriedade de qualificá-lo como oposição
ispsis litteris ao liberalismo.
O
jogo do mercado
Mas
é na seara econômica que o despropósito de tal qualificação fica
ainda mais claro. Tendo recebido de Lula um governo com grande
aprovação popular e, malgrado algum déficit de caixa, em situação
financeira incomparavelmente melhor do que a do Brasil que FHC
entregara ao primeiro presidente operário, o governo Dilma iniciou-se
com o mais duro choque anticíclico de toda a era petista, um aperto
fiscal de tal ordem que as de ordinário altas metas para o superávit
primário deram lugar ao objetivo de zerar o déficit nominal. Mesmo
economistas simpáticos ao petismo reconhecem que a reação aos
revezes provocados por tal erro inicial – que, segundo Luis Nassif,
quase levaram a economia à recessão – está no bojo do
realinhamento das políticas macroeconômicas aos moldes desejados
pelo mercado. Em decorrência dessa derrapada, encerra-se o breve
ínterim durante o qual, no governo Lula, o noticiário econômico
deixou de ocupar a proeminência costumeira e a encoleirar o governo.
Porém, ao
promover o retorno da ortodoxia econômica como padrão orientador
das politicas econômicas e, ao mesmo tempo, se recusar a regularizar
a mídia em bases democráticas e de acordo com o que determina a
Constituição, o governo Dilma aceitou tácita e passivamente jogar o
jogo de acordo com com os parâmetros ditados pelo conluio entre
mercado financeiro e mídia.
Dormindo
com o inimigo
À revelia do fato de serem sustentadas pelo "critério técnico" da Secom, governistas
e entusiastas continuaram a qualificar as corporações de mídia como "PIG" (Partido
da Imprensa Golpista) e, num processo de autocomiseração que ora se
firma como característica distintiva do petismo, a se considerarem
vítimas inocentes de uma oposição midiática mancomunada com as
elites. Porém, o modo deliberado como Dilma se aproximou da mídia
corporativa e seu voluntarismo em resgatar a ortodoxia financeira
como modelo macroeconômico fizeram com que, ao invés de vitimização,
muitos enxergassem em tais gestos um movimento deliberado de
aproximação para com o conservadorismo, no bojo de um processo de
expansão da hegemonia do petismo em direção à direita, corroborado pelo
retorno às privatizações, a subserviência ao agronegócio em
detrimento dos direitos dos índios e a vista grossa para as questões
de gênero em prol de pactos com o poder religioso. O sucesso dessa guinada conservadora seria atestado pelos mapas das pesquisas eleitorais pré-Jornadas de junho, com Dilma batendo recordes de
aprovação em setores antes infesos ao petismo.
Mais
corrobora do que desmente o caráter voluntário dessa aproximação
entre Dima e o mercado a velocidade com que desistiu de baixar os
pornográficos juros praticados no Brasil e, ante as primeiras
acusações de Marina Silva de que gastara excessivamente, em
reafirmar sua fé no tripé neoliberal de sustentação da economia, implementado pelo plano Real e composto de alto superavit primário, inflação abaixo de um dígito e câmbio flutuante.
Tal guinada torna indistinguível, no âmbito da macroeconomia, as práticas petistas das do tucanato anteriormente no poder, além de dissipar qualquer laivo de originalidade ou esquerdismo. O efeito se faz sentir: quem ainda acredita na oposição simplista entre a mídia e governo Dilma deveria prestar mais atenção ao comportamento dos colunistas econômicos durante os leilões do Pré-Sal ou ao fato sintomático de que, hoje, a defesa do governo Dilma na imprensa está a cargo de alguns dos jornalistas mais identificados pelos próprios petistas com o "PIG" - como Clóvis Rossi, da Folha, que, em plena batalha pré-eleitoral, foi categórico ao reafirmar o esmero de Dilma com o rigor fiscal: "o governo, supostamente irresponsável, gasta menos do que arrecada e ainda pinga 1,3% de tudo o que o país produz de bens e serviços na conta dos mais ricos e apenas 0,4% na dos pobres entre os pobres. E os ricos ainda choram."
Tal guinada torna indistinguível, no âmbito da macroeconomia, as práticas petistas das do tucanato anteriormente no poder, além de dissipar qualquer laivo de originalidade ou esquerdismo. O efeito se faz sentir: quem ainda acredita na oposição simplista entre a mídia e governo Dilma deveria prestar mais atenção ao comportamento dos colunistas econômicos durante os leilões do Pré-Sal ou ao fato sintomático de que, hoje, a defesa do governo Dilma na imprensa está a cargo de alguns dos jornalistas mais identificados pelos próprios petistas com o "PIG" - como Clóvis Rossi, da Folha, que, em plena batalha pré-eleitoral, foi categórico ao reafirmar o esmero de Dilma com o rigor fiscal: "o governo, supostamente irresponsável, gasta menos do que arrecada e ainda pinga 1,3% de tudo o que o país produz de bens e serviços na conta dos mais ricos e apenas 0,4% na dos pobres entre os pobres. E os ricos ainda choram."
A
voz do dono
Em decorrência dessas mudanças,
e sem que muitos se dessem conta, o jogo se embaralhou. Grande parte
da militância petista e dos governistas, outrora tão empenhada em impulsionar o governo em direção a pautas progressistas como a
disseminação da banda larga, a regularização da mídia ou a
taxação das grandes fortunas, passa a se contentar em comemorar
cada índice da economia: o superávit primário X, a inflação Y,
os juros Z. Para isso passa a exaltar rotineiramente os mesmíssimos
valores do mercado financeiro e da mídia que sempre criticara. Ou
seja, sob a égide do "novo petismo", age como um torcedor
fanático, jogando o jogo do grande capital para que sua legenda partidária ganhe hegemonia e poder eleitoral, à revelia das perdas ideológicas, identitárias ou programáticas.
Seja
como for – e mesmo entre governistas conscientes dos danos das
alianças excessivamente elásticas e da rendição à mídia e ao
mercado -, resta o indefectível argumento de que os fins
justificariam os meios, ou seja, de que benefícios sociais trazidos
pelos petismo compensariam tais retrocessos. É um argumento a se examinar.
Direitos
sociais em crise
Janine
Ribeiro, no texto mencionado, intitulado "O Brasil pode dar
certo?" dá a dimensão das graves lacunas sociais do país: "A
Europa desenvolvida tornou realidade, na metade do século XX,
direitos sociais relevantes. Ninguém precisa perder o patrimônio
para ser tratado de uma doença séria, ou gastar boa parte de sua
renda para se locomover. É isso o que chamo um país 'dar certo'”.
Isto, para ele, corresponde "a atender à demanda da rua por
transporte, educação, saúde e seguranças decentes".
Creio
não ser preciso alongar o texto para constatar que, após mais de
uma década sob o petismo, estamos longe, muito longe de atingir
patamares básicos referentes a tais quesitos. Mesmo com a ressalva
de que tal estado de coisas deriva de uma pesada herança
patrimonialista, é forçoso constatar que 11 anos não são 11 dias
- e que se afigura altamente questionável se a aliança entre o PT e
caciques conservadores fez regredir, manteve inalterado ou expandiu a
velha prática patrimonialista.
Paliativos
Reforça
o parco comprometimento da administração petista com questões
sociais de suma importância, caras à esquerda, o encaminhamento que
o petismo tem dado a áreas como Saúde, Educação e Transportes. Em
relação a esta última, fala por si a crise de mobilidade urbana,
agravada pela expansão exponencial da frota de veículos patrocinada
pelo crédito farto e barato e, como tal, uma das principais
motivações das manifestações de junho. À revelia do marketing
oficial, Saúde e Educação também apresentam graves problemas,
como veremos a seguir.
Na
Saúde, o Mais Médicos, longe de ser (parte de) uma política
estratégica para a área, constitui um paliativo ditado pelo
improviso, explorando a peculiar – e injusta – situação
trabalhista dos médicos cubanos (a qual decorre, em última análise,
dos efeitos do criminoso boicote imposto pelos EUA à economia da
ilha). Assim como é inegável que traz benefícios à população
mais pobre, não dá para ignorar o seu caráter pontual, mínimo e
não sistêmico enquanto política de saúde pública. Esta, após
mais de 11 anos de governo petista, permanece uma quimera, um
objetivo distante cujas bases não se encontram sequer esboçadas.
Prioridade
à Educação?
De
modo análogo, a tão propalada expansão do ensino superior está
longe de corresponder a um aumento qualitativo da educação
universitária no país. O governo divulga, como se de uma grande
conquista se tratasse, o fato de ter dobrado o número de
universitários nas instituições federais desde 2002. No entanto,
trata-se de um fato que, por si só, está longe de constituir um
benefício, posto que: no mesmo período, o número de docentes
contratados (que já estava em níveis baixíssimos ao final do
governo FHC) tem sido percentualmente bem inferior ao de novos alunos
– num processo que aponta para o risco concreto de sucateamento do
sistema, posto que a proporção professor/alunos é, histórica e
mundialmente, um dos pilares básicos para a qualidade do ensino e da
pesquisa no âmbito das universidades.
Além
dessa questão crucial, o investimento em ampliação ou na criação
de novos campi não atende às demandas de tal crescimento discente,
gerando situações como a da UFRB, em que os alunos foram às aulas
trajados de biquíni ou sunga em protesto contra a ausência de um
sistema de refrigeração, em pleno Recôncavo Baiano, seis anos após
o início das obras de construção do campus. Também as bibliotecas
– item essencial para o sucesso das melhores universidades do mundo
– têm sido solenemente negligenciadas durante esse processo de
alegada "prioridade à educação", seja nas novas
universidades ou nas já existentes, com acervos incompletos,
extremamente defasados e insuficientes para atender à velha demanda
- o que dizer da nova.
Pequenas
divergências
O
caráter não estrutural, relativo, insatisfatório, às vezes apenas
cosmético dos benefícios que o petismo, após 11 anos, trouxe a
áreas sociais essenciais como Educação, Saúde, Mobilidade Urbana
– para não falar no imenso retrocesso reativo aos Direitos Humanos
e à ecologia – faz com que hoje, após a virada conservadora do
governo Dilma, haja muito mais relativa convergência do que
autêntico antagonismo entre o petismo e a oposição. Ou posto de
outra forma, as divergências são de ordem adjetiva, não
substantiva: ambos concordam em relação à adoção do "tripé
básico da economia" (, ), ambos defendem a privatização; a
regularização da mídia ou a auditoria da dívida pública não
está no horizonte de nenhum dos projetos. O que ocorre são
divergências quantitativas: qual o ponto de regulação de juros e
crédito que não tensiona a inflação?qual o nível de aumento do
salário mínimo desejável? Até a desregulamentação dos encargos
trabalhistas, objetivo eterno do conservadorismo, vem sendo pontual e
paulatinamente adotado pelo governo petista.
Em
termos político eleitorais, o principal efeito dos 11 anos de
petismo é a mimetização, por este, de plataformas caras ao
conservadorismo, somada, graças sobretudo aos programas de renda
minima, à capacidade de manter-se (ainda) simbolicamente situado, no
imaginário de uma grande parcela do eleitorado, no campo da
centro-esquerda. Em decorrência, este encontra-se ora esvaziado: as
eleições presidenciais de 2014 será disputada por candidatos e
alianças que aceitam passivamente os principais ditames do mercado
financeiro sob a égide neoliberal, no que concerne a temas
fundamentais como privatização, rigor fiscal e inserção na ordem
econômica mundial, entre tantos outros.
Herança
Dilma
pode até ganhar as eleições, mas, após mais de uma década de
petismo, a esquerda está morta no cenário eleitoral feeral,
dominado pela hegemonia do liberalismo econômico em conluio com um
conservadorismo moral apoiado em dogmas religiosos e que
retroalimenta atrasos e preconceitos. Os prognósticos não são bons.
Um comentário:
Síntese irretocável.
Gtato
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