Que após o convescote no Café Millenium o comportamento da mídia se tornou ainda mais agressivo, irresponsável e distante, muito distante, do que se espera de um setor encarregado da nobre missão de informar a sociedade, parecem não restar dúvidas.
Os inacreditáveis factóides em sequência de O Globo - culminando com “notícia” de que Lula se licenciaria e Sarney assumiria por dois meses - e a chamativa capa de Veja afirmando que a casa do partido X caiu, para já na mesma semana ser desmentida por decisão judicial que não apenas recusou as denúncias, mas repreendeu o promotor pelo parco embasamento da denúncia, além de confirmamem a nova fase suscitam urgente discussão sobre quais os limites da imprensa.
A insistência de Veja na denúncia recusada pela Justiça, na edição agora nas bancas, leva-nos a uma questão ainda mais inquietante: estaria a mídia brasileira acima da Justiça? Pois em qualquer sociedade de fato democrática, após os acontecimentos da semana passada envolvendo as denúncias do promotor Blat, a revista estaria judicialmente obrigada a ostentar na capa um desmentido cabal das acusações peremptórias, feita em linguagem da marginália, na semana anterior. Alheia aos fatos e à honra alheia, segue impunemente com a “denúncia”.
Nesse cenário, o ataque da Folha de S. Paulo a Nassif, no melhor estilo vendetta mafiosa mas travestido de matéria jornalística, embora ofensivo à honra do jornalista e blogueiro, não surpreende. Apenas corrobora a degringolada ética da mídia brasileira.
Muito foi comentado, na blogosfera, sobre o caso. Não creio que eu tenha algo de substancialmente inovador a acrescentar. Miguel do Rosário escreveu um post curto mas definitivo; o Blog do Len, de forma corajosa e contundente, encaminhou diretamente à Folha uma série de perguntas sobre o “jornalismo” que tem praticado, perguntas que embora não digam respeito apenas ao “caso Nassif”, debatem temas éticos a este correlatos; e o próprio Nassif defendeu-se com prontidão, argumentação convincente e a objetividade costumeira.
No entanto, como veremos a seguir, o enfrentamento de Nassif pela Folha tem razões de fundo ainda não discutidas em profundidade, conectadas a um embate ideológico mais insidioso, ora muito tensionado pelas proximidades das eleições presidenciais.
Maniqueísmos éticos
Um dos êxitos mais duradouros do Brasil pós-ditadura militar foi ter levado cidadãos e cidadãs de todos os estratos sociais e faixas etárias a assimilar um alto grau de precaução ética em relação ao que diga respeito à esfera estatal e aos bens públicos. Essa postura, que deveria ser saudada como um avanço positivo rumo a um maior exercício da cidadania democrática, não propiciou, no entanto – em grande parte devido ao fato de ter-se dado durante o período de hegemonia neoliberal - , uma atenção equivalente à ética das relações corporativas privadas (e do quanto afetam o bem público, não apenas no âmbito material) nem anticorpos que propiciassem uma atenção redobrada quanto ao tanto que a mídia poderia explorar a atenção da sociedade à ética da esfera pública como forma de fazer valer seus interesses privados.
Assim, o que poderia ser uma oportunidade para uma revolução ética nas práticas político-insitucionais brasileiras tornou-se, pouco a pouco, terreno fértil para o neomoralismo de tons udenistas, feito de indignações seletivas, anti-sociais e classistas.
As acusações da Folha contra Nassif servem-se precisamente desse cadinho de ideologia, ainda enfronhado tanto no inconsciente coletivo quanto nos parâmetros valorativos de setores da população – notadamente, da classe média: desconfiado de tudo o que diga respeito à esfera pública, mas extremamente permissivo em relação ao âmbito corporativo privado.
Tais setores, cuja maioria luta arduamente para receber minguados caraminguás ao final do mês, tendem, assim, à humana, demasiadamente, humana indignação moral – que segundo a boutade de George Wells Herbert “é a inveja com uma auréola” – ao serem informados que um jornalista supostamente recebe R$ 55 mil por mês pagos com dinheiro público. Que daí ele seja acusado de fazer um jornalismo chapa-branca não é questão de constatação factível, mas de hipótese "lógica" decorrente.
Talvez todo esse moralismo pré-dirigido impeça alguns leitores de se aperceberem do quão contraditório é um órgão jornalístico que por décadas foi beneficiário de contratos milionários de publicidade governamental - graças a seu então notório saber em imprimir tinta no papel e vender jornal - lançar suspeitas sobre um jornalista respeitadíssimo no mercado, com anos de atuação destacada na própria Folha e reiteradamente premiado pelos próprios colegas – portanto, um profissional com notório saber - por este ter sido contratado para produzir, por um valor que o jornal finge julgar alto, programas para a TV Brasil, que é pública (mas, como tem reiteradamente demonstrado, serve ao Estado, e não ao governo, como se espera de um órgão estatal).
O jornal tinha a obrigação de saber que o montante do contrato entre a TV Brasil e a agência Dinheiro Vivo, da qual Nassif é proprietario, está rigorosamente dentro dos valores cobrados pelo mercado. Para isto, bastaria ter consultado algumas das principais produtoras do país. Mas sejamos indulgentes: consideremos que foi um descuido. Já quando a “matéria” deliberadamente confunde os custos do programa televisivo com salário de Nassif, aí não há como ignorar a manipulação, pois o caso passa a deixar a esfera jornalística e abrir interessantes perspectivas no âmbito judicial.
Acusações hipócritas
Resta, por fim, a acusação de chapa-branca, talvez a mais grave das contidas na matéria, pois potencialmente danosa à carreira de um jornalista. Mas que, n o caso, não deixa de ter um certo sabor humorístico, por advir de um órgão que, sendo vergonhosamente tendencioso em relação ao governador e pré-candidato à Presidência José Serra, com quem tem relações de longa data, não tem moral para acusar ninguém.
Nassif deixou a Folha, onde por mais de uma década ocupou espaço de destaque, após inúmeros entreveros – inclusive judiciais, quando Sarney era presidente - com os governos de turno. Isso é ser chapa-branca?
Deixou de renovar contrato com a TV Cultura – esta, sim, uma emissora pública aparelhada politicamente, que fala a linguagem do governo, não do Estado, como o demonstram seus telejornais - por ter feito críticas ao governador. Isso é ser chapa-branca?
Quem lê com assiduidade o blog do Nassif sabe que ele, com frequência, critica aspectos essenciais do governo Lula, notadamente em relação à não-adoção de um planejamento estratégico de longo prazo para o país, à política industrial, à política de cotas e, sobretudo, à valorização artificial do dólar e à política de juros, temas que vem tratando há anos, com diagnósticos desfavoráveis à atual administração federal. Além disso, republicou, no último mês, 2 artigos com o mesmo título de “A herança maldita de Lula” (um por Julia Dualibi, outro, no link, por Yoshiaki Nakano) e tem alertado para o perigo de que a recusa de de Lula em adotar uma política efetiva para o câmbio acabe por gerar graves problemas no médio prazo, à semehança do que ocorreu com FHC, com potencial danos à imagem que a história legará ao atual presidente. Isso é ser chapa-branca?
É fato que Nassif não se furta a elogiar os pontos positivos da administração Lula, nem a criticar o governo Serra, nem a analisar negativamente o comportamento da mídia. Estas três práticas jornalísticas – reconhecer acertos do governo de turno, ao invés de só criticá-lo; não poupar, por interesses próprios, críticas à administração de um possível candidato a presidente; e denunciar as práticas sujas e contrárias ao jornalismo democrático levadas a cabo pela mídia corporativa -, de tão rarefeitas no momento atual de nossa imprensa, talvez soem como heréticas. E heréticos não podem ser acusados de serem chapa-branca.
I rest my case.
6 comentários:
Mauricio, a capa da última edição da Veja só reafirmou uma desconfiança minha, que até comentei no post em que o Nassif se defende da Folha: o objetivo não era só retaliar, mas desqualificar. Fazer o leitor que não conhece o Nassif ter dúvidas quanto à análise dos factoides. E é o que está acontecendo, com mais frequencia agora do que antes, nos comentários lá.
Silvana,
Acho que você tem toda a razão - o objetivo era mesmo desqualificar, para os novatos e incautos (porque para os que conhecem a longa história do Nassif com a Folha, não cola).
Agora, tenho minhas desconfianças quanto ao número excessivo de comentários, lá, contestando-o. Cheira a ação organizada...
Um abraço,
Maurício.
Miguel do Rosário disse
Legal, Maurício. Seus posts são sempre um primor. Esse aí só pecou em chamar aquele meu postinho mixuruca de "definitivo", hehe. Grande abraço.
Len disse:
Excelente Caleiro.
Quando eu crescer quero escrever assim.
Abraços.
Valeu, Len e Miguel,
Perdão pela mancada. Eu tava distraído, mas meu ego gostou muito dos comentários..rs..
Olha, Maurício, depois do post no link abaixo, acho que você tem razão, viu?
http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2010/03/16/a-guerra-politica-sem-quartel/
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