“Educai as crianças
e não será preciso punir os homens” – a frase, atribuída ao
filósofo e matemático grego Pitágoras, resume e antecipa em mais
de vinte séculos pressupostos centrais à filosofia iluminista de
Jean-Jacques Rousseau, que o grande sambista dos anos 40 Wilson
Batista resumiria em versos: “Se o homem nasceu bom/ e bom não se
conservou/ a culpa é da sociedade/ que o transformou”.
No
Brasil, tais pressupostos encontram-se hoje em em baixa, devido tanto
à ameaça real de diminuição da idade mínima de imputabilidade
penal - ora em debate no Congresso - quanto à violência sistemática
do Estado contra jovens nas periferias, a qual o trágico assassinato
do garoto Eduardo pela PM, no Complexo do Alemão, exemplifica e
atualiza.
A despeito de estarmos
atravessando o mais longo período democrático de nossa história,
tais pressupostos iluministas vêm sendo solapados pela ideologia
punitiva que vicejou sob o neoliberalismo, açulada por sua vez pela
explosão populacional, “no marco de sociedades fraturadas por
linhas de pobreza e aturdidas pelo florescimento de ideologias
individualistas e anti-solidárias”, como observa Beatriz Sarlo em
seu belo livro Cenas da Vida Pós-Moderna.
Somam-se
a esse contexto a perpetuação do militarismo através de forças
policiais mal remuneradas, mal treinadas e desacostumadas a respeitar
direitos; uma “Guerra ao terror” que se perpetuou e serve de
desculpa para toda e qualquer violência do Estado, aí incluídas
tortura e repressão periférica de cunhos racista e classista; e o
fato de o incentivo à violência de Estado vir tanto do circo
midiático, com os Datenas da vida, quanto do picadeiro político,
prato cheio para demagogos travestidos de paladinos da panaceia
contra o crime.
Importação
acrítica
Mas
não se limita a querelas brasileiras o recrudescimento dos modelos
punitivos. O acirramento do debate sobre criminalização e direitos
humanos está intrinsicamente ligado à emergência de um “Estado
penal e policial” nos EUA, em substituição ao “Estado
caritativo”, como observa o sociólogo.Loïc Wacquant. Seus estudos
fornecem a radiografia de um processo que, sob patrocínio do ideário
neoliberal, transformou as cadeias dos EUA em um proveitosos negócio,
abarrotando-as de negros e pobres por cujo encarceramento o Estado
limita-se a pagar, desinteressado de direitos e obrigações.
E
é assim, no bojo da assimilação acrítica de um modelo
punitivo peculiar aos EUA, que ganha cada vez mais força no Brasil a
pregação de políticas tais como a privatização dos presídios
(em andamento) e a redução da idade de maioridade penal. Esta, uma
medida francamente contrária ao espírito do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) – um avançado arcabouço legal de proteção
à infância, como tal internacionalmente saudado quando de sua
promulgação em 1990, mas que ora é cada vez mais discutido e
atacado, ainda que a maioria de seus artigos jamais tenha sido de
fato incorporada à prática social (em mais um exemplo desse
fenômeno tão brasileiro que é o das leis que não “pegam”).
Se esse cenário de
crescente repressão é nacional, ele se mostra mais evidente no Rio
de Janeiro de Wilson Batista, em parte porque sua topologia e suas
pronunciadas assimetrias sócioeconômicas põem a nu – como talvez
em nenhum outro centro urbano do país – as profundas desigualdades de classe que o poder quer ocultar, em parte porque, com o
auxilio de de um grande grupo de mídia, promove-se uma deliberada
criminalização da pobreza por meio da qual os cidadãos e cidadãs
que habitam os morros e áreas periféricas têm seus direitos
constitucionais sistematicamente negados.
Nesse
quadro - marcado pelo maniqueísmo e por preconceitos de classe - o
debate público em torno de cidadania tende a se restringir à ótica
da criminalização. Como aponta a pesquisadora Helena Singer, “os
discursos e as práticas sobre os direitos humanos não chegam à
população sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim
de culpabilização, penalização e punição, integrando um
movimento mundial de obsessão punitiva crescente”.
As
UPPs em xeque
Assim,
ainda que a sensação geral seja a de se estar enxugando gelo, a um
custo material e humano altítssimo, o investimento em alternativas e
em políticas de médio e longo prazo é mínimo e quase sempre
fugaz: como o caso das UPPs no Rio de Janeiro ilustra de forma
didática, o conluio entre interesses eleitorais, interesses
empresariais e interesses particulares das próprias forças
responsáveis pelo monopóio da violência dos morros se sobrepõem,
na prática, ao bem comum que a dita “pacificação” sugeria.
Seja com traficantes, com milicianos ou com policiais, o fato é que
os moradores cntinuam não-cidadãos, sujeitos a uma rotina de
exploração, humilhação e violência.
Com
o caso Amarildo, o modelo UPP já dera mostras contundentes de que
estava longe de ser a panaceia redentora que Lula, Cabral e Paes
anunciaram. Mas nem os políticos locais, nem o governo federal, nem
as corporações midiáticas sediadas no Rio estão interessadas em
interromper o fluxo de ganhos variados – nem todos confessáveis -
que tal modelo proporciona. Que além das benesses assumam também o
ônus de sua miopia: o assassino do garoto Eduardo pode ter sido um
PM, que deve ser investigado e, se confirmada sua culpa, punido, mas
a responsabilidade política pelo sangue derramado é dos governantes
que financiam e/ou administram o modelo UPP - nominalmente Dilma
Rousseff, Pezão e Paes – e dos meios midiáticos que
entusiasticamente o promovem.
E
manifestar solidariedade e cobrar punição do assassino não passam
de obrigação. Não bastam: deixar o tempo passar, não intervir e
insistir na continuidade do modelo das Upps tal como hoje em execução
equivale a ser conivente com futuros assassiantos e violações
sistemáticas dos direitos dos habitantes das áreas em questão.
Há
uma simbologia evidente, epifânica, entre uma pátria que se diz
educadora, as possibilidades efetivas de aprovação da diminuição
da imputabilidade penal e o assassinato a sangue frio de um menino de
10 anos pela PM. Não vê quem não quer.
(Imagens retiradas, respectivamente, daqui e dali)