Um dos principais
problemas de se viver em uma sociedade em que a política é
polarizada, marcadamente dominada por duas forças partidárias –
como ocorre no Brasil – é a ausência de nuances, ponderação e
precisão.
Tão necessárias ao
diagnóstico de problemas e da eficácia dos programas para
combatê-los, tais considerações têm sido rotineiramente
substituídas, nos fóruns políticos, por pareceres definitivos e
incontrastáveis, ora de irrestrita apovação, ora de
desqualificação (a principal tática retórica de nossos dias, que
os marqueteiros políticos importaram do jornalismo neocon, tornando
ainda mais despolitizadas e agressivas as campanhas eleitorais, como
acabamos de testemunhar no pleito presidencial).
Instaura-se assim uma
lógica binária fortemente contrastada, ou branco ou preto, sem
espaço para as demais tonalidades, o cinza que muitas vezes melhor
espelha o real. Isso, por sua vez, acaba por gerar um contágio, uma
vicissitude no campo político, onde os graus de positividade ou
negatividade dos eventos são forte e particularmente determinados
pela perspectiva adotada pelo observador: mesmo os analistas que não
professam nem o credo petista nem o dogma neoliberal dos tucanos
acabam tendo, com raríssimas exceções, suas análises contaminadas
por esse binarismo emocional e primário.
Décadas de
bipolarização
Ao longo de mais de
duas décadas de polarização entre PT e PSDB, multiplicam-se os
exemplos do quanto tal dinâmica tem sido prejudicial ao debate
político – sobretudo àquele mais interessado no avanço do país
do que no sucesso ou fracasso desta ou daquela linha política, blog
ou ego.
Atualmente, repete-se
uma vez mais tal processo, no bojo do debate em torno da corrupção,
com os escândalos do Petrolão e do HSBC mobilizando militantes que
agem como torcedores fanatizados. Não disputam quem foi mais
honesto, mas quem roubou menos, como se cada coincidência entre um
tucano e um petista corruptos magicamente anulasse o “malfeito”,
significasse equivalência e produzisse uma redução – e não um
aumento – desse câncer que corrói a vida pública brasileira, com
reflexos diretos na qualidade de vida que o Estado proporciona aos
cidadãos e em nossa evolução como nação.
Tal estratégia
negadora, que não passa de um truque de retórica, oculta, ainda, a
natureza deveras diversa entre si dos escândalos do Petrolão e do
HSBC – e o encaminhamento diferenciado que cada um deles requer.
Naturezas diversas
O caso da Petrobras é
um exemplo “clássico” de corrupção, com
corruptores bilionários de um lado - sendo pela primeira vez
devidamente flagrados e processados - e gestores corruptos de outro,
aparelhados em uma empresa estatal de capital aberto por partidos ou
lideranças políticas. O X da questão é justamente a acusação de
que tais entes políticos se benefeciaram diretamente das negociatas,
recebendo quantias exorbitantes, no que seria, pelo volume de
recursos financeiros, duração e grau de sistematização, o maior
escândalo de corrupção do planeta.
O caso HSBC, embora
também grave, é bem diferente, por tratar-se antes de indício de
fraude fiscal - e, em decorrência, de suspeita de fundos obtidos de
forma ilegal - do que de um caso tentacular de corrupção, delatado
por depoimentos de envolvidos e corroborado por documentação. Mesmo
porque, como o rigor jornalístico exige que se registre, não há
absolutamente nada de errado em manter contas numeradas na Suíça,
como fazem milionários e bilionários do mundo todo. Este blogueiro,
se um dia vier a ganhar sozinho na Sena, certamente vai guardar parte
do dinheiro lá, como medida de proteção contra a insegurança
criminal e monetária reinante em nosso país. Ocorre, porém, que,
no caso dos brasileiros, o montante lá guardado tem de ser declarado
à Receita Federal – do contrário, o não-declarante estará
cometendo crime fiscal. Sabe-se que ao menos algumas dezenas dos
nomes da lista de correntistas que vazou incorreram em tal crime. Em
relação a esses, sim, será necessário traçar a origem do
dinheiro e investigar se se origina ou não de corrupção - e, em caso afirmativo,
fazer valer o rigor da lei.
Petrolão: um escândalo
da base aliada
Não é preciso muita
expertise para se aperceber que os dois casos são de natureza e
estágios de investigação bem diferentes, e que não há razâo
objetiva para assumir que um anula o outro – pelo contrário, eles
se somam como indicio (ou, eventualmente, provas) de ilegalidades e
da forma endêmica como a corrupção manifesta-se no país.
O escândalo da
Petrobras já avançou bem mais nas investigações. A primeira
fornada de acusados, cujos nomes foram divulgados pelo STF na sexta,
mostra o envolvimento profundo dos governos Lula e Dilma: dos 47
investigados, só três não pertencem a partidos da base aliada (mas
sendo que um deles, o reincidente Fernando Collor, tem rotineiramente
apoiado o governo).
Fora do mundo
Ainda assim, a
militância virtual petista, cada vez mais desconectada da realidade,
prefere martelar nas redes sociais o nome de Aécio Neves, cujas
investigações foram arquivadas pela Procuradoria-Geral da República
por falta de provas. Afinal, uma mentira, deveras repetida, em
verdade se transforma, já disse um “filósofo” alemão. Por
outro lado, e sem exceção, “passou desapercebido” a tal
militância que a mesma PGR declarou, no âmbito da Operação Lava
Jato, não poder investigar a presidente Dilma por "atos
estranhos ao exercício de sua função", ou seja, devido a
impedimento constitucional (e não a presunção de inocência); mas,
no bojo da investigação sobre Antonio Palocci (PT/SP) efetivamente
requisitou apuração sobre a arrecadação de recursos para a
campanha presidencial de 2010. Curto e claro: o fato é que Dilma
ainda está sob investigação; Aécio não.
Não obstante o
envolvimento de 44 membros da base aliada no Petrolão, o petismo,
assim como fizera no Mensalão, recusa qualquer autocrítica ou
pedido público de desculpas por permitir (ou, na melhor das
hipóteses, não se dar conta, o que denotaria grave incompetência)
que vultosas quantias de dinheiro público fossem assacadas
ilegalmente de uma empresa estatal de capital aberto para favorecer
interesses individuais e políticos. Em vez de qualquer gesto que
denote civismo, arrependimento e respeito pelo cidadão, o petismo no
poder prefere adotar a estratégia apelativa e desavergonhada de
tentar jogar no colo de um presidente que deixou o poder há bem mais
de uma década, pois um dos depoentes afirma ter recebido propina já
em sua gestão.
“Heranças malditas”
e impunes
Ora, seria cômico se
não fosse trágico: mais de 12 anos se passaram após FHC ter
passado a faixa presidencial a Lula, o qual sempre afirmou ter
recebido uma “herança maldita” mas jamais moveu uma palha para
investigar a privataria tucana ou a alegada compra de votos para a
eleição. Ao contrário: acovardou-se em nome da governabilidade,
essa desculpa multiuso que o petismo utiliza para todo e qualquer
retrocesso.
Agora, quando o esquema
da Petrobras estoura e cobra-se o preço pela realpolitik por demais
elástica que reabilitou Collor e prestigiou o PP de Maluf (partido
líder em investigados na Lava-Jato, com 32 nomes), o governo procura
descolar-se da aliança que o sustentou até aqui e fingir
desconhecer o que acontecia na estatal nos últimos 12 anos, mesmo
com Dilma tendo egressado da área energética e tendo presidido o
conselho da estatal. Acredita quem quer.
Jogo pra plateia
Se as investigações
levarem ao governo FHC é evidente que ele deve ser investigado e, se
culpado, punido. Mas, como ocorre em qualquer lugar do mundo,
prioriza-se a investigação do caso concreto e atual de corrupção,
avançando-se retroativamente à medida que se punem os culpados, dos
atuais aos mais antigos.
O jogo bipolar de troca
de acusações e transferência de responsabilidades entre petistas e
tucanos pode funcionar junto aos setores da militância de ambos os
partidos que, espellhando seus
dirigentes, abdicaram, há tempos, da fidelidade a
coesão ideológica e programática e da capacidade de autocrítica,
em prol de uma guerra diária onde o que conta é a capacidade de
desqualificação do outro e o número de views e de curtidas obtido
nos blogs e redes sociais.
Siameses
Mas, como aponta o
sociológo Marcelo Castañeda, “A saída mais simples é dizer que
todos os problemas começaram com o PSDB e FHC. Ao reforçar essa
polarização perniciosa da representação, esvaziadora de qualquer
debate e comprometedora da construção de outras vias, somos
colocados cada vez mais num deserto de alternativas. (...) É hora de
romper com o simplismo esquemático da polarização, que se perpetua
como um moto contínuo entre dois lados que se definem pela negação
belicosa do outro”
Com efeito, qualquer
observador de bom senso apontaria, após duas décadas, o esgotamento
tanto do modelo tucano quanto do modelo petista, mesmo porque,
culminando com a volta da ortodoxia econômica via Joaquim Levy,
esses dois polos se tornam, paradoxalmente, cada vez mais
indistinguíveis um do outro – e não só em sua completa submissão
aos desígnios do chamado “mercado financeiro”, mas no
descompromisso com qualquer política de Estado concebida a partir de
metas, parâmetros e diretrizes ideológicas claros, de curto, médio
ou longo prazo. Exatamente do tipo que o Brasil desesperadamente
precisa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário